quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Os livros de Kurtz


Deixo-vos um excerto da minha intervenção, hoje, na mesa-redonda, na FLUL, sobre Coppola e Conrad, com os meus amigos Fernando Guerreiro e Mário Jorge Torres:

"A leitura que vos proponho é impulsionada por um brevíssimo fragmento, um brevíssimo plano, de Apocalypse Now. ...
Que fragmento é, então, este? Apenas à segunda ou à terceira vez que vi o filme, apercebi-me da existência de alguns livros sobre uma banqueta naquilo que, eufemisticamente, poderíamos chamar aposentos do coronel Kurtz/Marlon Brando; nos aposentos onde ele iria exclamar perto do fim: “The horror. The horror.” O plano era demasiado rápido, pelo que não consegui vislumbrar que livros eram esses. ...
São eles um estudo antropológico, The Golden Bough, de Sir James Frazer, um ensaio sobre a lenda da demanda do Santo do Graal, From Ritual to Romance, de Jessie Weston, e a Bíblia. Ora, como sabem todos os presentes que tenham estudado Literatura Inglesa, os dois primeiros livros são mencionados por Eliot como presença determinante no seu poema The Waste Land; quanto à Bíblia, a sua influência neste poema é por demais evidente.
A presença casual daqueles livros não pode, assim, ser entendida enquanto mero adorno estético ou mera coincidência, mas antes como constituindo um discurso subliminar, um diálogo subliminar, como referi, de profundidade de Coppola com Conrad, via Eliot. Com efeito, se, por um lado, Heart of Darkness fornece a tal estrutura narrativa e alguns contornos simbólicos a partir dos quais muito do filme de Coppola se estrutura, por outro, tanto a poesia de Eliot – e aqui The Waste Land, poema maior do século XX, é nuclear - como os textos que esta convoca, definem uma atmosfera determinante para o desenrolar da acção. Portanto, focalizamos um paradigma concreto da história; não o da sequência de eventos, mas sim o da atmosfera. ...

No entanto, para levar a cabo a sua empresa, Willard necessitará de conhecer a coerência daquele espaço arcaico, de utilizar as suas armas primitivas (a faca), de se adaptar ao ritual (as pinturas no rosto), de agir no momento certo: atente-se na consonância entre o assasssinato de Kurtz e o ritual da morte do animal. Comprova-se, então, quão relevante era o livro de Jessie Weston, From Ritual to Romance. Nesta continuidade antropológica, que é também um regresso, reside a chave para a solução, e não num qualquer discurso do poder político/militar/civilizacional que suscitou a viagem de Willard. Aquela que seria, à partida, uma viagem funcional, dá lugar a uma viagem iniciática ao encontro dos fantasmas que Freud abordou no seu livro antes mencionado e que Eliot diagnosticou como sintoma de um declínio. Enfim, o enviado da ordem, do discurso civilizacional, necessita de descer às origens do mito. Comprova-se assim ser relevante a presença do livro de Sir James Frazer, The Golden Bough, entre as escolhas de Kurtz. Só depois Willard se retira, transportando consigo os livros, os papéis escritos por Kurtz, a assinatura do seu saber. Neste momento evidencia-se a centralidade da escrita em Apocalypse Now: afinal Kurtz persistirá através da palavra, da sua palavra. Por isso, ao matá-lo, Willard eleva-se , torna-se um homem superior e conhecedor da alteridade. Assim se justifica que, no regresso, ouvimos o seu monólogo interior, a sua voz: “Eles não o sabiam , mas eu já não era um deles …” A atmosfera ritualística e a simbiose da natureza com o homem, experienciadas no templo que a selva é, transformaram Willard. Como ele dissera, no início, quando começara a contar a sua história, após aquela experiência deixara de ser o mesmo. E isso devia-se tanto ao facto de ter conhecido Kurtz, como à viagem que realizara. Idêntica razão é apresentada por Marlow, o narrador de Heart of Darkness, no qual Coppola se inspirou para desenvolver Willard.
Assim, a par da viagem pelo rio - metáfora também de uma viagem ao encontro do inconsciente, dos seus fantasmas (algo que tanto transforma quem a guerra viveu), emerge a viagem através da palavra: o relatório sobre Kurtz, a escrita de Kurtz, a sua própria grafia, o graffitti que saúda Willard ao alcançar o espaço de Kurtz, os livros sobre a mesa, e a leitura do poema.
Um derradeiro aspecto: a leitura, a voz. Ambas participam desse passado mítico que percorre a narrativa. Ainda no início da viagem, Willard ouve um registo, uma gravação da voz de Kurtz e fica impressionado com ela. Ao chegar ao fim da viagem, o fotógrafo relembra-lhe o poder sedutor da voz de Kurtz. Quando este lê “The Hollow Men”, Willard comprova esse poder e essa síntese entre o texto, a escrita e a sua dimensão performativa e física, a leitura e a voz. Algo de fisicamente essencial, actuando para além do texto, define esta identidade poderosa. É ainda a interacção profunda entre significante e significado que, com Kurtz, emerge num processo de síntese radical.
Expressões éticas e estéticas, também, coexistem afinal no subtexto de Apocalypse Now.
Em tempos de ritmos estéticos frenéticos, pretendi apenas chamar a vossa atenção para a importância que podem ter os pequenos detalhes, os mais banais planos ou fragmentos, e também para a subtileza hermenêutica que pode estar presente nesses diálogos subliminares entre diferentes formas de expressão artística."

