domingo, 7 de dezembro de 2014

Portugal Baillonné

Em 1972 este livro foi pelo meu pai trazido de Paris, e por estes lados lido às escondidas. Há 9 anos, em Abril de 2005, Mário Soares teve a gentileza de me receber para o autografar e ... para conversarmos um pouco sobre literatura americana. Falou-me dos romancistas que marcaram a sua geração, como Steinbeck e Caldwell e, para espanto meu, de Philip Roth. Então com oitenta anos, Soares não ficara preso às referências do passado e continuava atento às novidades. Há uma semana, cruzámo-nos frente à biblioteca nacional e, uma vez mais, teve a gentileza de me saudar. Hoje, quando ele completa 90 anos, aqui fica este pequeno tributo.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Walt Whitman

Só para vos despertar o interesse, eis o início do primeiro capítulo (que não é o início do livro!) do meu Essencial sobre Walt Whitman que sairá, em breve, na colecção em que já saiu o meu Esssencial sobre William Shakespeare. Aqui fica, com um abraço:'"Que diria, caro leitor, se eu reclamasse uma relação muito, muito próxima com George Washington, Thomas Jefferson e Andrew Jackson? … Muitas vezes tive o imortal Washington às cavalitas … O tronco do sagaz Jefferson foi rodeado por um dos meus braços enquanto os dedos do outro lhe indicavam letras para soletrar. E embora Jackson seja (estranho paradoxo!) consideravelmente mais velho do que os outros dois, muitas foram as corridas e as cambalhotas que demos os dois.” (Loving 87) Quando preparou a sua narrativa de memórias, Dias Exemplares, Whitman intitulou uma das secções iniciais “Paumanok, e a minha vida aí em criança e na juventude”. O título revela a relação simbólica entre as impressões iniciais da juventude e as poéticas da maturidade, a qual é evidente naquele que um dia seria dos seus poemas mais conhecidos, “Saído de um Berço, Sempre Embalado”. Escreveu então: "Eu, aquele que canta as dores e as alegrias, que une o presente e o futuro,/ Aceitando todas as sugestões para se servir delas, mas dando um rápido salto para além delas,/ Canto uma recordação.// Outrora em Paumanok,/ Quando o perfume do lilás pairava no ar, e a erva de Maio crescia,/ Ao longo desta praia, nas roseiras bravas... (Whitman 237-238)"' Bom fim de semana!

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Excerto do Diário de T. E. Hulme

sobre a vida nas trincheiras, na I Guerra Mundial: "The only thing that makes you feel nervous is when the star shells go off & you stand revealed quite clearly as in daylight. You have then the most wonderful feeling as if you were suddenly naked in the street and didn't like it... It's really like a kind of nightmare in which you are in the middle of an enormous saucer of mud with explosions & shots going off all around the edge, a sort of fringe of palm trees made of fireworks all round it." O TLS apresenta, esta semana, um ensaio sobre o poeta da autoria de Patrick McGuiness.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Que bom! Chegou hoje pelo correio!

Histórias de vampiros

Amanhã, dia 21, às 11.30h, no colóquio/congresso Mensageiros das Estrelas, na FLUL, estarei a falar de vampiros. Only Lovers Left Alive, diga-se. Aqui fica um segmento da minha intervenção: "16. Também Detroit, signo da indústria automóvel – Motor Town – e da indústria musical – a editora Motown, participa da dimensão fantasmática do espaço, agora eleito à categoria de ruína. Ruína não significa, contudo, termo, fim, morte, pois, como recorda María Zambrano, “[a]s ruínas são o que há de mais vivo da história, pois só vive historicamente aquilo que sobreviveu à sua destruição, o que ficou em ruínas. E assim, as ruínas dar-nos-ão o ponto de identidade entre o viver pessoal – entre a história pessoal – e a história.” (Zambrano 217) Cidade fantasma, cidade espectral, signo da ambiguidade entre Ser e Parecer. Deste modo, de acordo com o optimismo de Eve, “há-de renascer.” "

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Uma forma de estar em boa companhia

Desde a minha adolescência que a música me acompanhou nos momentos de estudo. E assim continua a ser. Hoje, enquanto trabalho, continuo a tentar descobrir novas melodias. Deixo-vos aqui o registo de alguns músicos que me acompanharam enquanto andava à procura de uma linha condutora para a minha apresentação no congresso Mensageiros das Estrelas, sobre Only Lovers Left Alive. Os músicos são todos de jazz. Talvez vos interessem. A foto é de Ivo Perelman, um saxofonista brasileiro, nascido em 1961. Um jovem, portanto. Eis então os nomes destes amigos pela sequência que os ouvi: Archie Shepp, Randy Weston, Thomas Tedesco, David Murray (vi-o nos EUA e aqui em Lisboa), Kit Downes, Sadao Watanabe, Luca Luciano (tem nome de gangster, mas, embora seja italiano, fica-se pelo saxofone), Andrew Hill, Jimmy Giuffre, David Binney, Roy Haynes, Alice Coltrane (sim, foi casada com o Mestre), Nheap (um projecto de Massimo Discepoli), Kenny Barron, Regina Carter, Lynne Arriale, Ivo Perelman, Eric Vloeimans, John Patitucci, Odean Pope. É só escolher...

