sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Hoje, as palavras de José Tolentino Mendonça



"Bem-aventurados os que no coração se reconhecem pobres
pois é deles tudo o que há-de vir

Bem-aventurados os que existem mansamente
pois a terra os escolherá para herdeiros

Bem-aventurados os que rompem o muro das implacáveis certezas
pois são outros os caminhos da consolação

Bem aventurados os que sentem, pela justiça, fome e sede verdadeiras:
não ficarão por saciar

Bem-aventurados os que estendem largos os gestos de misericórdia
pois a misericórdia os iluminará

Bem-aventurados os que se afadigam pela paz:
isso torna os mortais filhos de Deus

Bem-aventurados os que não turvam seu olhar puro
pois no confuso do mundo verão passar o próprio Deus"

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Hoje, a Palavra nas palavras de Ruy Belo


"Maran atha

Eu sou senhor aquele que sente
frios ainda os pés nas estações
com que nos chega o tempo sucessivamente
Nada me fica na alma nem a tarde de praia
quando o vento tinha
uma linguagem nas barracas
Não há coração em mim para a folha que morre
e ando a matar uma por uma até
alegrias simples como a certas horas
reparar que temos um corpo
determinamos uma sombra
e ocupamos um espaço que nos leva
a estar aqui agora nesta rua
e não noutra parte

Homem levantado e caído
setenta vezes sete vezes por dia
que morte me quer para além
de deixar cair os braços?

Eu que te vi e revi descer solene
como um raio sobre o meu destino
que te dei um lugar mais definitivo
em minha boca do que a folha de outono
teve na calçada
quando de vez vieres que será de mim?
E tenho a ousadia de morder-te
à superfície do dia. Tu bem sabes
que catedral de esperança te reservo
Talvez já amanhã nos não saudemos sob as árvores
e venhas sobre as nuvens
sobre o coração sobre a morte sobre mim"

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Se não fosse a iluminista Razão por onde andaríamos nós!?...


Retiro esta notícia do site da Pastoral da Cultura. É um mimo:

'Segundo o Prof. Roger Wotton, um conceituado biólogo da University College London, em Londres, se os anjos corresponderem às representações, é impossível que possam voar.

“Basta um olhar rápido pelas provas nas artes representativas para concluir que os anjos e querubins não podem levantar voo nem voar. Mesmo que planassem, precisariam de estar expostos a ventos muito fortes para poder descolar, ventos de tal maneira fortes que seriam arrastados e não precisariam das asas para nada”.

...

A distorção do tórax necessária para que as fadas possam voar com asas de borboleta seria terrivelmente desconfortável. Certamente não voam”, conclui.'

Estamos esclarecidos, portanto!

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A propósito da importância da fidelidade


esclarece D.Manuel Clemente numa entrevista. Eis a pergunta e a resposta do bispo do Porto:
"Qual foi o seu primeiro grande desafio depois de ter sido ordenado padre, a primeira “montanha” que lhe apareceu pela frente?
O desafio talvez tenha sido, foi certamente, o da fidelidade. Ou seja, tudo o que me aconteceu na adolescência, na juventude e no princípio da idade adulta, ainda era muito em tons de ideal e de idealismo, mas depois há a vida de todos os dias. E o maior desafio durante todos esses anos 80, que é a minha primeira década sacerdotal, foi o desafio da fidelidade: acreditar que a vida se joga muito mais na fidelidade às pequenas coisas de todos os dias do que propriamente em estar a idealizar que seria melhor doutra maneira. Em qualquer aplicação existencial é uma prova dura, mas absolutamente imprescindível."

De D. Manuel Clemente quero hoje destacar Portugal e os Portugueses, um livro que, na minha opinião, constitui uma das reflexões mais lúcidas sobre aquilo que podemos designar identidade portuguesa; um livro que deveria figurar a par com o clássico de António José Saraiva nas bibliografias das cadeiras de cultura portuguesa.

Aí escreve D. Manuel:
«É habitual insistir-se na nossa infinita capacidade de adaptação, seja aonde for. Pergunto-me se não se trata antes do contrário. Se não devíamos falar até da impossibilidade de deixarmos de ser quem somos, tal a densidade interior que acumulámos. Não temos de nos adaptar por aí além, porque já temos dentro e acumulados os infinitos aléns que nos formaram. Aqui, neste recanto ocidental do continente, sedimentaram-se, milénio após milénio, os variados povos que, do Norte de África ou do Leste da Europa, tiveram forçosamente de parar numa praia que só no século XV se transformou em cais de embarque. Aqui chegaram outros, que depois vieram e continuam a vir das mais diversas procedências. Tanta gente em tão pouco espaço só pode espraiar-se numa geografia universal. Assim foi e assim é.»
[excerto do primeiro capítulo]

Poderá haver quem diga ser este um livro pouco volumoso. Ora, deveria ser uma evidência que o volume, a extensão, não implica qualidade, e que um perfil intelectual (universitário, por exemplo) não se avalia pelo número de textos publicados, mas sim pelo impacto que um texto tem na sua área científica (será esta uma piada subliminar...?). Por isso, creio que Portugal e os Portugueses deve merecer um lugar nas bibliografias que acima referi; acima de tudo, este é um livro a ser lido por quem, para além da universidade, pretenda conhecer-se e conhecer-nos melhor.

Boas leituras!