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Atmosferas



"Mildred Pierce a été filmé en super 16 et transféré. Nous voulions sentir le grain, avoir un feeling des années 70, trouver le lokk rétro d'un film des années 30-40 vu depuis les années 70. Todd [Haynes, o realizador] se référait au livre plutôt qu'au film de Michael Curtiz qui contenait meurtre et flash-back. Il est reparti de la source, du combat de la mère et de la fille, et du combat de classes. Il ne voulait pas d'une esthétique du film noir avec des ombres, mais retrouver la manière dont les films des années 70 comme Klute, Jour du fléau ou Chinatown ont regardé les films noirs. Pour cela le super 16 s'imposait...
Mildred Pierce se passe durant la Dépression. Todd voulait retrouver l'époque de la Farm Security Administration, créée par Roosevelt, l'époque où les films en couleurs commençaient.
Les couleurs étaient saturées et créaient un monde abstrait. Cette fois nou voulions un regard plus naturaliste sur le monde."
Depoimento de Ed Lachman, Cahiers du Cinéma (Novembro 2011)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Apocalypse Now


será objecto de reflexão numa mesa-redonda, pelas 12h, do próximo dia 23. Será no Anfiteatro II da Faculdade de Letras de Lisboa. Os interveniente serão Fernando Guerreiro, que irá abordar a presença da mulher no filme, Mário Jorge Torres, que falará da viagem pelo rio como viagem pela História do cinema, e yours truly que irá falar dos livros de Kurtz.
Aqui fica a notícia e o convite!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Interdisciplinaridade e comparatismo


vulgarizaram-se num léxico de banalidades que qualquer gato-sapato convoca e, com a candura dos simples, crê praticar.
Estas palavras evocam, todavia, campos particularmente complexos, no seio dos quais têm surgido reflexões muito estimulantes.
Uma delas, imprescindível, a meu ver, é a de Marc Bayard, espelhada em Histoire de l'art et le comparatisme - Les horizons du détour; um livro que recomendo a quem pretenda ir mais longe nestes estudos, e que consiga ler em francês, claro...
Do capítulo sobre Mantegna, deixo estas palavras iniciais:

"... nous étudierons la manière de peindre les nuages, la terre, l'eau - trois des quatre éléments - en Flandre et en Italie du Nord au XVe siècle, dans un premier temps. Dans un second temps, nous examinerons le traitement de ces motifs au sein de l'Italie du Nord, à Padoue et à Mantoue d'une part, à Venise de l'autre.
Les remarques et les réflexions que l'on va lire ont pour pivot une personnalité: Mantegna. On confrontera l'art de Mantegna à celui des Van Eyck et à l'école flamande en général, d'un côté. On le comparera à Giovanni Bellini ainsi qu'à d'autres Vénitiens de la fin du XVe siècle et au commencement du XVIe siècle, de l'autre.
...
Ainsi se répand en Italie un type de peintures, le paysage alla fiamangha. Des artistes italiens s'inspirent de ces paysages, tout en conservant une tonalité spécifiquement italienne. Ainsi, Piero della Francesca peint dans Le Diptyque d'Urbino un vaste territoire vu depuis une hauteur ... et il multiplie les reflets sur le calme miroir de l'eau comme dans le Baptême du Christ..." (pp. 93 e 95)

Boas leituras!

Relação da Igreja com a cultura


deve ser criada na «tensão entre discursos que divergem de uma concepção cristã da vida»

Resposta minha à pergunta: O que é mais importante (criar, manter, repensar) na relação da Igreja com a Cultura?

Esta resposta foi inserida no site da Pastoral da Cultura, juntamente com muitos outros depoimentos.

Ei-la:

'Na sociedade em que vivemos é ainda pertinente e rigoroso o diagnóstico feito em 1939 por T. S. Eliot, segundo o qual “muito da vida moderna é meramente uma sanção de objectivos não cristãos” (A ideia de uma sociedade cristã). No entanto, não é menos pertinente e rigoroso o diagnóstico de Chesterton: “no mundo moderno em que vivemos, com os seus movimentos modernos, continua presente o legado católico” (É o humanismo uma religião?).

Será perante esta tensão entre discursos que divergem de (ou confrontam mesmo) uma concepção cristã da vida, e uma matriz que, sendo relevantemente cristã nos seus fundamentos, parece diluir-se nas nossas práticas quotidianas, que a Igreja deve criar, manter e repensar a sua relação com a Cultura.

Na coabitação destas três sugestões de percurso - criar, manter e repensar, reside a resposta que o presente exige à Igreja no seu todo.

A realidade decorrente do facto de o discurso católico ter deixado de ser dominante, deve ser entendida como oportunidade para nos repensarmos enquanto alteridade(s), e para assim partir ao encontro de outros outros.

Como referiu Bento XVI no encontro com o mundo da cultura no CCB, “há toda uma aprendizagem a fazer quanto à forma de a Igreja estar no mundo, levando a sociedade a perceber que, proclamando a verdade, é um serviço que a Igreja presta à sociedade, abrindo horizontes novos de futuro, de grandeza e dignidade”.

Na humildade que esta postura de nós exige, deverá ainda compreender-se aquilo que ela significa de abertura para o reconhecimento de novas formas de expressão estéticas e da espiritualidade que elas porventura encerram. Penso, por exemplo, naquela que, à partida, pode parecer ser a estranha dimensão espiritual de meros espaços monocromáticos da pintura de Mark Rothko. Porque, contra os divulgados hedonismo e cepticismo, urge não abdicar da busca do Belo e da Verdade.

E dessa busca participa o inevitável exercício da razão, como demonstra D. Manuel Clemente em 1810-1910-2010. Datas e Desafios.

Por fim, exige-se de cada católico que “não tenha vergonha” de intervir na cidade, que não receie a polémica, e que não abdique de dar voz a uma postura ética, que é também estética, de estar no mundo; uma forma ética que foi determinante na construção da matriz cultural que é a nossa - algo que importa não deixar de recordar, analisar e compreender.

Mas isso compete, também, a cada um de nós.'

Bom fim de semana!