Lewis Carroll

Acaba de vir a lume esta tradução dos clássicos de Lewis Carroll, publicada pela Relógio D'Água.
Entre estes textos surgem cartas suas por mim traduzidas algures nos anos 90. Aqui fica a informação.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Ai, a desgraça destes tempos que correm...

"... devido ao nosso facilitismo, ao permitirmos que quem quiser se possa casar, sendo demasiado indulgentes e tolerantes em todas as situações, nenhuma família está segura, quase nenhum homem livre de ser atingido por uma grave enfermidade, quando não se fazem escolhas, e até os mais velhos se casam, assim como muitos garanhões de raça ... Ficará para a posteridade que a nossa geração é corrompida, temos muitas pessoas fracas, quer de corpo quer de espírito, muitas doenças selvagens a desenvolverem-se entre nós, famílias loucas, parentes peremptores [os nossos progenitores são a nossa ruína], os nossos pais maus, e parece que ainda seremos piores." Não, não estava a falar destes tempos, mas dos de Robert Burton, diagnosticados em Anatomia da Melancolia, originalmente publicada em 1621. Vale a pena ler, nomeadamente para quem deseje penetrar mais fundo na paradoxal cultura do Renascimento e dele emergente.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A mística do instante

é o mais recente livro de Tolentino Mendonça. Cada vez mais brilhante, diga-se! O livro... li-o na primeira metade do fim de semana. Para crentes e não crentes, como ficou provado ontem, ao fim da tarde, no lançamento feito pelo agnóstico (assim se autodefiniu) Carlos Vaz Marques. A mim, ajudou-me a compreender o sentido deste meu percurso; como outros o têm vindo a fazer, aliás. Um deles foi o livro de José Frazão, Entre-tanto, de que já dei notícia neste espaço. Dele me lembrei enquanto lia A mística do instante. Aqui vos deixo um passo da obra de Tolentino: "Gosto muito da definição que li em Georges Bataille, e que serve tanto o que ele chamava a sua «mística ateísta», como descreve amplamente uma mística cristã. A mística, diz ele, é uma experiência nua. Antes de tudo, a definição é justa porque ancora a mística no domínio da experiência. O problema de tantas resistências em relação à mística reside exatamente na evidência de que, em seu nome, têm sido promovidos todo o tipo de evanescências e escapismos. O contrário do que vem dito no texto da carta aos Hebreus: «Não te agradaram oblações, nem holocaustos... mas deste-me um corpo.» (Heb 10,5). A mística tem peso. É corpo, experiência, letra, lugar, tessitura de vivido. A maior parte das vezes, o que falta ao itinerário crente não são, de facto, ideias, mas corporeidade, ressonância, espessura. Para explicá-lo não bastam conceitos, nem estruturas. A precariedade e a fragilidade do corpo; o grito, universal e concreto, que dele brota; a sua comum e quotidiana respiração aproximam-nos mais de Deus do que qualquer elaboração concetual. Mas não nos devemos esquecer de que a experiência mística é experiência nua. A experiência crente supõe uma confiança, não uma garantia. A fé não possui o objeto que a funda, porque ele é alter, é sempre outro. Como escreve Michel de Certeau: «Avizinhando-se daquele que amam, os crentes experimentam sempre, de uma forma ou de outra, o sentimento do vazio: abraçam uma sombra. Acreditam encontrá-lo se avançarem ao seu encontro, mas Ele não está lá. Procuram em toda a parte, perscrutam em cada detalhe onde Ele possa estar. Mas Ele não está em parte alguma.» Os místicos sabem que Deus se dá ausentando-se. Entre Deus e nós há um espaço vazio. Nós movemo-nos nesse espaço. O essencial está além, só na pobreza da nossa carne e do nosso tempo, que são também carne e tempo de Deus, podemos entrevê-lo. Ver, entrever e experimentá-lo na transparência do instante. Não é fugindo ao banal e ao ordinário, pois ele habita todo o comprimento delicioso e árduo do nosso caminho. Podemos, por isso, entender como uma oração o verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, que começa assim: «Creio na nudez da minha vida.» Por difícil e turva que ela se possa revelar, não há via de maior lucidez e transparência para começarmos a viagem espiritual."