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A propósito de Cézanne




Discursos vários, no domínio da epistemologia e, em particular, do influente jornalismo cultural, evocam a modernidade que vivemos através de recorrências semânticas como mudança de paradigma, continuidade ou ruptura, ansiedade ou euforia, utopia ou distopia. Com maior ou menor intensidade, o seu eco repercute em diferentes esferas do social, nomeadamente na educação e no ensino. O ensino a distância revela-se um actante privilegiado desses ecos, pelo que será pertinente analisar a legitimidade desse léxico. Para uma breve reflexão em torno deste tópico, começo por vos convidar a um olhar sobre Cerejas e Pêssegos, um quadro pintado por Cézanne entre 1883 e 1887.
Todo aquele que se debruça minimamente sobre a cultura e o universo artístico do século que findou, é confrontado com a inevitável presença de Cézanne, e deste quadro em particular. De tal modo que, a par de Ceci n’ est pas une pipe, de Matisse, ele funciona como um ícone desses tempos. Justifica-se esta designação – ícone - através de um, entre aspas, “erro” mimético. Onde reside esse “erro”? Este quadro ignora, mais correcto seria dizer, sabota, a noção de perspectiva, a ilusão de profundidade, e de consequente tridimensionalidade, herdadas da Renascença. “N[est]a natureza-morta ... , o prato de cerejas está de tal modo inclinado para a frente que se tem a impressão de a estar a ver de cima. Passa-se a mesma coisa com a parte traseira da mesa, ao passo que a parte da frente está pintada de tal maneira que se julga estar à mesma altura. O prato de pêssegos e o pichel estão igualmente representados numa perspectiva mais chã.” (Becks-Malorny, 2001: 55) Porquê, perguntar-se-á. Porque Cézanne não reproduz a realidade, ele compõe uma realidade. Para Cézanne, “Não são os objectos próprios que devem atrair a atenção, mas a disposição das colorações e das formas segundo a concepção do pintor. Mediante esta maneira de ver subjectiva,..., Cézanne cria uma nova realidade.” (Ibidem, 56) Com efeito, é toda uma tradição de representação, radicada na Antiguidade clássica e prolongada na história da cultura ocidental, que Auerbach analisa no seu clássico Mimesis, aquela que, neste icone, é superada.
Registe-se outro aspecto, a banalidade, que designaria “democrática,” do referente. Para criar “um novo plano da realidade,” Cézanne “não tem necessidade nem de objectos artísticos nem de decorações sumptuosas: as coisas mais simples são aquelas que melhor o ajudam a concretizar as suas concepções sobre a profundidade, a consistência e o peso numa estrutura plana.” (Ibidem) Ora, sensivelmente na mesma altura, do outro lado do oceano, numa pequena cidade da Nova Inglaterra, um músico americano, Charles Ives, antecipava as rupturas que Schonberg iria formalizar no início do século XX. Não é, todavia, isso que interessa para esta reflexão. Interessa, sim, aquilo que ele realiza no segundo movimento da peça Três Lugares na Nova Inglaterra, intitulado “Putnam’s Camp, Redding, Connecticut.” Trata-se de uma fantasia composta a partir de uma reminiscência da infância de Ives. Durante uma celebração do 4 de Julho, este observou duas bandas que se encontravam em extremidades opostas do parque. Cada uma seguia o seu percurso em direcção ao local onde Ives se encontrava, criando, no momento em que ambas se cruzaram, uma impressionante dissonância. O compositor retoma este episódio na peça, representando o intimismo do jovem através de instrumentos de sopro, e daquilo que, convencionalmente, se considera o registo da música erudita. Gradualmente, o tecido musical erudito é invadido por um registo popular; num determinado instante, quando as bandas se cruzam na mente do sujeito, dá-se uma fusão entre registos distintos, o erudito e o popular; aspecto fundamental: cria-se, então, uma nova dimensão estética. Coloca-se, assim, a questão: como definir este novo registo artístico, já que ele não se enquadra nos cânones, na convenção?
Também sensivelmente nesta altura, Oscar Wilde escreve um ensaio, que devia, aliás, ser objecto de leitura compulsiva nos cursos de comunicação social, intitulado “A Alma do Homem sob o Socialismo.” Neste ensaio, Wilde detém-se sobre aquele que considera ser não já “o quarto poder”, mas, como ele próprio afirma, “o único poder:” o jornalismo. A acção e o predomínio do jornalismo na configuração de um ethos, são aqui identificados através da interacção específica que o jornalismo estabelece com um novo conceito: a “opinião pública.” De imediato se entende que este novo espaço e discurso de poder decorre de uma, também ela, nova realidade social, a massificação emergente e participando do paradigma que as revoluções setecentistas, em particular a americana, configuraram. Refiro-me, naturalmente, ao liberalismo, na sua acepção radical; ao liberalismo que delineou o quadro institucional que hoje norteia o ethos ocidental, e que outros horizontes, ainda arcaicos, a ele alheios, com dificuldade mimetizam.
Por outro lado, o discurso massivamente veiculado pelo jornalismo assenta a sua acção numa ênfase no presente. Recorde-se que o conceito operatório, a nível do tempo, resultante das mencionadas revoluções setecentistas, é o presente, o qual deve também ser entendido no âmbito de um declínio, o das metanarrativas, e de uma ausência, a do centro único irradiador da norma, como, por exemplo, o das denominações religiosas, das igrejas. Este aspecto é particularmente relevante pelo facto de estas veicularem, igualmente, uma memória e uma tradição, as quais, por seu turno, conferiam coesão social e justificavam uma identidade; eram, portanto, factores de equilíbrio. A tendencial ausência do passado significa, deste modo, uma diluição da memória e uma crise identitária; assim se gera a ansiedade, a angústia, o receio face ao futuro. Estudos sobre a imprensa, a biografia, a diarística e o registo epistolar britânicos oitocentistas, registam a sistemática reiteração de um estado de espírito marcado pela ansiedade face à mudança.
O paradigma, então, emergente (liberal, democrático e moderno) exigiu, portanto, aquilo que Piaget designou como reequilibração, necessariamente colectiva. Este paradigma, nascendo, como referi, no século XVIII, percorre todo o século XIX, e consolida-se já em finais do século XX, com a diluição dos discursos políticos, na acepção foucauldiana, que pretenderam regressar a um passado em que um centro único, configurava, irradiava e preservava, com notável e eficiente zelo, o poder. Ora, a reequilibração passará, entre outros aspectos, pela reformulação da noção de poder e pela diversificação dos centros irradiadores. Daí também que o século XIX, onde o paradigma emergente se expande, seja uma época marcada por um sentimento de crise, ao qual acrescem sentimentos antitéticos, de ansiedade e motivação, de angústia e esperança, de perplexidade e de confiança. Curiosamente, uma obra colectiva lançada há uns dias atrás na Reitoria da Universidade de Lisboa, intitula-se Crises em Portugal nos Séculos XIX e XX. No ensaio “A Noção de Crise e a sua Aplicação em História Moderna,” Maria do Rosário Themudo Barata recorda que a “noção de crise é aplicada ao século XVII por Paul Hazard ..., n[um ensaio] ... que ele intitulou ‘Crise da Consciência Europeia, ...’ e em que abordou as grandes transformações psicológicas; os racionais contra as crenças tradicionais; as tentativas de reconstrução para um modelo novo de humanidade; os valores imaginativos e sensíveis.” (Barata, 2002: 16) Trata-se, portanto, de um processo vasto e complexo de reequilibração face aos requisitos de uma nova realidade.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pasolini, através do seu Evangelho de Mateus,


será hoje evocado por Inês Gil, na Sociedade de Geografia de Lisboa, pelas 18h.
Se estiverem nas vizinhanças, não percam.
Bons filmes!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

"Hamatreya", um poema de Emerson



"BULKELEY, Hunt, Willard, Hosmer, Meriam, Flint,

Possessed the land which rendered to their toil

Hay, corn, roots, hemp, flax, apples, wool and wood.

