segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Escritos inspiradores


Etty escreveu estas palavras na noite de 21 de Julho de 1942, quando estava, literalmente, cercada pelos verdugos nazis:

"Há momentos em que penso que devo resignar-me ou sucumbir, mas de cada vez surge esse sentimento de responsabilidade para manter essa vida que há dentro de mim, verdadeiramente viva. Agora ainda vou ler umas cartas do Rilke e depois vou cedinho para a cama. Até hoje, a minha vida pessoal, apesar de tudo, tem sido infinitamente boa."

Um ano e alguns meses depois, em Outubro de 1943, a Cruz Vermelha comunicava a sua morte em Auschwitz.
Que coragem e que lucidez!
E se Etty Hillesum lia Rilke, nós, para além do poeta, temos a imensa fortuna de poder ler Etty e de nos deixarmos inspirar por ela.
Boa semana!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

To whom (s.o.b.) it may concern


"I was born like this, I had no choice
I was born with the gift of a golden voice
And twenty-seven angels from the great beyond
They tied me to this table right here in the tower of song

So you can stick your little pins in that voodoo doll
I'm very sorry, baby, doesn't look like me at all"

Quero partilhar convosco este texto


de José Tolentino Mendonça, publicado no Diário de Notícias da Madeira. É a propósito do Mal.
Evoca esse registo impressionante de lucidez, coragem e vitalidade que é o Diário de Etty Hillesun (um livro a ler obrigatoriamente!), medita sobre a importância do luto (o que obviamente nos traz à mente o Eclesiastes)e deixa-nos pistas para uma avaliação serena das dificuldades com que todos os dias nos confrontamos.

Ei-lo (depois de lhe ter limpo o acordo ortográfico), e espero que... ia a escrever "que gostem", mas acho mais correcto escrever "que vos seja útil":

"O mal: uma difícil questão"

A Cabala judaica ensina que o mal surgiu no mundo quando um escriba preguiçoso se equivocou na escuta e transcreveu erradamente uma letra da Escritura Sagrada. Um rabino comentador da Cabala, Soloviel, afirma: «As duas vozes, aquela de Deus que não devemos nomear e a voz do mal, do mal inominável, são terrivelmente semelhantes. A diferença entre uma e outra é apenas o som de uma gota de chuva a cair no mar». Ambas são formas poéticas de interpretar a questão. Mas reflectir sobre o mal, qualquer que seja a forma adoptada, é já uma vitória, pois não raro ele nos aparece como austeríssimo lugar onde o pensamento entra em colapso.

O mal toca universalmente as existências e constitui a todos os níveis um desafio. O importante, porém, como explica o filósofo Paul Ricoeur, não é tanto insistir em encontrar uma solução. Mais relevante que pensar donde vem o Mal é sim descobrir o que podemos fazer contra ele. A experiência do mal desafia à luta prática contra o próprio mal. Reorienta-se, assim, o olhar para um novo futuro.

Como é que o mal deixa de ser o irreparável? Quando aproveitamos o contexto de mal para um acontecimento doutra ordem. Quando deixamos apenas de perguntar: «Porque é que isto me aconteceu?». E investimos antes as nossas forças criadoras a decidir: «Como é que devo reagir vitalmente a isto que aconteceu?». Apetece citar aqui uma página do impressionante Diário de Etty Hillesum, um dos grandes testamentos espirituais do nosso tempo. Está lá tudo. «Foi lá [e a autora está a falar da sua experiência no campo de concentração], entre as barracas, repletas de gente agitada e perseguida, que achei a confirmação para o meu amor por esta vida. Não tive um único corte com a vida. Havia como que uma grande continuidade, plena de sentido. Como é que alguma vez vou conseguir descrever isto tudo? Descrever de modo que outros também consigam sentir como na realidade a vida é bela!».

É preciso contrapor à experiência do mal uma sabedoria, enriquecida pela meditação interior, que dialogue com as transformações pelas quais passamos. O modelo talvez seja realmente o dos trabalhos do luto. O luto é a aprendizagem gradual da perda até senti-la dentro de nós como possibilidade misteriosa de reencontro. Chegarmos a sentir, por exemplo, que a morte dos que amamos ainda pode gerar vida, no sentido de que não nos perdemos deles, mas continuamos a crescer e a maturar conjuntamente, só que de forma diferente. O luto, quando bem vivido, é um trabalho espiritual, uma mudança qualitativa que nos entreabre a um outro entendimento da vida. Em relação ao mal precisamos disso: aprender que a experiência do mal não é uma faca que nos decepa a vida.