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Pomar, a propósito do espelho

Após ter visitado a exposição de Pomar, sobre a qual aqui falei, tenho andado a ler A cegueira dos pintores, o seu segundo volume de ensaios. Entre as pérolas que li encontramos, eis algo que colhi numa nota de rodapé (Ah, S. Segismundo
, explicai-me este fascínio por aquilo que é remetido para as margens...) a propósito do espelho: "O único espelho verdadeiro é, para Bachelard, o espelho das águas que Narciso atravessou: e o que o distingue do espelho natural o espelho produzido pela indústria, espécie de concavidade vítrea que mancha as nossas paredes, e aquilo em que assenta o parentesco deste com o quadro, é efectivamente a lesão que produz com a ofensiva presença dos seus limites, com a separação nítida entre o que pertence ao domínio da imagem e o real ambiente. Introduzir numa sala um espelho ou um quadro é praticamente fazer uma colagem em que se matam reciprocamente dois mundos sem escala comum: o meio que nos rodeia e em que nos deslocamos e esta aparência de janela, de buraco ou de poço onde espreitamos surpresas e confirmações e que, se nos atrevemos a tocá-lo, nos remete, despaisados, para uma superfície cega." Bom fim de semana.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Shakespeare em Cascais

Entre, como diria o TinTin, "dois queridos e velhos amigos" - Salvato Telles de Menezes e António Feijó; ouvindo um deles - António Feijó; e falando em postura hamletiana
Após estes apontamentos visuais, eis um breve passo da minha intervenção onde analisei as versões do soneto XVIII, feitas por Carlos de Oliveira e por Vasco Graça Moura: "Basta observarmos o primeiro verso do soneto XVIII - Shall I compare thee to a summer's day? - para detectarmos duas posturas distintas: Carlos de Oliveira tenta responder afirmativamente ao desafio prosódico colocado por Shakespeare, optando por uma fluidez sintáctica idêntica àquele que será uma certa oralidade, embora com algumas elipses. Já Vasco Graça Moura introduz um tom algo cortês que insinua a sua opção estética, isto é, a de recriar Shakespeare através da simulação de uma atmosfera renascentista, que será mais adiante reconhecível em palavras como formosura, tez dourada ou Natura, ou em violentas alterações, rupturas, sintácticas, como no verso “vento agreste botões frágeis fustiga”. Creio, aliás, ser impossível olhar para esta versão do soneto XVIII feita por Vasco Graça Moura, sem ter presente quanto ele, como tradutor, ensaísta e poeta (veja-se a imensa ironia com que ele convoca a poesia de Camões nesse livro singular que é Variações Metálicas, onde os seus versos revisitam as esculturas em ferro de José Aurélio através das fotografias de Ana Gaiaz), quanto ele, dizia, dedicou às estéticas renascentistas."

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Há alguns anos

vi um poster com esta frase no gabinete de um colega: "Senhor, dai-me paciência para lidar com alguns colegas, porque se me dais força, parto-lhes as trombas." A propósito deixo esta reflexão de São João Crisóstomo: "Considera pois quantas vantagens retiras duma ofensa acolhida com humildade e mansidão. Desse modo, em primeiro lugar — e é o mais importante —, mereces o perdão dos teus pecados. Seguidamente, exercitas a paciência e a coragem. Em terceiro lugar adquires a mansidão e a caridade, pois aquele que é incapaz de se zangar com os que lhe fizeram mal será ainda mais caridoso com os que o amam. Em quarto lugar, arrancas totalmente a cólera do teu coração, o que é um bem incomparável; evidentemente, aquele que liberta a sua alma da cólera também se desembaraça da tristeza: não desperdiçará a sua vida em tristezas e vãs inquietações. É que nós punimo-nos a nós próprios quando odiamos os outros; só fazemos bem a nós próprios quando os amamos. Além disso, todos te respeitarão, mesmo os teus inimigos, ainda que sejam os demónios. Melhor ainda, se assim te comportares, até deixarás de ter inimigos."

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Moita Macedo em Elvas

Para quem passe por Elvas, ou pelos arredores, aqui fica o convite para que visite a exposição da obra plástica de Moita Macedo num diálogo com a sua produção poética. Antonio Franco, director do Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, e curador da exposição, fez um trabalho a reter quer pela coerência da selecção das obras, quer pelo aproveitamento do espaço. Foi seu o convite para que eu escolhesse poemas do artista que, explícita ou implicitamente, dialogassem com a dimensão visual. Deixo-vos a capa do catálogo - onde encontrarão ainda um texto de Tomás Paredes, e também um texto meu sobre o tal diálogo, tendo o confessionalismo como eixo estruturante -, e ainda um exemplo do encontro entre a palavra e a imagem. No Museu de Arte Contemporânea podem ainda aproveitar para ver a exposição feita a partir da colecção de António Cachola, um caso a reter de critério estético.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Toledo, vista por Maurice Barrès,

sob o olhar de El Greco: "Em plena luz, a imperial Toledo concentra-se nesta dura montanha com saliências que ela desposa e das quais só o cimo cobre. Os restos dos seus palácios correm largamente para o Tejo, e lá no alto abandonam-lhe uma soberba posição de orgulhosa caída em desgraça. Como transmitir os grandes movimentos monocromáticos desta terra violácea e ocre? Ter-se-iam de assinalar a sua cor e as suas curvas, e depois tornar de igual modo sensíveis as partes com muito alimento, pesadas, onde nenhum edifício é notável mas todos têm, de facto, a nobreza dos grandes espaços repeltos de arquitectura. O enorme rochedo que suporta uma cidade tão gloriosa tem proporções magníficas para servir de engaste a um tal diamante; e por tanto vermos as suas pendentes largas e decididas, as suas negras asperezas que o rio banha, sentimos uma sensação de plenitude."