Each of these landlords walked amidst his farm,

Saying,''T is mine, my children's and my name's.

How sweet the west wind sounds in my own trees!

How graceful climb those shadows on my hill!

I fancy these pure waters and the flags

Know me, as does my dog: we sympathize;

And, I affirm, my actions smack of the soil.'

Where are these men? Asleep beneath their grounds:

And strangers, fond as they, their furrows plough.

Earth laughs in flowers, to see her boastful boys

Earth-proud, proud of the earth which is not theirs;

Who steer the plough, but cannot steer their feet

Clear of the grave.
They added ridge to valley, brook to pond,

And sighed for all that bounded their domain;

'This suits me for a pasture; that's my park;

We must have clay, lime, gravel, granite-ledge,

And misty lowland, where to go for peat.

The land is well,--lies fairly to the south.

'T is good, when you have crossed the sea and back,

To find the sitfast acres where you left them.
'
Ah! the hot owner sees not Death, who adds

Him to his land, a lump of mould the more.

Hear what the Earth says:--"

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Porque após muitas batalhas,



sinuosos sorrisos e não poucas palavras enganosas, este é um dia especial para mim e para os meus amigos, deixo-vos a mais bela das imagens (Cristo, segundo Rouault) e os versos de José Tolentino Mendonça em "A fala do rosto":

"És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra

Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos

Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas

Por Ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos

É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas a Tua palavra
é o frio de prata
que guia as folhas
por entre o vento"

Para quem sinta espanto perante a representação de Rouault, importa recordar aquilo que outrora escreveu São Gregório de Agrigento, tendo em mente o Eclesiástico, 10,2: "...não há nada verdadeiramente mais suave que fixar n'Ele os olhos do espírito..."

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Porque São João da Cruz


é hoje celebrado pela Igreja, aqui vos deixo um poema seu, intitulado "Noite Escura":

"Em uma Noite escura,
com ânsias em amores inflamada,
ó ditosa ventura!,
saí sem ser notada.
estando minha casa sossegada.

A ocultas, e segura,
pela secreta escada, disfarçada,
ó ditosa ventura!,
a ocultas, embuçada,
estando minha casa sossegada.

Em uma Noite ditosa,
tão em segredo que ninguém me via,
nem eu nenhuma cousa,
sem outra luz e guia
senão aquela que em meu seio ardia.
Só ela me guiava,
mais certa do que a luz do meio-dia,
adonde me esperava
quem eu mui bem sabia,
em parte onde ninguém aparecia.

Ó Noite que guiaste!,
ó Noite amável mais do que a alvorada!,
ó Noite que juntaste
Amado com amada,
amada nesse Amado transformada!

No meu peito florido,
que inteiro para ele se guardava,
quedou adormecido
do prazer que eu lhe dava,
e a brisa no alto cedro suspirava.

Da torre a brisa amena,
quando eu a seus cabelos revolvia,
com fina mão serena
a meu colo feria,
e todos meus sentidos suspendia.

Quedei-me e me olvidei,
e o rosto reclinei sobre o do Amado:
tudo cessou, me dei,
deixando meu cuidado
por entre as açucenas olvidado."

Boas leituras! Boas meditações!

Falemos da morte



pois ela integra a nossa vida.
Ocultá-la, denegá-la, nomeadamente aos jovens, com medo de os "traumatizar", só significará suscitar uma perplexidade futura que, essa sim, dificilmente será superável.
Eis como Sylvia Plath a abordou, através de um pormenor de um quadro de Brueghel, O triunfo da morte, no poema (díptico onde ecoa o romance The Bell Jar) “Two Views of a Cadaver Room”:

"I
The day she visited the dissecting room
They had four men laid out, black as burnt turkey,
Already half unstrung. A vinegary fume
Of the death vats clung to them;
The white-smocked boys started working.
The head of his cadaver had caved in,
And she could scarcely make out anything
In that rubble of skull plates and old leather.
A sallow piece of string held it together.

In their jars the snail-nosed babies moon and glow.
He hands her the cut-out heart like a cracked heirloom.

II
In Breughel's panorama of smoke and slaughter
Two people only are blind to the carrion army:
He, afloat in the sea of her blue satin
Skirts, sings in the direction
Of her bare shoulder, while she bends,
Fingering a leaflet of music, over him,
Both of them deaf to the fiddle in the hands
Of the death's-head shadowing their song.
These Flemish lovers flourish; not for long."

O episódio evocado na secção I é narrado no romance de Plath, The Bell Jar. Daí a referência que fiz no início. Encontramo-lo, igualmente, nos diários da escritora.

O pormenor por ela referido na secção II pode ser desvendado no canto inferior direito do quadro.

Boa semana!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Manoel de Oliveira celebra hoje 101 anos



Excerto de um texto meu sobre Palavra e Utopia apresentado na Sociedade de Geografia de Lisboa, que será publicado no Boletim desta instituição:

"Primeira questão: como filmar uma identidade concebida e afirmada através da palavra, do discurso? Segunda questão, inerente à anterior: como reproduzi-la, sabendo que, nos tempos que correm, se afirma como absoluto a incapacidade de reter a atenção comum perante o discurso? Quando o espectador está rotinado a ver filmes com planos de duração média de 5.15 segundos, 4.75 se for digital, e quando estudos há apontando para um tempo médio de meio a 3 segundos para que uma audiência se ajuste a cada novo plano e o absorva? (Pramaggiore and Wallis, 166) Quando no horizonte de expectativas do espectador a acção parece prescindir da enunciação? Tentarei responder a estas questões nesta leitura do filme de Manoel de Oliveira, Palavra e Utopia.