Poemas com cinema



é o título de uma antologia da qual dei notícia neste espaço aquando da sua edição.
Dela retirei este poema sobre Ingmar Bergman, da autoria de Luís Quintais.
Escolhi-o devido a conversas recentes sobre a atmosfera no cinema, e sua dimensão ontológica.
Ei-lo:

"Virás trazer-me a luz ou a derrota?
Dobras-te sobre a tua velhice, isto é, dobras o tempo
e persegues o temível desígnio
que te espera em diante.

Verifico hoje o vazio,
a caixa intransparente
que se tomou o corpo e a memória
calma e docemente."

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

"Herba Santa"


era o título do terceiro poema. Nada de equívocos! Melville utilizou esta expressão para designar o tabaco.
Esta poema revisita o meu "ano de todos os perigos", 1985.
Ei-lo:

"Associo melodias às estações,
a instantes mais ou
menos vagos ne memória. O
Verão de oitenta e cinco, por exemplo.

Regressara nesse tempo da pátria
dos heróis. Os dias fluíam entre
a viagem de um amor vindo
de longe e um almoço fora de horas
num qualquer snack em Lisboa, cracking.

Com liberdade, livros, flores e
a lua, quem não pode ser feliz?

Sim, havia ainda os livros e
a música, o frágil encanto de
Suzanne Vega."

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

"O conflito de convicções"


era o título do segundo poema de Cidades de Refúgio. Uma nota apenas, todos os títulos dos poemas deste livro foram colhidos em instantes da obra de um velho amigo, Herman Melville.
Eis o poema, substancialmente mais pequeno do que o anterior:

"Talvez não sinta o derradeiro Juízo;
talvez tenha perdido o sentido dos mitos;
e deus se revele apenas no luar,
como um dia alguém nos lembrou."

Um dia, já há muito, em finais dos anos 80, ainda antes de este poema ter sido escrito, eu e a Ana Paula cruzámo-nos num café com uma amiga que morreu recentemente, a Guida Horta. Quando lhe dissemos que o nosso filho, nascido em 87, se chamava Raúl, ela exclamou: "Raúl? Luar!" Uma narrativa tão longa para tão poucos versos...

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Porque este livro está há muito esgotado



deixo hoje aqui o poema que o abria. O livro tem por título Cidades de Refúgio, e foi publicado em 1991. Na capa está uma reprodução de Baptism in Kansas, um quadro de John Stewart Curry. A sua escolha foi do Fernando Guerreiro. Na abertura do livro havia duas epígrafes: uma era, apenas, Nostalgia, Andrei Tarkovski [os meus alunos da altura recordarão esta idiossincrasia], outro era este excerto de Os pescadores, de Raúl Brandão: "Tocam o sino para a novena. Ouço um momento os passos dos vivos e dos mortos... Em todas as aldeias que conheço..., o que idealiza o monte bruto e espesso, a vida rude e o sítio agreste, é sempre a igreja, a torre e a cruz."
Quanto ao poema, este tem por título "Miragens".


I fall, more and more,
Into my own silences.

Theodore Roethke

Os sessenta iam ainda
no início, sem memória
de guerras, revoluções
ou de fluxos migratórios.
A terra aguardava em
silêncio a chegada
das betoneiras, dos patos
bravos. Outras migrações...
Um dia de manhã,
em Maio, saímos a
explorar lugares ocultos,
pequenas grutas e antas,
mais tardes ameaçadas
pelas aves de arribação.
Os tais patos... bravos, claro.
Olhámos o vale. O
meu pai segurava-me a
mão. À nossa frente o
sítio onde se ergueria,
dez anos depois, a casa.
Casa feita, pêga morte.
Um ditado apenas e
para mim um medo a pairar,
dia após dia, como
se alguma oculta verdade
ali se insinuasse.
Como se o povo tivesse
razão. Enfim, zombarias
do destino. Ou do acaso?
Lá para o fim da manhã,
descobri junto à anta
um minúsculo esqueleto
de plástico. Curiosa
ironia vinda de outras
brincadeiras, porventura
mais inocentes, das crianças
dos bairros de lata. O
esqueleto ainda o vi,
há alguns meses, no sótão,
entre molduras partidas,
velhas cartas sem destino
ou memória, e as
sempre inevitáveis teias
de aranha. Um pequeno
sinal como outros, uma
pedra um nome um sinal só
desses dias; um vestígio
da rua das oliveiras,
no tempo em que somente
elas e o casal de
velhos loucos ali viviam.