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O olhar sobre a cidade

Em 2015, a 4 de Julho de 2015, mais precisamente, passam trinta anos desses instantes em que vi Nova Iorque a partir das Torres Gémeas. Porque esses instantes únicos pertencem apenas à memória, e antecipando essa "efeméride", deixo-vos o registo dessa experiência segundo Michel de Certeau em L'invention du quotidien: "Être élevé au sommet du World Trade Center, c'est être enlevé à l'emprise de la ville. Le corps n'est plu enlacé par les rues qui le tournent et le retournent selon une loi anonyme; ni possédé, joueur ou joué, par la rumeur de tant de différences et par la nervosité du trafic new-yorkais. Celui qui monte là-haut sort de la masse qui emporte et brasse en elle-même toute identité d'auteurs ou de spectateurs. Icare au-dessus de ces eaux, il peut ignorer les ruses de Dédale en des labyrinthes mobiles et sans fin. Son élévation le transfigure en voyeur. Elle le met à distance. ... Au 110e étage, una affiche, tel un sphynx, propose une énigme au piéton un instant changé en visionnaire: It's hard to be down when you're up."

terça-feira, 22 de julho de 2014

Tratado dos Olhos

é o título do catálogo referente à exposição homónima de Júlio Pomar que podereis (devereis) visitar no Atelier-Museu Júlio Pomar. O curador da exposição, Paulo Pires do Vale, concebeu um diálogo espacial, particularmente fascinante, entre a palavra e a imagem do artista, tendo como mediador pintores a quem a sua obra deve em determinados momentos do seu longo percurso. O catálogo, onde a arte de Manuel Rosa é evidente, merece ser lido e fruido. Como fruido deve ser A cegueira do pintor, o filme, da autoria do curador e de Catarina Mourão, que passa ininterruptamente, lá no alto produzindo um segundo texto para quem deambula no piso inferior. Importa redescobrir a obra ensaística de Pomar - cujos fragmentos iluminam os quadros. Os dois primeiros volumes já vieram a lume, e poderemos lê-los naquele espaço. Sobre esse diálogo escreveu Paulo Pires do Vale: "Em Pomar, a dupla grafia, o desenho do desenho e o desenho da palavra, surge inseparável. ... Uma complementaridade que resulta da consciência do fulgor da falha de cada um dos empreendimentos." Deixo-vos aqui este autoretrato - o primeiro do artista - que podereis ver na exposição. Não percam!

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Três filmes que recomendo

São eles: Only lovers left alive, de Jim Jarmusch, Os filhos do padre, de Vinko Bresan, e Violette, de Martin Provost. São filmes obviamente diferentes tanto no género - da revisitação do filme de vampiros, à comédia, passando pelo biopic -, como na qualidade (Violette é, para mim, inferior aos outros mas teve a virtude de me revelar alguém que, confesso, desconhecia). Os filhos do padre é absolutamente hilariante, apesar da melancolia final. Já Jim Jarmusch está no seu melhor. Quando o meu filho mais velho me perguntou se queria ir ver um filme de vampiros, pensei que estava a gozar comigo. No entanto, bastou ver o frame que aqui insiro, para me decidir de imediato.How visual, como diria Eva numa cena de sublime ironia. Afinal, quem resiste a um casal de vampiros tão sexy, ainda por cima chamados Adão e Eva? Além disso, temos Christopher Marlowe (ele mesmo!) com o impecável John Hurt. Não percam!

terça-feira, 15 de julho de 2014

Hopkins

Descobri este "retiro" centrado na poesia de Gerard Manley Hopkins. Podem consultá-lo em http://pray-as-you-go.org/prayer-resources/gerard-manley-hopkins/

Para alcançar a virtude...

São Rafael Arnaiz Barón (1911-1938), monge trapista espanhol, diz-nos como: "Que tortuosos caminhos temos de percorrer para alcançar a simplicidade! […] Muitas vezes, se não praticamos esta virtude, é devido ao nosso modo de ser complicado, que rejeita a simplicidade. Muitas vezes, não conseguimos entender a grandiosidade que se esconde num acto de simplicidade. Procuramos o que é grandioso no que é complicado; buscamos a magnificência das coisas na sua dificuldade […] A virtude, Deus, a vida interior: que difícil me parecia viver tudo isto! Agora, não é que tenha a virtude, ou que o meu conhecimento de Deus e da vida espiritual esteja completamente claro, mas vi que alcançamos tudo isso justamente ao contrário, pela simplicidade de coração e pela pureza de espírito. […] Sim, é verdade: para alcançar a virtude não é necessário fazer um plano de caminho, nem dedicarmo-nos a grandes estudos; basta o simples acto de querer; muitas vezes, basta a simples vontade. Então, porque não alcançamos a virtude mais vezes? Porque não somos simples; porque complicamos os nossos desejos; porque, devido à nossa falta de vontade, tudo o que queremos se torna difícil. Ela deixa-se levar pelo que lhe agrada, pelo que é cómodo, pelo que não é necessário, e muitas vezes por desejos desordenados. […] Se quiséssemos, seriamos santos, e é muito mais difícil ser engenheiro do que ser santo."