Comecemos pelo título. Oliveira enuncia logo aí a centralidade da palavra no filme; o que significa a assunção de uma estratégia contra a corrente. Esta não deverá, todavia, ser reduzida a uma vinculação estética do Mestre, a uma assinatura sua; nem aos constrangimentos orçamentais, embora este possam ter sido determinantes. Disse-me um amigo que com ele trabalhou, a nível da produção, neste filme, que Oliveira afirmou terem sido esses constrangimentos importantes para as suas soluções estéticas e narrativas. Independentemente desses constrangimentos, a ênfase tanto na palavra, no signo, como na utopia denuncia uma percepção clara das dimensões fulcrais na obra de Padre António Vieira.

Veja-se, desde logo, o travelling inicial, durante o qual são exibidos os créditos. Oliveira utiliza aí um plano contra-picado expondo copas de árvores que, por seu turno, nos apontam o céu. Estamos, portanto, em plena densidade de significação: assim se indicia, pelo símbolo ou pela metáfora, uma dimensão espiritual, e, por sinédoque, uma presença central na vida de Vieira, a floresta, e, por extensão, o índio que nela habita ou o escravo que nela será forçado a trabalhar e que o pregador tomará como uma das causas da sua palavra.

Mas como se articula a palavra, seja esta a do sermão ou a da carta, e uma narrativa autobiográfica. Escreve uma especialista em Vieira, Maria Lucília Pires: “... a perspectiva de leitura que me parece mais sedutora consiste em encarar as cartas como construção de um auto-retrato....” (Pires 25) O próprio Verney, que não nutria uma simpatia particular pelos seus sermões, escreve: “Vejo nas suas cartas retratado um ânimo grande, um desinteresse nobre, uma viva paixão pelos aumentos do seu reino e ardente desejo de sesacrificar por ele... Se eu vivesse no seu tempo, seria o seu maior amigo.” (25) E será exactamente a partir das cartas e também, obviamente, dos sermões que Oliveira constrói esta biografia."

Acima de tudo, importante é ver os filmes do Mestre!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

António Lobo Antunes



é considerado por muitos (eu, incluído) o maior escritor português contemporâneo. Neste texto que publicou na Revista Visão revela uma parcela da sua intimidade que, para alguns, será inesperada.
O texto, belíssimo, é intitulado De Profundis:

"O meu pai tinha quatro irmãs mais novas e um irmão que morreu pequenino, de meningite, por volta da idade em que tive essa doença. Parece que comecei com muita febre e horas depois estava em coma. Inexplicavelmente sobrevivi. Há de certeza pessoas que, pelo que vou dizer, me acharão tonto, mas ninguém me tira da cabeça que Santo António me salvou. E lá me levaram, aos sete anos, a Pádua, tocar no túmulo do Santo e fazer a primeira comunhão. A minha relação com Deus tem sido sempre tumultuosa, cheia de desacordos e discussões: longos períodos em que me afasto, alturas em que me aproximo, amuos, quase insultos, discussões. Creio firmemente que, nos livros que escrevo, é Ele que guia a minha mão e não passo de um instrumento da Sua vontade. Quantas vezes me vem à cabeça aquele pequenino poema de Sebastião da Gama: a corda tensa que eu sou o Senhor Deus é quem a faz vibrar; ai linda longa melodia imensa: por mim os dedos passa Deus e então já sou apenas som e ninguém se lembra mais da corda tensa. É que não escrevo assim tão bem, trabalho sem plano e quase me limito a assistir ao que vai ficando no papel. O meu único mérito é fuçar o dia todo, até ser apenas som. Componho-os numa espécie de febre, no fundo de um abismo em que me perco, cego e surdo, não resultam nunca de uma deliberação mental, um propósito, um plano definido. Não concordo com Jean Daniel, quando afirma que a única desculpa de Deus é não existir: há alturas em que o sinto tão fortemente em mim, alturas em que o sei tão longe. O cancro, por exemplo: o Henrique, que é um homem de Fé, diz que me salvei porque nasci com um sistema imunitário fenomenal. Palavras dele. No meu modesto entender esse sistema imunitário fenomenal tem um nome, e esse nome entendeu que eu ainda era necessário aqui. Para escrever, julgo, porque fora dos livros nada valho: os meus defeitos e as minhas imperfeições são enormes. Tão inteligente para umas coisas e tão estúpido para outras, espantava-se a minha mãe. Aborrece-me admitir que é uma excelente definição do António. Nunca fui uma criatura estruturalmente má: na verdade não passo de um aselha, um parvo, incapaz de lidar com as coisas mais simples do quotidiano, um imbecil desamparado. Se os meus amigos não tomassem conta de mim com tanto desvelo não estava aqui a escrever isto, pedia esmolas nos semáforos. Regressando ao princípio o meu pai teve um irmão que morreu pequenino, de meningite. Contou-me certa vez uma coisa que não esqueci nunca: era criança e tinha ido com o pai buscar os exames do irmão. Meningite tuberculosa, sentença de morte. Vieram para casa com o meu avô a guiar o automóvel, e o meu pai, sentado ao lado do meu avô, via as lágrimas descerem pela cara impassível. Todos os dias, na esperança do filho se salvar, a minha avó ia a pé das portas de Benfica à capelinha da Senhora da Saúde, o que nessa época, e com o estado das ruas de Lisboa, exigia um esforço enorme. Depois dos meus avós morrerem as minhas tias encontraram toda a roupa do irmão guardada num armário: não foram capazes de se desfazer dela, não quiseram desfazer-se dela. Já nenhuma das pessoas de que falei se encontra neste mundo: os meus avós, o meu pai, as minhas tias. Sobro eu e, em certo sentido, enquanto cá estiver eles continuam. Para quem pensam que escreve o imbecil desamparado? Para as lágrimas de um homem pela agonia do filho, para uma mulher a caminhar diariamente quilómetros na esperança de que Deus o curasse. No jazigo dos meus avós lê-se

Ao nosso Antoninho

e, de vez quando, vou lá às escondidas. Podem pensar na minha cretinice, não me rala, sinto-me bem junto deles. Os meus livros são isso: as lágrimas daquele homem, os passos daquela mulher. No caso de se aproximarem mais das páginas é o que realmente verão, em lugar de palavras impressas. E talvez vejam também o cretino a espreitar, comovido, pelas grades da porta."