Progressivamente, e sublinhe-se aqui a importância da progressividade, podemos ir percecionando que a experiência do mal não acarreta necessariamente a destruição de nós próprios. Tornamo-nos então capazes de semear de novo, apesar de tudo e contra tudo o que aconteceu. A ampliação da vida e o seu florescimento estão prontos para acontecer.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

"Eu só falo crítica..."


cito eu no topo deste blog. Por que razão? Porque concebi este espaço como prolongamento do diálogo com alunos presentes e passados (e futuros... quem sabe?).
A ele se juntam, se assim o quiserem, aqueles que nele reconhecerem alguma afinidade.
Evito, portanto, os comentários sobre o quotidiano político, mesmo quando isso significa um exercício de radical contenção.
Ora, este comentário, apesar de estar relacionado com a "noite eleitoral", não encerra uma apreciação política tout court, antes... semiótica.
Refiro-me a um sorriso, seguido de encolher de ombros de Ricardo Costa, director do Expresso.
Comentava ele, no painel da SIC, as confusões geradas pelo choque tecnológico (melhor seria dizer derrapagem, à qual se seguiu um choque... se foi tecnológico ou não, ignoro) que impediu muitos cidadãos de votar.
Interrompeu Clara de Sousa para questionar se não deveriam ser exigidas responsabilidades face ao acontecido. Como referi, Ricardo Costa sorriu, então, e encolheu os ombros.
José Miguel Júdice ripostou que seria a primeira vez que tal se faria!

Não creio que este detalhe tenha sido objecto de apreciação, e muito menos que tenha ficado entre os momentos a recordar da noite passada.
Contudo, o estudo da literatura, dos detalhes sintácticos, das modulações semânticas, das ressonâncias culturais, leva-nos a valorizá-lo, já que esse estudo ajuda-nos a desenvolver um culto, um elevado culto, acrescentaria, o culto da atenção ao detalhe.
Ora, aquele sorriso e aquele gesto foram, por certo, perceptíveis a quem tenha o olhar moldado pelo exercício da leitura.
Num país de cidadania activa, teria sido exigida a dimensão do responsável. Não, não me refiro ao presidente da CNE, mas sim daquele cavalheiro que, do alto da sua função governativa, se dirige a nós com uma voz melosa como quem fala para imberbes criancinhas; uma versão soft da ministra da educação, diria eu.
Mas não, entre nós, como é hábito dizer, "a culpa morre solteira."
Por isso nos habituámos a fazer como o Ricardo Costa, sorrimos e encolhemos os ombros.
Até quando?
Entretanto vai-nos valendo a semiótica ao ajudar-nos a ler os pequenos/grandes detalhes deste nosso quotidiano.
Viva a semiótica, portanto!

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Conheceis Axelle Red?


Sei que esta é uma pergunta desconcertante quando todos andamos intelectualmente preenchidos com a elevada discussão das últimas semanas sobre as presidenciais, ou sobre as motivações sócio-económico-político-e/ou-de-género em torno de assassinatos.
Talvez por todo este ruído, deixo-vos estes versos de Axelle Red, cuja música conheci há uns catorze anos.
São eles os seguintes: "il manque de nuance... mais néanmoins il tutoie les anges"
Em tempos de decadência e miséria intelectual, adoro esta ideia de "quelqu'un qui tutoie les anges..."
E quando oiço esse ruído, surgem-me de novo os versos d' Axelle: "laisse-moi boire mon café... laisse-moi boire mon café. yeah..."
Bom fim de semana!
E viva a Axelle Red!

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Há momentos na nossa vida


em que as situações inconvenientes com as quais somos confrontados, nos fazem vacilar.
Nessas alturas há quase sempre algo que nos ilumina e dá força.

Primeiro, foi uma mão amiga que me fez chegar esta foto de um momento de júbilo, pois estava entre amigos.

Depois, foram estas palavras de Santo Afonso-Maria de Liguori que me iluminaram:


«Dizei a todos os que têm o coração despedaçado: Tomai coragem e não tenhais medo. [...] O próprio Deus virá salvar-vos» (Is 35, 4). Esta profecia realizou-se. Seja-me pois permitido gritar de júbilo: Alegrai-vos, filhos de Adão, alegrai-vos; deixai para trás todo o desalento! Perante a vossa fraqueza e a vossa incapacidade de resistir a tantos inimigos, «abandonai todo o receio, o próprio Deus virá salvar-vos». Como é que Ele veio salvar-vos? Dando-vos a força necessária para enfrentar e ultrapassar todos os obstáculos que se opõem à vossa salvação. E como é que o Redentor vos deu essa força? Fazendo-Se fraco, de forte e todo-poderoso que era; Ele tomou sobre Si toda a nossa fraqueza, e comunicou-nos a Sua força. [...]»