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Division Street,

referi-o há dias, é um livro de poemas (o primeiro) de Helen Mort, uma jovem poeta inglesa, que tenho vindo a ler com renovado prazer. Como referi na altura, há aqui um revisitar prosódico que, no seu encontro com a memória pessoal e a colectiva (o título evoca os conflitos laborais/sociais, em Sheffield, corria o ano de 1984 - um ano, portanto, do nascimento de Helen Mort), jamais resvala para o sentimentalismo. Deixo-vos o poema de abertura, intitulado "The French for Death" (ainda o wit), juntamente com a capa do livro e de uma foto da autora:

terça-feira, 1 de julho de 2014

Os poetas ingleses contemporâneos

persistem no diálogo com tradições (formas) noutros lugares consideradas arcaicas. Fazem-no, porém, através de uma ancoragem no quotidiano e de uma discursividade declarativa que os impede de resvalar para o formalismo. Quando digo "poetas ingleses", estou a pensar em consagrados, como Hugo Williams (72 anos), ou jovens, como Helen Mort (nasceu em 85 e escreveu um belo livro, Division Street [dele falarei noutra altura]); poetas que muito me dizem... muito me sensibilizam... E depois há aquele sentido de humor que nos é tão estranho. Vejam estes versos de I knew the bride, o mais recente livro de Hugo williams que estou a ler, lenta e deliciadamente: “The beauty of dialysis / is that it saves you the trouble / of planning too far ahead”. Boas leituras!

Se passarem por Cascais

façam uma pausa na Fundação Dom Luís e fruam a exposição de Diogo Muñoz. Sobre ele escreveu Giada Rodani: Na sua produção mais recente Diogo desenvolveu um percurso de procura, que o levou a atingir um repertório de temáticas e imagens que remetem à cultura Pop assim como a ícones da história da arte. É aqui que, no espaço da tela, se sucedem cenários e personagens que trasladados da realidade histórica entram no presente da tela, no presente do pintor. Mestres do passado como Velasquez e Picasso dialogam com os ícones pop do nosso tempo, aqueles da BD e das revistas ilustradas, criando um vórtice temporal no qual a cultura alta se mescla com aquela das massas, da televisão, do espectáculo, gerando um "pastiche" de anacronismos imagéticos. Sintoma da actual perda de perspectiva do presente, da massificação e desvalorização do significado, o seu olhar frequentemente irónico, por vezes sarcástico, reflete uma sociedade, a ocidental, saturada de estímulos, que reduz a cultura a produto cultural e, ao mesmo tempo, a priva de verdadeiros pontos de referência. Os protagonistas dos seus quadros, reduzidos a ícones e a ídolos, falam desta "essência". Todavia, no momento em que tais personagens são esvaziados do seu significado comum, são libertados do seu rígido simbolismo para adquirir nova vida através da recontextualização espacio-temporal que lhes imprime o quadro. Estou certo de que não vão dar o vosso tempo por perdido...

"Se ao menos a vida

fosse como o jazz," dei por mim a pensar durante o concerto do quarteto de Massimo Cavalli, na passada sexta-feira, no HotClub. Porquê? Porque este é um dos raros espaços em que indivíduo e colectivo se conjugam, formando um todo harmonioso, sem, todavia, deixarem de expressar e afirmar as suas individualidades. Além disso - e talvez mais relevante -, num país em que a epopeia nacional termina com a palavra "inveja", o jazz surpreende-nos com essa coisa algo inesperada que é o facto de os diferentes músicos fruirem as intervenções alheias. Divertem-se com elas. Enaltecem-nas. Aplaudem-nas. Cá fora, encolhemos os ombros e dizemos (sussurramos...), na melhor das hipóteses: "Não foi mau, mas podia ter sido melhor..." Ah, a inveja! Já, em tempos, aqui falei do cd do Massimo Cavalli. Fica, portanto, o lembrete. Se ao menos a vida fosse como o jazz...

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Foi o terceiro livro que me chegou, hoje de manhã, pelo correio,

refiro-me ao número mais recente da Communio, sob o tema "A apelo da fè". Para quem possa interessar, eis o índice: Christophe Bourgeois,"O testemunho verídico"; Marc Botzung, "Testemunho cristão em terra do islão"; Vincent Carraud, "Apologética inactual, apologética actual"; José M. Pereira de Almeida, "O apelo da fé nos lugares da vulnerabilidade"; Aida Carvalho, "A Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios"; M.-F. Baslez, "Apologética ou o paradoxo cristão"; Alfredo Teixeira, "O canto da Natividade." Yours truly tem aqui um artigo intitulado "Vozes nas margens da história." American studies? Pois claro.