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Medina Carreira dixit



Sobre o "Programa" (desculpem, mas quando escrevo esta palavra tenho imediatamente um ataque de riso!) Novas Oportunidades:
"O ... Novas Oportunidades é uma trafulhice de A a Z, é uma aldrabice. Eles [os alunos] não sabem nada, nada."
"[Os alunos] fazem um papel, entregam ao professor e vão-se embora. E ao fim do ano, entregam-lhe um papel a dizer que têm o nono ano [de escolaridade]. Isto é tudo uma mentira, enquanto formos governados por mentirosos e incompetentes este país não tem solução."

Ainda há quem se indigne e tenha coragem para afirmar a sua indignação.

Cá por mim acho que Brueghel também se aplica a este caso:

o cego conduzindo o cego...

E Austeriana comentou:

"O mais «curioso» (entenda-se o adjectivo como um eufemismo...)é a verborreia utilizada nestes cursos. Os professores passaram a ser designados como «formadores»; os directores de turma são agora «mediadores»; os alunos são «formandos»; e os conteúdos a «leccionar» (o verbo é outro eufemismo...)são determinados pelo "tema de vida" sugerido pelos tais alunos que não são alunos mas formandos. Acresce que, por exemplo, se um professor quiser, verdadeiramente, conseguir que os alunos/formandos aprendam, por exemplo, inglês, não pode. O importante é que os tais alunos-formandos tragam a experiência de vida para as sessões (e não aulas!) porque os docentes de inglês têm de incutir nos "actores" a noção da «língua inglesa implícita».
Como se ensina «inglês implícito»? Não faço a mínima ideia mas também isso não é importante: passam todos!
MC é curto e grosso mas, ao estado a que isto chegou, lava-nos a alma ouvir alguém falar assim!"

Interpretações do Rosto



"És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra

Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos

Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas

Por Ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos

É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento"

O título deste poema de José Tolentino Mendonça é "A fala do rosto". Encontrá-lo-ão em A Noite Abre Meus Olhos (título que, diz-me um dos meus filhos, ecoa os Smiths), a poesia reunida de Tolentino.

O Rosto acima foi pintado por Rouault.

Boas leituras!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

As "Metamorfoses" de Sena



"Jorge de Sena é um dos vultos maiores da literatura portuguesa do século XX. Com uma obra extensa e diversificada, abrangendo da poesia ao drama, da narrativa à crítica, da tradução à ensaística, Sena é autor de Metamorfoses, um livro de poemas singular da nossa poesia contemporânea.

Neste livro, o autor toma referentes explícitos das artes visuais como impulso para a criação dos seus poemas. Descrições, interpelações irónicas ao leitor, confissões de raiz biográfica mais ou menos explícitas, leituras de sentidos eventualmente difusos, são algumas das estratégias de enunciação por ele utilizadas, e que funcionarão aqui como ponto de partida para uma reflexão sobre algumas das vertentes do diálogo entre a poesia e as artes visuais.

Num ensaio dedicado a Jorge de Sena, incluído em Os dois crepúsculos, Joaquim Manuel Magalhães refere ser o autor de Sinais de Fogo “responsável, nos anos 60, por uma mudança qualitativa na nossa poesia ao publicar Metamorfoses.” (Magalhães, 1981:59)

De acordo com aquele poeta e ensaista, tal dever-se-ia ao facto de Sena aí ter erguido “a uma prática nossa a possibilidade de ultrapassagem do lirismo objectivo da heteronímia pessoana, propondo uma sequência de descrições subjectivas de objectos artísticos.” (Magalhães, 1981:59)

No passo acima citado, Magalhães destaca dois aspectos:

• em primeiro lugar, a assimilação de uma tradição poética exógena, anglo-saxónica, com a consequente abertura a novos diálogos e a novos encontros estéticos;

• em segundo lugar, a possibilidade de superação de, recorrendo à terminologia consagrada por Harold Bloom, um poeta “forte” precedente, ou seja, Fernando Pessoa.

O próprio Sena definira de uma forma muito clara a sua relação com Pessoa no Posfácio a Metamorfoses, datado de Janeiro de 1963. Escrevera então Sena que já se gastara “o desafinado disco de me acharem discípulo,” acrescentando algo de particularmente relevante: “quando ele é o que é meu, pelo muito que, criticamente, o expliquei por mim.” (Sena, 1978: 167)

Ora, será exactamente através desta relação com o poeta da Mensagem, que o primeiro aspecto acima citado, o da interacção com as tradições poéticas anglo-saxónicas, se insinua."

Este é um passo, algo modificado, do meu livro Ekphrasis - O poeta no atelier do artista (Cosmos).

Boa semana!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Reler Sena


Ainda a propósito da ignorância institucionalmente disseminada e metodicamente promovida.
Quando li pela primeira vez este poema era o fantasma da opressão política que pairava. Eram os vampiros a comerem tudo e a não deixarem nada!
Hoje, a opressão é outra, mais subtil, exercida por polícias mais ou menos ocultas (que todos escutam), por outro tipo de vampiros que podem ter o 12º ano ou mesmo cursos ditos superiores mas são idênticos aos burros de outrora.
Sena continua actual, e isso perturba-me pois não consigo desvendar qual será o futuro dos meus filhos!

Eis um excerto de "Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya", esperando que, perante este pântano, continue a haver quem fique "com o coração ofendido":

"Não sei, meus filhos, que futuro será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor.”

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Ilda David uma vez mais



Desta feita uma exposição sob o signo de «Vicente», no Salão Nobre do Teatro Nacional São João (Porto), a propósito de «Breve Sumário da História de Deus», de Mestre Gil.

Que pena Mestre Gil ser, hoje em dia, colocado ao mesmo nível da publicidade, dos artigos de jornais, de textos irrelevantes, nos programas de Português com que as crianças e os jovens deste país são ensinados.
Tanta a inteligência perdida!
Quantas gerações se têm perdido!
Basta ouvi-los falar!
Há dias, uma alta figura do Estado, dizia que qualquer coisa lhe chegava "às bochechas"!
É a vida!
Para já, fico à espera de ver o livro com as ilustrações da Ilda.