Sharp distance,


how can the wind with its arms all around me?
Sharp distance, how can the wind with so many around me?
I feel lost in the city!
Lost in their eyes as you hurry by.
Counting the broken ties they decide
Dream on, on to the heart of the sunrise.
Lost on the way you're dreaming.
Dream on to the heart of the sunrise.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

John Martin exposto em Londres



fez-me recordar uma referência de passagem num texto de João Miguel Fernandes Jorge que li há muitos anos. Mencionei Martin, um artista algo desconhecido entre nós, frequentemente ligado a Turner. Referi-o a propósito da tradução de Paradise Lost, num ensaio que escrevi para a Revista Babilónia há algum tempo.
Deixo-vos o início desse ensaio, com os votos de uma boa semana:

Em tempos de reiterada balcanização ou mesmo rasura de um discurso religioso cristão, perguntar-se-á que espaço persiste para um longo poema (10564 versos) dedicado à narração dos momentos iniciais do Génesis, a criação de Adão e Eva, a sua expulsão do Éden, en passant pela transformação do anjo caído, Lúcifer, em Satanás, e da sua acção bem sucedida junto do par primordial? Acresce o desconhecimento generalizado quer do discurso e da ética protestantes, e puritanos, em particular, quer dos debates teológicos que constituem o cenário histórico no qual o poema se inscreve e do qual participa: diferentemente de Dante, em Milton o solo teológico é instável e ecoa nos temas contemporâeos em debate.

Johnson dizia que se lia Paradise Lost como “dever”. Ora, apesar das diferenças históricas, talvez esse “dever pedagógico” possa hoje ser encontrado naquilo que essa leitura permite em termos de reactivação de um determinado tipo de reflexão (teológica, cultural, textual), de preenchimento de lacunas, relevantes para o entendimento do mundo actual (pense-se no exemplo americano), da descoberta de uma das figuras mais polémicas da poesia inglesa, do desvendar de um diálogo estético entre poema e artes visuais.

Comecemos por este último aspecto. Quem em 2006 visitou o Museo de Bellas Artes de Bilbao pôde contemplar uma impressionante exposição de gravuras do romântico inglês John Martin (1789-1854). Célebre pelas suas obras de cariz clássico e bíblico, seria, porém, através das gravuras (1824-5) para uma edição de Paradise Lost que Martin afirmaria a sua singularidade na cena artística inglesa das primeiras décadas do século XIX, sobrepondo-se até a Turner, e disputando com Blake a primazia na representação de Milton. Em detrimento de uma focalização explícita das personagens de Paraíso Perdido e dos eventuais conflitos interiores por elas vividos, Martin optou por realizar uma leitura dramática dos espaços miltonianos nos quais investiu um sublime romântico. A intensidade dramática dos planos panorâmicos, confinados ao reduzido espaço da gravura, foi por ele acentuada através da exploração monocromática; aí se indicia o dualismo nuclear de Paradise Lost (veja-se o contraste visual entre luz e obscuridade: “Pandemonium” vs “Rios da bem-aventurança”).