Futebol, ou o wit britânico

Que George Best foi um grande jogador, é algo que qualquer pessoa com um mínimo de memória da nobre arte, sabe. O que muitas vezes se ignora é o seu sentido de humor... britânico, claro. Ficou célebre a sua afirmação (cito de memória): "Em 1969 abandonei o álcool e as mulheres. Foram vinte minutos muito difíceis..." Num recente ensaio no TLS, intitulado "Last Dances", Brian Cummings revela outro episódio pleno de humor, por parte de alguém que talvez não se levasse demasiado a sério: "Sitting in a drab hotel room with an old journalist friend after the latest alarm about his liver, watching an old video of his playing days, George Best suddenly jumped up from his armchair: 'Jesus Christ!', he shouted at the screen. 'I'd forgotten I was that fucking good!'"

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Morava ao fundo da minha rua,

cruzavam-nos por essas bandas, no Califa ou na esplanada do Dom Giovanni. Tinha por hábito dizer-me que eu era como o Kant, pois podia acertar o relógio à hora que eu ia tomar café a seguir ao almoço. Um bom amigo e um homem de uma cultura imensa que ia despontando nas conversas que surgiam ocasionalmente. A última foi há dias sobre o Mestre Lagoa Henriques, com a Joana Vasconcelos à mistura. Tínhamo-la começado uns dias atrás, à entrada do Califa, mas ela fora interrompida por um telefonema que ele recebeu. Prosseguimo-la à porta do Dom Giovanni, enquanto a mulher do Rui Mário insistia que tinha conseguida uma mesa no Califa para almoçarem. Mas ele, claro, amador que era dessa nobre arte da conversa, insistia em introduzir algo de novo... para desespero dela. Quando há oito anos lancei o meu livro Ekphrasis, pedi-lhe que o apresentasse. Foi no Instituto Camões e o Rui Mário, apaixonado como sempre, falou mais de uma hora... Na primeira fila estava outro vulto que partiu há pouco, o Vasco Graça Moura. Há pouco passei junto ao prédio do Rui Mário e olhei para a janela do escritório, semi-oculta, como sempre, por um monte de livros. Olhara para ela quando a seguir ao almoço... Desta feita, na janela ao lado, estava uma jarra com cravos. A notícia chegou-me ao fim da manhã por um sms do Vítor Serrão: um autêntico murro no estômago! O Rui Mário?! Como é que isso é possível?! Que saudade, meu amigo! Ficamos "mais pobres e mais sós", como escreveu o Carlos de Oliveira.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Ontem, ao fim da tarde,

na Associação José Afonso, em Lisboa, na (minha) apresentação de Carta a Zeca Afonso e Outros Poemas para lembrar Abril, o mais recente livro de poemas de um bom amigo, José Jorge Letria.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Relevante ou não?

Esta é a questão a que os "camusianos encartados" não terão dúvidas em responder: claro que não! Refiro-me à primeira secção dos Journaux de Voyage, dedicada à viagem e estadia de Albert Camus na land of the free, and home of the brave. Contudo, quando olhamos com atenção para a forma como ele vai percepcionando a singularidade daquele espaço, de imediato constatamos que não é necessário escrever muito para dizer coisas interessantes... e argutas. Numa conferência sobre estes textos, com que encerrou o colóquio sobre Camus em Évora no final do ano passado, abordei a importância que assume a sua leitura do detalhe (sim, eu sei que é um galicismo) para o desvendar daquela singularidade. Deixo-vos um excerto significativo a este nível, e depois, porque peguei nesse livro deliciosamente fascinante que é L'Amérique au jour le jour, de Simone de Beauvoir, vou-me sentar tranquilamente a relê-lo e, perdoem-me a anacronia, a ouvir o Francesco De Gregori. Aqui fica o tal excerto: "Au premier regard, hideuse ville inhumaine. Mais je sais qu’on change d’avis. Ce sont des détails qui me frappent : que les ramasseurs d’ordures portent des gants, que la circulation est disciplinée, sans intervention d’agents aux carrefours, etc., que personne n’a jamais de monnaie dans ce pays et que tout le monde a l’air de sortir d’un film de série. Le soir, traversant Broadway en taxi, fatigué et fiévreux, je suis littéralement abasourdi par la foire lumineuse."

Lembrando uma colega muito querida...

Hoje, num comentário com os meus alunos a propósito de metodologias, lembrei-me de uma colega, das mais queridas, que tive na Faculdade de Letras. Chamava-se Albertina Matos e foram poucas, muito poucas, as pessoas (vulgo colegas) em quem, ao longo dos anos, nestas andanças académicas, confiei como nela. Poucas pessoas, também, me definiram tão certeiramente como ela. Foi uma tarde, há uns vinte anos, após uma reunião do chamado ramo educacional, por mim dirigida. À saída, na sala 4.2., ao fundo do corredor, à direita, desta foto,
onde hoje decorrem provas de mestrado, ela voltou-se para mim e disse-me: "Gostas de remexer o fundo das águas, sem agitar a superfície." Aqui fica esta nota pessoal, a propósito de uma amiga que partiu demasiado cedo. Boa semana!