E Teresa Santos comentou:

"E a nossa política de Educação não terá muita responsabilidade nestas "gerações perdidas?"
Ontem, entrei no Wook para ver o que havia destinado aos mais pequenos.
Fiquei, pura e simplesmente estarrecida com algumas "pérolas" que por lá encontrei.
Apenas a título de exemplo deixo a referência de um livro que se intitula:

"Contos Tradicionais"
Oito Contos Maravilhosos
Edição/reimpressão: 2006
Páginas: 96
Editor: Lisboa Editora
ISBN: 978-972-680-644-8
Colecção: 1001 LIVROS
Faixa etária: a partir dos 13 anos"

A referência ao livro está acompanhada de duas páginas do mesmo.
Vale a pena entrar e ler!

Aqui fica o link, para o caso de querer ver um exemplo de bem escrever o português:

http://www.wook.pt/ficha/contos-tradicionais/a/id/176328/filter/

Chamo, ainda, a atenção para a faixa etária a que o livro se destina. Acho isto tão insólito que considero que só pode ter havido lapso. Mas, e o português?!
Sem mais comentários!"

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

If you don't know where you're going any road will take you there



"Não te peço mapas, peço-te caminhos.
O gosto dos caminhos recomeçados,
com suas surpresas, suas mudanças, sua beleza.
Não te peço coisas para segurar,
mas que as minhas mãos vazias
se entusiasmem na construção da vida.
Não te peço que pares o tempo na minha imagem predilecta,
mas que ensines meus olhos a encarar cada tempo
como uma nova oportunidade.
Afasta de mim as palavras
que servem apenas para evocar cansaços, desânimos, distâncias. "

Boas viagens!

E agora a minha versão



de "Mary's Song". Foi publicada no meu livro Sylvia Plath, o rosto oculto do poeta (Cosmos, 1997). Faz parte do Apêndice, uma tradução de mais de duas dezenas de poemas de Plath, acompanhada dos textos originais.

Ei-la:

"A Canção de Maria

O carneiro dominical estala na sua gordura.
A gordura
sacrifica a sua opacidade...

Uma janela de oiro sagrado.
O fogo torna-o precioso,
o mesmo fogo

fundindo os hereges ensebados,
despojando os judeus.
Os seus panos mortuários espessos flutuam

sobre a cicatriz da Polónia, Alemanha
destruída pelo fogo.
Eles não morrem.

Pássaros cinzentos atormentam o meu coração,
cinzas na goela, olhar de cinzas.
Pousam. No alto

precipício
que soltou um homem no espaço
os fornos cintilam como céus, incandescentes.

É um coração,
este holocausto que percorro,
Ó menino de oiro, o mundo há-de matar e comer."

Boas leituras!

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

"Mary´s Song", de Sylvia Plath



Porque George Steiner que ainda há dias esteve entre nós, foi uma das primeiras vozes mais lúcidas a falar sobre Plath e porque se vivem tempos de Advento, lembrei-me de recordar "Mary's Song":

"The Sunday lamb cracks in its fat.
The fat
Sacrifices its opacity. . . .

A window, holy gold.
The fire makes it precious,
The same fire

Melting the tallow heretics,
Ousting the Jews.
Their thick palls float

Over the cicatrix of Poland, burnt-out
Germany.
They do not die.

Grey birds obsess my heart,
Mouth-ash, ash of eye.
They settle. On the high

Precipice
That emptied one man into space
The ovens glowed like heavens, incandescent.

It is a heart,
This holocaust I walk in,
O golden child the world will kill and eat."

Boa semana!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

George Steiner


recebe hoje um doutoramento "honoris causa" na Universidade de Lisboa.
Steiner é uma voz que moldou muita gente na minha geração; logo, é bom vê-lo receber esta honra na Universidade de Lisboa. Além disso, é sempre motivo de júbilo ver que a Faculdade de Letras, que certamente impulsionou esta distinção, está viva e com rumo.
Ouvi algures que José Pedro Serra será o padrinho. Que bom!
Besides, como podeis ver, o Steiner gosta de cães!
Bem hajam!
E para atenuar esta atmosfera eufórica, eis uma quote sua, perturbantemente lúcida: "We know that a man can read Goethe or Rilke in the evening, that he can play Bach and Schubert, and go to his day's work at Auschwitz in the morning."

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Questões de ética


parecem estar arredadas do nosso quotidiano, seja este político, judicial, et al.
No registo político, em particular, provavelmente numa leitura equivocada de Maquiavel, há quem defenda a sua elisão; não explicitamente, claro, mas sim, sinuosamente, ao evocar uma incapacidade de aproximação crítica pela via da ética.
Shakespeare, atento que estava às circunstâncias políticas do seu tempo, recupera a História para colocar a ética no centro da acção política.
O texto é, obviamente, Julius Caesar, e o passo, o célebre discurso de Marco António na cena ii do Acto III, após o assassinato de César.
Ei-lo (rcordando visualmente Marlon Brando):

"Friends, Romans, countrymen, lend me your ears;
I come to bury Caesar, not to praise him;
The evil that men do lives after them,
The good is oft interred with their bones,
So let it be with Caesar ... The noble Brutus
Hath told you Caesar was ambitious:
If it were so, it was a grievous fault,
And grievously hath Caesar answered it ...
Here, under leave of Brutus and the rest,
(For Brutus is an honourable man;
So are they all; all honourable men)
Come I to speak in Caesar's funeral ...
He was my friend, faithful and just to me:
But Brutus says he was ambitious;
And Brutus is an honourable man….
He hath brought many captives home to Rome,
Whose ransoms did the general coffers fill:
Did this in Caesar seem ambitious?
When that the poor have cried, Caesar hath wept:
Ambition should be made of sterner stuff:
Yet Brutus says he was ambitious;
And Brutus is an honourable man.
You all did see that on the Lupercal
I thrice presented him a kingly crown,
Which he did thrice refuse: was this ambition?
Yet Brutus says he was ambitious;
And, sure, he is an honourable man.
I speak not to disprove what Brutus spoke,
But here I am to speak what I do know.
You all did love him once, not without cause:
What cause withholds you then to mourn for him?
O judgement! thou art fled to brutish beasts,
And men have lost their reason…. Bear with me;
My heart is in the coffin there with Caesar,
And I must pause till it come back to me."