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Aos freaks da net,


que se encontram a ela ligados, dia e noite, e pelas altas horas da noite também, e ainda fins de semana, feriados e dias santos, deixo este comentário de Afraate, Santo das Igrejas Ortodoxas, a Marcos 2-28 «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.»

Ei-lo:

Por intermédio de Moisés, Seu servo, o Senhor pediu aos filhos de Israel que observassem o sábado. Disse-lhes: «Trabalharás durante seis dias e farás todo o teu trabalho. Mas o sétimo dia é o sábado consagrado ao Senhor, teu Deus» (Ex 20, 9-10). [...] E avisou-os : «Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais». E até acrescentou: «O mercenário e o estrangeiro repousarão igualmente, assim como todos os animais que penam ao teu serviço» (cf. Ex 23, 12). [...] O sábado não foi imposto como uma prova, uma escolha entre a vida e a morte, entre a justiça e o pecado, como os outros preceitos pelos
quais o homem pode viver ou morrer. Não: o sábado, nessa altura, foi dado ao povo tendo em vista o descanso – não apenas dos homens, como também dos animais. [...]


Agora escuta qual é o sábado que agrada a Deus. Isaías disse: «Deixem descansar os fatigados» (28, 12). E também: «Os [...] que guardaram os Meus sábados [sem os profanar] são os que escolheram o que Me é agradável e se afeiçoaram à Minha aliança» (56, 4). [...] O sábado não traz qualquer benefício aos maus, aos assassinos, aos ladrões. Mas àqueles que optam por aquilo que agrada a Deus e guardam as suas mãos do mal, nesses, habita Deus; Ele faz deles Sua morada, segundo a Sua palavra: «Habitarei e andarei no meio deles» (Lv 26, 11-12; 2Cor 6, 16). [...] Portanto, guardemos fielmente o sábado do Senhor, quer dizer, aquilo que agrada ao Seu coração. Assim entraremos no sábado do grande repouso, no sábado do céu e da terra em que toda a criatura repousará.


E eu acrescento, toda a criatura, excepto os net freaks!

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Notícias para quem estiver interessado


Estive no Funchal para participar num simpósio sobre John Dos Passos, no Centro Cultural homónimo na Ponta do Sol, e aproveitei para fazer uma apresentação da Inveja - uma novela académica no Golden Gate, devido ao entusiasmo e generosidade da Dra. Maria do Carmo Cunha Santos.
Eis-me, aqui, na varanda do Golden Gate, com a Sé ao fundo.
Hoje à noite, pelas 22.30h, no programa Câmara Clara, farei uma breve referência ao último livro da trilogia de Dos Passos, USA, que acabou de ser publicada.
Boa semana!

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A não perder!



"Dos Deuses e dos Homens".
Um filme impressionante!
Talvez um dia escreva sobre ele.
Para já, deixo-vos imagens e o comentário inserido no site da Pastoral da Cultura.
Entretanto, votos se bons filmes!

"Em 1996, sete monges da Ordem Cisterciense da Estrita Observância são raptados e assassinados em Tibhirine, aldeia aninhada na região argelina do Magrebe. É o culminar da escalada de violência que opõe o Grupo Islâmico Armado (GIA), extremista, ao governo que acusa de corrupto. O impacto deste horrível desaparecimento, cujos contornos exactos estão ainda por esclarecer, estende-se até aos nossos dias, levado agora ao cinema sob direcção do realizador francês Xavier Beauvois.

A obra, reconhecida com o Grande Prémio do Festival de Cannes e merecedora da forte e comovida chuva de aplausos que encheram o Palais des Festivals na noite do passado 23 de maio, é uma extraordinária ode à fé, ao amor ao próximo e ao espírito de serviço que cumpre, em estilo e estrutura narrativa, o despojamento do seu sujeito.

Com efeito, é-nos dado comungar a forma abnegada como uma comunidade de homens lida com uma realidade adversa para a qual não contribui senão com a sua vocação de amor e dádiva. Uma vocação reafirmada ao arrepio das pressões externas para abandonarem a aldeia que servem à sua sorte.