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Entre-tanto II

Aqui vos deixo a segunda parte da minha apresentação do livro de José Frazão Correia: "Uma vez mais isso parece ocorrer quando José Frazão recorda que “somos seres de palavras que se exprimem por palavras” (120), algo que traz à mente uma asserção do já mencionado Ralph Waldo Emerson, segundo o qual “somos símbolos e habitamos símbolos.” No entanto, contrariamente ao pensador americano, que situa a sua reflexão no âmbito da evidente ambiguidade da linguagem, José Frazão assume, como vimos, a importância de superarmos o aparente literalismo dessa mesma linguagem. Importa acentuar um facto: este processo de leitura é também um processo de autodescoberta; nas suas palavras: “consciência de um eu que se afirma, mas enquanto se redimensiona pelo exercício autobiográfico e relacional de se narrar como intriga de tantos fios que confluem numa tensão difícil, mas fecunda”. (122) Curiosa, ainda que não acidental, é esta convocação de um universo semântico da crítica e da teoria literárias: autobiográfico, narrar, intriga. Antes fora Deus que, na enunciação de Salmann, emergia como “índice da necessidade do dever procurar” (72); índice, signo caro à semiologia. E mais adiante serão as quatro parábolas. E mais adiante ainda será “a poética do corpo eclesial”, expressão colhida em Stella Morra, que surge na sequência da importância que assumem “espaços e ... formas plásticas, ... luzes, ... sombras e... movimentos... perfumes e... cores, ... silêncio e ... canto” (141) na celebração ritual. Não falamos, portanto, de compartimento estanques, como comprovaram Robert Alter no seu clássico The Art of Biblical Narrative, e, entre nós, José Tolentino Mendonça em A construção de Jesus. Assim se impõe uma categoria narrativa, como a designamos nos estudos literários; uma categoria narrativa que no âmbito desta reflexão assume um papel de profunda revisão identitária; refiro-me à descrição. Para José Frazão, ela surge no culminar deste processo de redescoberta do sujeito: “A generosidade da atenção, a sabedoria da leitura, a arte da descrição” (80). Exactamente isso, “arte da descrição”. Tudo modelado pelo “estilo de Jesus” (81). Num primeiro instante desta minha brevíssima abordagem centrei-me na linguagem; num segundo instante centrei-me na leitura; é chegado o terceiro e derradeiro momento, aquele em que me devo centrar no estilo. Signo comummente associado à aparência, à exterioridade, à pose, à simulação, à frivolidade até, o estilo emerge nestas páginas como conceito nuclear. Poder-se-á também pensar no estilo da escrita. E aqui uma vez mais me veem à mente as palavras de Emerson, desta feita numa carta a Walt Whitman, pois também na prosa de José Frazão Correia encontramos “coisas incomparáveis, ditas incomparavelmente bem, como elas devem ser ditas.” Mas não é apenas uma prosa que se impõe pela clareza, inteligência e fluidez. Recordando de novo aquele verso que referi no início, diria que José Frazão “está em boa companhia”. Lembremos o início da Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma de 2014 quando, ao reflectir sobre as palavras de São Paulo em Coríntios 2, afirma: “Tais palavras dizem-nos, antes de mais nada, qual é o estilo de Deus.” O estilo de Deus. Não estamos, portanto, no plano da simulação, mas sim da identidade, naquela que para nós, cristãos, será a sua acepção mais radical. Daí a presença do Génesis na leitura que José Frazão nos oferece, lembrando a amplitude deste entre-tanto, na qual devemos discernir e inscrever a nossa experiência biográfica. O nosso autor reitera a centralidade do estilo na sua elaboração - o “estilo eucarístico”, o “estilo de Jesus”, “ao estilo de Jesus no caminho de Emaús” (111), “o estilo cristão”-, numa estratégia pedagógica de liberdade, visto não impor, desde logo, ao leitor uma definição, antes o levando a construí-la através da reflexão que é obrigado a realizar. Apenas quando a elaboração por ele construída, vai avançada, estamos na página 88, a definição é proposta: “o estilo é um modo particular de habitar o mundo. Por isso, de olhar e de sentir, de pensar e de agir. É o toque distintivo de uma presença que se representa num corpo vivo e visível.” (88) Afinal a resposta que eu procurava no início, estava na viagem que a leitura é, no processo de redescoberta da linguagem e, consequentemente, do estilo; a viagem de cada um de nós, ancorada nas nossas circunstâncias biográficas, assim desvendando um estilo moldado pela presença constante de Cristo. E uma vez mais me veio à mente o tal verso, agora numa nova dimensão: “uma forma de estar em boa companhia”. Que melhor companhia podemos nós desejar? "