Sublime, n'est-ce pas?

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

De um poema de Ralph Waldo Emerson


deixo-vos esta minha tradução:

















"Brama

Se o ceifeiro vermelho pensa ceifar,
Ou se o ceifado pensa sê-lo,
Ambos ignoram as subtilezas
Que minhas são, e passam, e voltam de novo.

O distante ou o esquecido é para mim próximo;
A sombra e a luz o mesmo são;
Os deuses desaparecidos aparecem ante mim;
E unos para mim são a vergonha e a fama.

Ilude-se quem me ignora;
Quando eu são, voam; eu sou as asas;
Sou o que duvida e a dúvida,
E o hino que o brâmane canta.

Os deuses fortes anseiam pela minha casa
E em vão anseiam os Sete sagrados;
Mas tu, dócil amante do bem!
Encontra-me, e volta as costas ao céu."

Boa semana!

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Bartleby sob o olhar de Giorgio Agamben



Giorgio Agamben
Bartleby – Escrita da Potência
Seguido de Bartleby, O Escrivão de Herman Melville
Tradução de Gil de Carvalho
Assírio & Alvim, 2008


A década de 1850 é habitualmente identificada, nos Estados Unidos, com o auge do Renascimento Americano, isto é, um momento histórico durante o qual surgem um conjunto de obras que vão emancipar as letras americanas das velhas musas da Europa: Ralph Waldo Emerson proclama essa independência nos seus ensaios (1850 é a data da edição de Homens Representativos); em A Letra Escarlate (1850) Nathanael Hawthorne evidencia a presença puritana na sociedade oitocentista; Herman Melville antecipa o romance moderno com Moby-Dick (1851); Henry David Thoreau reformula a escrita autobiográfica em Walden, A Vida nos Bosques (1854); Walt Whitman inaugura uma tradição épica com “Canto de Mim Mesmo” (1855).

No seio destas obras fundamentais importa acentuar a produção narrativa de Herman Melville que, após uma década de intensa e diversificada contribuição para o universo literário contemporâneo, se dedicará quase exclusivamente à criação poética.

Neste espaço de tempo, para além do acima mencionado Moby-Dick, Melville dá a lume White-Jacket (1850), onde prenuncia Moby-Dick; Pierre, no qual aborda a incómoda temática do suicídio (1852), Bartleby (1853), The Encantadas (1854), Israel Potter (1855), Benito Cereno, um libelo contra a escravatura e o racismo (1855), The Piazza Tales (1856, reunindo Bartleby e Benito Cereno), The Confidence-Man, uma sátira ao optimismo transcendentalista (1857). Segue-se o silêncio. Em 1859 a mulher de Melville, Elizabeth, escreve numa carta à mãe: “O Herman começou a escrever poesia. Não diga nada a ninguém, pois sabe como estas coisas se espalham.”

Embora a generalidade destas obras ou visite temáticas sensíveis para a sociedade americana no período que antecede a guerra civil, ou questione radicalmente os cânones narrativos (em Moby-Dick Melville antecipa algumas das experiências mais radicais da narrativa do século xx, inserindo registos inesperados e estranhos, e fazendo coabitar diferentes géneros no mesmo espaço textual – poesia, drama, escrita confessional, discurso científico, etc.), Bartleby – O Escrivão será, talvez, aquela que maior perplexidade suscita.

À semelhança do que afirma Nick Carraway, o narrador de O Grande Gatsby, no final deste romance, Melville é um barco contra a corrente dominante na América de meados do século XIX. Autores fundamentais, como os acima mencionados Emerson e Whitman, celebram o indivíduo e as suas imensas capacidades. Tanto no pensamento como na intervenção social, nomeadamente através da palavra, do discurso, é a acção, a energia que então se celebram.

Contra a corrente, Melville parece contrapor (celebrar?), em Bartleby, o oposto: a inacção e o silêncio.

Importa, desde logo, referir a escolha desta profissão, escrivão. A sua relevância, no âmbito de um tecido social urbano nova-iorquino, havia sido reconhecida por Charles Dickens ao inserir um escrivão entre o núcleo de personagens de Bleak House. Por seu turno, Charles Briggs, no seu romance sobre Nova Iorque, The Adventures of Harry Franco, atribui ao protagonista esta profissão quando ele se inicia na vida da grande metrópole. Uma palavra surge aí para caracterizar esta actividade, monótona.

Ao escolher esta profissão, Melville atribui visibilidade a uma actividade anónima e certamente pouco imaginativa que não participa da energia que enforma o sonho americano. Além disso, retira do silêncio essa actividade. Dupla ironia, visto ser esta uma narrativa sobre o peso esmagador do silêncio e da resistência passiva. E do seu preço, pois este, como o desenlace evidencia (antecipando outro silêncio, o de Billy Bud, protagonista da derradeira novela de Melville), pode ser a própria morte.

Na estranheza que percorre o silêncio de Bartleby muitos reconheceram uma antecipação de Kafka ou de Ionesco. Ora, esta edição permite uma revisão desta leitura através do olhar do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942). Numa análise que, a par da de Gilles Deleuze, figura entre as mais argutas que o século XX conheceu deste texto, Agamben reposiciona a narrativa no âmbito de uma tradição hermenêutica que reavalia o diálogo entre o silêncio e a acção, assim questionando leituras mais tímidas. Por seu turno, Gil de Carvalho reviu a sua tradução de 1988, de modo a reconfigurar o texto a partir do olhar de Agamben (o negrito dá ênfase à distância do tradutor face à sua versão original). Por fim, as fotos do local de trabalho do filósofo não só criam uma ponte entre o seu texto e o de Melville, como sinalizam uma idêntica filiação.

Esta edição oferece, deste modo, uma narrativa indispensável para quem deseja conhecer a literatura americana e uma perspectiva crítica incisiva e pertinente.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Má fortuna...?


Não sei se estou a incorrer em ilegalidade alguma mas não consigo deixar de transcrever a opinião de Manuel António Pina, inserida hoje no JN:

'Desde 2005 (o ano pode não significar nada, mas dá que pensar) que Portugal vem descendo no "ranking" de percepção da corrupção da Transparency International, isto é, vem-se alegremente revelando um país cada vez mais corrupto, tendo este ano descido mais três lugares, da 32ª para a 35ª posição, e estando agora, em termos de corrupção, ao nível de Porto Rico, numa honrosa posição entre a Dominica (um pouco menos corrupta que nós) e o Botswana (um pouco mais corrupto).