Sem ceder a tentações sensacionalistas, Beauvois desvenda aos nossos olhos o dia-a-dia daquele pequeno mosteiro de Tibhirine, dos seus sete habitantes e da pacata população da aldeia local, induzindo progressivamente o adensar do contexto violento que involuntariamente envolve uns e outros.

Simples e acessível, a linguagem fílmica pretere o horror dos acontecimentos, trágicos, e da crescente violência, ao espírito com que aquela irmandade os enfrenta. Um espírito sustentado na sua extraordinária força e revitalizado na dúvida e fraqueza pela oração, pelo permanente desejo de união e comunhão, pelo tempo e oportunidade concedidos ao discernimento.

Mais que um nefasto episódio da história política ou religiosa, estamos perante uma obra que nos propõe um caminho, pela busca do verdadeiro sentido da vida: o que os sete monges sacrificados, na sua fé cristã, encontraram, e que Xavier Beauvois tão bem percorre, alumiando-o para crentes e não crentes."

Achtung!


DOIS SITES A NÃO UTILIZAR

Não sei se é do vosso conhecimento. De qualquer modo aqui vai... Mais vale prevenir...


1. www.portugalmovel.com

NÃO ENTREM NESTE LINK. É uma página de Toques, bonecos, etc. Para
telemóveis... Para aceder a este site é necessário instalar um
ficheiro. Este ficheiro, quando instalado, substitui a ligação
telefónica normalmente utilizada clix, iol, Netc, Telepac, etc., por
outra ligação, pela módica' quantia de Eur: 3.30 por minuto. Esta
situação é gravíssima, atendendo a que ninguém se apercebe de nada,
até aparecer a factura do telefone. O mais escandaloso é que o
programa tenta constantemente ligar à Internet, pelo que, se alguém
desligar o computador cortando a ligação, não imagina a que computador
se vai voltar a ligar, ficando a gastar Eur: 3.30 por minuto.

2. www.geocities.com/adsl_netfast

NÃO o utilizem!!!

Existe com o único propósito de vos ROUBAR as passwords!

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Vítor Alves e o aristocrata natural


Há uma altura simpática da nossa vida em que podemos olhar para o futuro com a sensação de que há muitos projectos a realizar, e de que, simultaneamente,já há muitas memórias que se vão arrumando lá para o fundo do sótão, empilhadas umas nas outras... ocultando a maioria delas.
Em particular quando se optou, como eu, por não ser mero espectador nesta vida, mas sim actor (sempre secundário e com papéis hiper-menores, mas, malgré tout, actor), as memórias são, mesmo, muitas! E a maioria lá está, depositada, nos recantos do tal sótão.
Ora, há uns tempos, num daqueles exercícios de narcisismo a que não consigo fugir de vez em quando, googlei-me e fui redescobrir algo que, há muito, enviara para o fundo do sótão: redescobri que tinha sido um dos sócios fundadores da associação de direitos humanos que dava pelo nome de CIVITAS.
Verdade se diga que essa associação surgiu pela iniciativa de duas pessoas, Helena Cidade Moura e Vítor Alves, que reuniram ao longo de vários meses na então sede do MDP (um partido desaparecido há cerca de vinte anos, a cuja comissão política Helena Cidade Moura e eu próprio pertencíamos; daí o facto de as reuniões se realizarem nesse espaço; Vítor Alves nada tinha a ver com o MDP, esclareça-se), na rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, para dar corpo e alma ao projecto.
Juntamente com essas duas figuras impulsionadoras comparecia às reuniões um, então, jovem trintão, este yours truly. Apesar de há muito ser colega e amigo de Teresa Ferreira de Almeida Alves, mulher de Vítor Alves, só então tive o privilégio de o conhecer pessoalmente e de confirmar aquilo que havia percepcionado, que estava perante uma pessoa de uma rara gentileza e de profundas convicções que sempre manifestava com tranquilidade e decoro.
Creio ser justo afirmar que poucos, como Vítor Alves, simbolizam a generosidade que marcou aqueles primeiros passos da democracia em Portugal.
Agora, que ele descansa em paz, não posso deixar de recordar o que John Adams escreveu a Thomas Jefferson em Novembro de 1813: 'We are now explicitly agreed, in one important point, vizt. That "there is a natural Aristocracy among men; the grounds of which are Virtue and Talents."'
Portugal perdeu um dos raros aristocratas naturais que tive a fortuna de conhecer!