terça-feira, 1 de abril de 2014

Entre-tanto, o registo visual

Entre-tanto I

Aqui vos deixo a primeira parte da minha apresentação do livro de José Frazão Correia que teve lugar ontem, ao fim do dia, no Corte Inglês. Espero que gostem, mas, acima de tudo, espero que o meu texto vos motive a ler este belo livro. Voilà: "Quando o José me convidou para participar no lançamento do seu livro mais recente, foi sensibilizado e honrado que de imediato aceitei. Com efeito, os seus textos haviam-me tocado de uma forma particular, tendo eu chegado mesmo a fazer algo que o José ignora, ou seja, citá-lo numa palestra minha sobre -, imagine-se, a presença do jazz na poesia modernista de expressão portuguesa. No entanto, passada a surpresa inicial, não pude deixar de reflectir no facto de este ser um livro de Teologia, escrito por um teólogo, e apresentado por um teólogo. Qual seria, portanto, o meu lugar aqui, com o meu perfil de Letras, não pude deixar de me interrogar. Apesar de esta poder ser, tomando um verso que li algures a propósito de um quadro de Edward Hopper, “uma forma de estar em boa companhia”, comecei a sentir algum desconforto. Afinal, não tendo eu o hábito de me pronunciar sobre áreas do saber com as quais não estou intimamente familiarizado, qual poderia ser o meu contributo? O facto de o José ser um homem sensato, de alguma forma me tranquilizou. Haveria, por certo, algo que ele discernia em mim, e que eu não conseguia ainda vislumbrar. Decidi, por isso, esperar pelo dia seguinte, quando o livro chegaria às minhas mãos, para tentar desvendar qual seria o meu contributo. E foi assim que, desde esses instantes iniciais, à medida que o ia descobrindo, ia tentando antecipar o rumo das minhas palavras hoje. Intimamente, enquanto o lia, ansiava por aquele momento em que ele se revelaria, em que ele me forneceria uma chave, uma resolução mágica. Não pude deixar de pensar no protagonista de The Figure in the Carpet, o conto de Henry James, nutrindo a secreta esperança de que a revelação chegaria ao virar da próxima página. No entanto, porque, para mim, a literatura tem uma dimensão pedagógica, tinha a noção de que semelhante demanda era uma quimera. Na verdade, era o próprio processo de leitura que me perturbava. A perturbação começara, aliás, com o título, Entre-tanto. Não, Entretanto, mas Entre-tanto. Um hífen cortava a palavra em duas, decompunha-a, para logo a recompor. Evidenciava que o tempo, o instante entre um antes e um depois, coexistia com um lugar, entre-tanto ou no meio de tanto, ou no seio de tanto ou algures no tanto, não necessariamente no centro, talvez nas margens, na fronteira, mas sempre algures no tanto, dentro do tanto. A velocidade e a voracidade dos tempos que vivemos, com suas abreviações e cifras, impondo-se na linguagem do nosso quotidiano, era pouco compatível com o tempo em que eu me detinha para meditar naquilo que aquela banal conjunção indiciava. No entanto, a pedagogia desta obra, a lição, começava no título. O título indiciava ou anunciava aquele que seria um método de escrita, um método que passava pela reflexão sobre a palavra escolhida, pela sua etimologia, pela sua composição, pelas marcas do tempo que ela encerra. Uma suspensão para a reflexão sobre o evidente, sobre o banal, para redescobrir o mais banal dos signos, as potencialidades de sentido que ele enuncia. Daí os itálicos, a coexistência de segmentos em itálico com tipo de letra normal, os hífens: o entre-ver, o pressentir, o entre-o-tanto. Ao desmembrar a palavra, era um véu que se erguia. Duas vozes emergiram na minha memória perante este processo. Desde logo, a de Michel Foucault que lembrava ter existido um tempo em que o espaço era necessariamente transitivo, oferecendo-se e solicitando a interpretação do indivíduo; a prosa do mundo predominava, fazendo do sujeito um hermeneuta natural, ou aquilo que um crítico um dia referiu ser um hermeneuta compulsivo, ao evocar a experiência radical dos colonos puritanos no Novo Mundo. Depois, era a voz de Ralph Waldo Emerson que proclamara ser a linguagem poesia fóssil. Com efeito, José Frazão Correia perturba a tranquilidade do leitor, exigindo que este se assuma, no presente, como hermeneuta que desvenda a prosa do mundo, e como arqueólogo em busca do sentido no tempo. Mas não é apenas isso. Se o fosse, estaríamos perante o domínio da semiologia; uma opção legítima, mas que não se inscreve no horizonte aqui perscrutado. Com efeito, ainda no início do livro, José Frazão cita Giovanni Cesare Pagazzi: “o mundo da carne do Filho não é só a humanidade, mas todas as coisas que viu, sentiu, gostou, tocou, cheirou.” (31) Para logo concluir: “o mundo real com o qual esteve em con-tacto sensível.” Daí a importância que o mais banal signo pode assumir na nossa compreensão do real. Assim se confirma que Walt Whitman, o poeta americano, tinha razão quando, em “Canto de mim mesmo”, proclamara: “Nem uma polegada, nem um fragmento de uma polegada, é impuro” (Whitman 41). José Frazão revê e amplia esta ideia ao escrever: “cada porção de espaço e de cada fragmento de tempo sabe fazer um acontecimento de graça” (87). A recusa da impureza é, com efeito, uma asserção que indicia as tensões teológicas dos Estados Unidos de meados do século XIX, quando o carácter operativo de um puritanismo tardio era questionado. Poeta e teólogo convergem, deste modo, nesta percepção da existência."