De tal modo a opção estética de Martin foi bem sucedida, que a percepção visual desse mesmo sublime ficaria, desde então, ligada a esta sua obra, determinando figurações ulteriores, como as de Thomas Lupton, Francis Danby e William West. O sublime é representado de uma forma mais intensa em “Satanás observa a ascensão aos Céus” através das linhas que diagonalmente afirmam dois espaços e um percurso de luz. Apesar desse excesso de espaço, também na contemplação, na postura, na expressão do rosto, na intensidade de luz com que o corpo de Satanás é revelado, se indicia uma solidão, uma absorção, uma intimidade, uma tensão interior, que de algum modo enviam para o confessionalismo do famoso solilóquio dos versos 32 a 113 do Livro IV.


Não se pense, porém que a dimensão visual de Paradise Lost foi uma descoberta de Martin; veja-se, por exemplo, a sua reiterada inserção no âmbito de uma estética barroca (posteriormente confirmada pela convocação de Milton por parte de Eisenstein). De acordo com a leitura disfórica de Camille Paglia (Sexual Personae), Milton não se liberta nem de Spenser nem dos constrangimentos da sensibilidade barroca; o que a conduz à sua asserção radical de que Paradise Lost é “um Laocoön barroco”.

Segundo Wylie Sypher (Four Stages of Renaissance Style), Paradise Lost constitui uma expressão literária superior desta estética que só encontraria análogo na arquitectura de Bernini. Com efeito, os cenários do épico miltoniano participam ostensivamente do discurso barroco. No seu seio inscrevem-se as figuras recorrentemente colocadas em acção e eventual oposição: o conflito entre Satanás e Cristo no Céu; o diálogo entre Rafael e Adão no Jardim do Paraíso; o passeio de Adão e Eva; o encontro de Satanás com o Arcanjo ; o exílio de Adão e Eva. No plano estritamente visual constata-se que estas figuras podem, ainda, ser reveladas numa escala aumentada no seio de uma multidão, como Satanás no Concílio onde pre-domina sobre os outros seres infernais (citei, acima, a figuração do “Pandemonium”), ou quando confronta o Pecado e a Morte: a massa surge em tensão e equilíbrio perante a massa. Recorde-se a concepção visionária suprema do Inferno em “A ponte sobre o Caos”, de Martin, que, na sua génese, ecoa os versos de Coleridge em Kubla Khan; neste caso acentua-se uma tensão entre a densidade material e o carácter etéreo do espaço. Destaca-se, porém, a exuberância sensorial na convocação dos corpos (Adão e Eva) e do espaço (IV. 689-743); à semelhança da personagem por si delineada - Adão, Milton cede perante a intensidade da imagem física de Eva.

Afinal, o barroco parece ensaiar o alcance do espírito através dos sentidos. Trata-se de um irónico paradoxo, já que a ética de moderação puritana, subscrita por Milton, era aversa à veneração de imagens (numa resposta ao concílio de Trento). Contudo, em Paradise Lost venera-se a mulher e o homem na sua condição humana; venera-se o corpo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Os Yes, Clara Rowland e Guilherme d'Oliveira Martins





O que têm todos eles em comum?
Nada, à partida!
Et pourtant...
Quando, aos dezassete anos, esguio como os cavalheiros em anexo (C. Squire, Jon Anderson e Steve Howe), e com cabelos de idêntica extensão [embora os meus fossem mais volumosos!], comprei e ouvi Tales from Topographic Oceans, dos Yes, despertei para os misticismos orientais e li tudo o que descobri na biblioteca paterna sobre o assunto.
Já nessa altura estas coisas do transcendente eram estruturantes para mim, embora os caminhos fossem perfeitamente acidentais.
Mas foi assim, graças a este álbum, que descobri muitos textos e autores [que redescobri George Harrison], e que, chegado à Faculdade, de imediato compreendi a geração beat, por exemplo.
Ora, ainda há umas semanas, numa óptima conferência feita no âmbito do ciclo sobre o ensino das Humanidades, promovido pelo Clube Unesco e pelo Centro Nacional de Cultura, Clara Rowland [jovem e brilhante professora da Faculdade de Letras de Lisboa], contra um certo discurso céptico, quiçá dominante, abordou a imensa riqueza que os jovens trazem consigo hoje para as universidades, embora, nem sempre (eufemismo!), os professores se apercebam disso.
Como ela muito bem referiu, basta saber pegar nesses saberes "desestruturados" para lhes abrir novos horizontes.
Ou seja, para que eles, como eu há 35 anos, descubram algo de mais fascinante; algo que lhes desvende novos percursos, novos olhares, novas percepções do real, de si próprios.
Enfim, esse ciclo (que eu iniciei há uns meses com uma palestra intitulada "o escritor no atelier do artista") chega hoje ao fim, com duas conferências: uma de Luis Filipe Barreto e outra de Guilherme d'Oliveira Martins.
Fica assim esclarecido o mistério do que têm em comum os Yes, a Clara Rowland e o Guilherme d'Oliveira Martins.
É no CNC, no Chiado, às 18.30h.
Até mais logo!