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O que fazer com o tempo?


Gosto muito deste texto de José Tolentino Mendonça. Acho que ele põe o dedo na ferida em relação a algo que nos obceca, a todos nós, em particular quando nos vemos confrontados com as esmagadoras exigências das chamadas novas tecnologias.
E porque gostei, achei por bem partilhá-lo com quem por aqui passa.
O título é "Que fazemos nós do tempo?"
Eis a resposta:

'Que uma conversa destas exige lentidão, previne-o o passo célebre das "Confissões" de Santo Agostinho: «Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei». Sabemos que somos feitos de tempo, de idades, de cronometrias visíveis e invisíveis, de estações… Sabemos que o tempo é a argila da vida. Do incomensurável oceano ao sucinto regato, da minúscula pedra ao elevado rochedo, da planta solitária ao vastíssimo bosque, tudo tem no tempo uma chave indispensável. Também nós somos modelados e lavrados, instante a instante, pelos instrumentos do tempo. Por vezes de um modo tão delicado que nem sentimos como ele, irreversível, desliza dentro e fora de nós. Por vezes, atormentando-nos claramente a sua voracidade, sentindo-nos perdidos na sua obsidiante vertigem. Que é, pois, o tempo?

Nós dizemos, repetindo um provérbio que os latinos já usavam, que o tempo voa (tempus fugit). De facto, tudo o que é humano é feito de tempo, mas a experiência que mais vezes nos ocorre é a de não termos tempo. «Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante para ti», explicou a raposa ao Principezinho. Há uma qualidade de relação que só se obtém no tempo partilhado. Por alguma razão, esse raro Mestre de humanidade chamado Jesus, disse: «Se alguém te pede para o acompanhares durante uma milha, anda com ele duas». Só com tempo descobrimos tanto o sentido e a relevância da nossa marcha ao lado dos outros, como o da nossa própria caminhada interior. Sem tempo tornamo-nos desconhecidos. Sem tempo falamos, mas não escutamos.

Repetimos, mas não inventamos. Consumimos, mas não saboreamos. É verdade que mesmo num rápido relance se pode alcançar muita coisa, mas normalmente escapa-nos o detalhe. E Deus habita o detalhe.

Gosto muito do «Poema do Tempo» que vem no livro bíblico do Eclesiastes, pois nos expõe à consciência de que o tempo é uma arte que realmente possuímos e que somos chamados a desenvolver com sabedoria. Não é verdade que não temos tempo. A nossa vida está cheia de tempos. Precisamos identificá-los e tratar deles, como quem cuida de um tesouro. Não é a quantidade de tempo o mais determinante. Importante é perguntar-se o que fazemos do tempo e investir aí a matéria dos nossos sonhos.

«Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu:
tempo para nascer e tempo para morrer,
tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou,
tempo para matar e tempo para curar,
tempo para destruir e tempo para edificar,
tempo para chorar e tempo para rir,
tempo para se lamentar e tempo para dançar,
tempo para atirar pedras e tempo para as ajuntar,
tempo para abraçar e tempo para afastar o abraço,
tempo para procurar e tempo para perder,
tempo para guardar e tempo para atirar fora,
tempo para rasgar e tempo para coser,
tempo para calar e tempo para falar,
tempo para amar e tempo para recusar,
tempo para guerra e tempo para paz.»'

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

"Daqui, deste deserto em que persisto" (António Ramos Rosa)


envio-vos os meus votos de um feliz 2011.

Deixo-vos esta reprodução de Jardim do Éden, de Briton Rivière, acompanhado das palavras de São Romano, o Melodista (? – c. 560), compositor de hinos, 2º hino para a Epifania, 1, 3, 8 (a partir da trad. SC 110, pp. 271ss. rev.)
Aos que jaziam na sombria região da morte surgiu uma luz.


"Sobre Adão, cego no Éden, ergue-se um sol, que surgiu em Belém e que lhe abriu os olhos, lavando-os nas águas do Jordão. Sobre aquele que jazia na sombra e nas trevas elevou-se a luz que nunca mais se extinguirá. Acabou para ele a noite, para ele tudo é dia; chegou para ele o momento da aurora, porque foi no crepúsculo que ele se escondeu, como diz a Escritura (Gn 3, 8). Aquele que caíra ao entardecer encontrou a aurora que o ilumina, escapou à escuridão, avança em direcção à manhã que se manifestou e que tudo ilumina..."