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Um bom amigo!


Morreu há alguns anos com um linfoma. Era o Mikey! Um Retriever do Labrador. Quando veio para nossa casa, com alguns meses, fixou-se em mim, e pronto! Super meigo e super medroso! Fazíamos três passeios diários à rua. Foi assim durante sete anos! Depois veio a quimioterapia, algumas melhoras e a morte repentina, e dolorosa! Para todos!
Gosto desta fotografia... Faz-me lembrar o olhar dele. Era de uma entrega absoluta! Andava sempre colado a mim. Eu sentava-me a trabalhar e ele deitava-se ao meu lado. Eu levantava-me, dava dois passos para ir buscar um livro, e ele levantava-se e percorria esse metro e meio comigo. Depois voltava, voltávamos ao ponto de partida.
Há quem diga que os cães e os donos se assemelham fisicamente.
Gosto de pensar que, no nosso caso, também era verdade.
Continuação de boa semana!

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Estive ontem na maior concentração de carecas,





grisalhos, falsas loiras, falsas ruivas, falsas morenas, que Lisboa assistiu nos últimos tempos. E foi bom, para além do mais, para constatar quão afortunada foi a minha geração por ter crescido ao som de artistas como estes. Sim, claro, estou a falar dos Yes!
Para espanto meu, também eles estão mais velhos.
Porque será?
E carecas...
E grisalhos...
Mas continuam a tocar como noutros tempos! Nos tempos do vinil....
Já não está lá o Rick Wakeman nem o Jon Anderson...
Mas o jovem Benoit David [nasceu em 1966, imaginem!] tem uma voz lindíssima que nos evoca o Mestre!
E o Geoffrey Downes [um rapaz mais próximo de nós em termos de idades - nasceu em 1952] soube aprender com o Wakeman...
Lucky us!
Que para além destes fulanos, crescemos a ouvir os Beatles, os Rolling Stones, os Led Zeppelin, os Deep Purple, os Creedence Clearwater Revival, os Procol Harum, os Pink Floyd, os The Byrds, os The Doors, Black Sabbath, os King Crimson, o Dylan, a Baez, o Bowie, o George Harrison, os... meu Deus, tantos e tão bons que eles eram!
Mas há esperança!
Ao meu lado estava uma adolescente que pulou o tempo todo e cantou de cor Yours is no disgrace!
Que rica noite a deste cinquentão grisalho!
Não sei porquê, mas quando o concerto estava para começar, veio-me à mente a voz do António Sérgio a proclamar "Long Live the Doors!", no Rock Rendez-Vous aquando de uma noite de homenagem a estes amigos...
E se agora "nous sommes du soleil" não é muito adequado, pelo menos... fica a alegria de termos sido!
Bom fim de semana!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

É disto mesmo que falamos, ao dizer “educação”.


É disto mesmo que falamos, ao dizer “educação”. Como a cultura, também ela é dinâmica e activadora, em relação a si próprio e – no caso familiar e escolar – muito especialmente em relação aos outros, por isso mesmo educandos.

A palavra significa também “extracção” (e-ducere), para extrair dos outros o melhor deles mesmos, que só assim realizam as potencialidades que detêm, em benefício próprio e alheio. Não exagerando as coisas, lembro um antigo professor de filosofia, que dizia não sobrepor, antes extrair dos alunos o que já lá tinham; como os escultores que entrevêem na pedra a imagem que pretendem, “limitando-se” depois a tirar com o escopro o que sobeja da ideia…

Será isto o essencial, pois insiste no aspecto personalista da educação. Mas inclui necessariamente todo o conteúdo teórico e prático entretanto conseguido e absorvido, área por área. Bom educador será quem “extraia” do educando tudo o que ele possa realmente dar; mas só o fará se transmitir todo o conhecimento que lhe desperte a capacidade de aderir, aprofundar e criar por sua vez. É neste sentido que a erudição enriquece a cultura e o bom educador surpreenderá os educandos - e ainda mais se surpreenderá com eles.


Passo da intervenção de D. Manuel Clemente no Congresso do Ensino Superior

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Deserto Branco


no Vimeo!
Os clássicos "Relógio Biológico" e "A Festa Vai Começar", juntamente com o mais recente "Rei do pa-pa-pa".

E se naquele tempo já houvesse o êduquês?



Naquele tempo, Jesus subiu a um monte seguido pela multidão e, sentado
sobre uma grande pedra, deixou que os seus discípulos e seguidores se aproximassem.

Ele preparava-os para serem os educadores capazes de transmitir a Boa Nova a todos os homens.

Tomando a palavra, disse-lhes:
- Em verdade, em verdade vos digo:

- Felizes os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.
- Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
- Felizes os misericordiosos, porque eles...?

Pedro interrompeu-o:
- Mestre, vamos ter que saber isso de cor?

André perguntou:
- É para copiar?

Filipe lamentou-se:
- Esqueci-me do meu papiro!

Bartolomeu quis saber:
- Vai sair no teste?

João levantou a mão:
- Posso ir à casa de banho?

Judas Iscariotes resmungou:
- O que é que a gente vai ganhar com isso?

Judas Tadeu defendeu-se:
- Foi o outro Judas que perguntou!

Tomé questionou:
- Tem uma fórmula para provar que isso está certo?

Tiago Maior indagou:
- Vai contar para a nota?

Tiago Menor reclamou:
- Não ouvi nada com esse grandalhão à minha frente!

Simão Zelote gritou, nervoso:
- Mas porque é que não dá logo a resposta e pronto!?

Mateus queixou-se:
- Eu não percebi nada, ninguém percebeu nada!

Um dos fariseus, que nunca tinha estado diante de uma multidão nem ensinado nada a ninguém, tomou a palavra e dirigiu-se a Jesus, dizendo:
- Isso que está a fazer é uma aula?
- Onde está a sua planificação e a avaliação diagnóstica?
- Quais são os objectivos gerais e específicos?
- Quais são as suas estratégias para recuperação dos conhecimentos prévios?

Caifás emendou:
- Fez uma planificação que inclua os temas transversais e as actividades integradoras com outras disciplinas?
- E os espaços para incluir os parâmetros curriculares gerais?
- Elaborou os conteúdos conceituais, processuais e atitudinais?

Pilatos, sentado lá no fundo, disse a Jesus:
- Quero ver as avaliações da primeira, segunda e terceira etapas e reservo-me o direito de, no final, aumentar as notas dos seus discípulos para que se cumpram as promessas do Imperador de um ensino de qualidade.
- Nem pensar em números e estatísticas que coloquem em dúvida a eficácia do nosso projecto.
- E veja lá se não vai reprovar alguém!

E foi nesse momento que Jesus disse: "Senhor, por que me abandonaste..."