Os índices da Transparency International resultam da avaliação anual de analistas e homens de negócios, bem como de organizações como o Banco Mundial, o Fórum Económico Mundial, os Bancos de Desenvolvimento da África e da Ásia e centros de pesquisa como o Economist Inteligence Unit e o Global Insight. Curioso foi o modo detergente como alguns jornais deram ontem a notícia. O "Jornal Digital", por exemplo, deu-a sob o animador título de "Corrupção: Portugal é o país lusófono menos corrupto". Algo assim como, numa corrida com dois corredores, noticiar: "O nosso ficou em segundo lugar, ao passo que o adversário ficou em penúltimo".'

Santo Deus!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Jane Urquhart



estará amanhã à tarde, em Lisboa, na Faculdade de Letras. A não perder, pelo menos para quem ande pelas vizinhanças e consiga organizar o seu tempo. Jane Urquhart é uma romancista de rara inteligência que vale a pena conhecer, nomeadamente pelo facto de nos abrir as portas para uma outra América, um pouco mais a Norte, que não raro esquecemos.
Já agora, por afinidade de apelido, Tony Urquhart, seu marido, é um pintor também a conhecer. Podem googlá-lo. Deixo-vos algo para estimular o interesse.
Até amanhã!

De Rossetti já me ocupei nestas páginas


(virtuais). Agora deixo-vos a referência de um livro, um dos livros, aliás, que mais portas me abriu nestes últimos meses, a propósito dele e do gang pré-rafaelita. Porque entre nós deve prevalecer a partilha e não a ocultação, aqui fica seu título: Poetry and the Pre-Raphaelite Arts - Dante Gabriel Rossetti & William Morris, e sua autora Elizabeth K. Helsinger. Para quem gosta destes diálogos entre artes, a não perder.
Boas leituras!

Estranhos sonhos



são muitas vezes aqueles que nos motivam; por exemplo, o do jovem que queria vencer no mundo da pop e, para que ele (o sonho) se realizasse, foi para Reno.
Porquê este sítio tão improvável para realizar um sonho? Ser estrela pop no Nevada, no meio de salas de jogo?
Esclareça-se que, segundo fontes não muito credíveis, na língua dos índios Chawktaw, Reno quer dizer: "When's the next bus out?"
Esta é, todavia, uma história verídica, diga-se, colhida por Peter Buck ou por Michael Stipes, não me recordo qual, num jornal.
A canção que emergiu desta singular narrativa intitula-se "All the way to Reno (You're gonna be a star)". Eis alguns versos:

"Humming
All the way to reno
Dusted the non-believers
And challenge the laws of chance
...
Wing is written on your feet
Your achilles heel
Is the tendency to dream
But you've know that from the beginning
You didn't have to go so far
You didn't have to go.

You know what you are
You're gonna be a star."

Sigamos os sonhos, portanto!

Afinal, o próprio nome da banda designa aquela fase do sono em que os sonhos são mais rápidos!

Será que o jovem se terá tornado estrela pop ou é hoje um croupier barrigudo de meia-idade?

Bons sonhos!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A propósito da memória em Moby-Dick




As cinco primeiras citações dos Extracts, secção que antecede o primeiro capítulo de Moby-Dick, são respectivamente do Génesis, dos livros de Jó e de Jonas, dos Salmos e de Isaías. Na citação do Génesis, lê-se: “And God created great whales” (78). Nas citações de Jó, dos Salmos e de Isaías encontra-se a referência ao Leviathan ; enquanto que na de Jonas será a um great fish (ou seja, pressupõe o prefaciador, uma baleia). Mais adiante , no capítulo 24 - The Advocate - o narrador voltará a esta questão perguntando enfaticamente: “Who wrote the first account of our Leviathan? Who but mighty Job ! And who composed the first narrative of a whaling-voyage? Who , but no less a prince than Alfred the Great ...” (207)
Afinal, ao surgir na Bíblia, e no Génesis em particular, naquele que não só é o primeiro livro, mas também o livro do princípio, a baleia revela-se aos olhos do leitor como um ser que desde a criação, desde o início dos tempos, percorre a nossa tradição judaico-cristã, percorre a História. A sua história participa da História; a baleia é um mito que participa do mito. Daí que George Steiner tenha escrito: “In Melville's Moby-Dick, ... , the metamorphic energies of the myth-fiction almost appropriate to themselves the authority , the reinsuring centrality of the scriptural -theological source.”

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Perplexidade


é o mínimo que podemos dizer ao saber da morte de Robert Enke. Há já dez anos atrás, quando ia à bola com os meus miúdos, dizia-lhes que eles estavam a ter a oportunidade única de ver jogar aquele que um dia seria considerado um dos maiores guarda-redes dos nossos tempos.
Curiosamente, a sua imagem que retive na memória é a de quando ele passeava um cão enorme perto da minha casa, com um paperback no bolso dos jeans.
Porque desaparece alguém de tão singular, de dotes tão excepcionais?
Que agora, enfim, descanse em paz!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

"Fuga" e "Contraponto"






Por que razão terá Charles Sheeler escolhido estes títulos com óbvias ressonâncias musicais para os quadros que vos deixo?

Boas imagens!



E Cecília disse:

"...Ausências Presentes...
Memória e Reflexão sobre a condição humana

Unsuk Chin:

Rocaná (Room of light/Espace de lumière)(2008)
Violin Concerto (2001)

[ANALEKTA]

Grata,
C."

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Num vortex de actividade,


tempo apenas para vos deixar este belo poema de Herberto Helder na morte de Mário Cesariny:





"corpos visíveis,
nobilíssimos,
inseparável luz que move as coisas,
ter um inferno à mão seja qual for a língua,
toda a água é inocente e escoa-se entre as unhas,
à porta do forno crematório alguém lhe toca,
vai lá, vai que te acolham, brilha, brilha muito, brilha tanto quanto não possas, brilha acima,

faz brilhar a mão que melhor redemoinha,
a mão mais inundada,
e ele entra sem esperança nenhuma,
só na última linha quando o coração rebenta,
reconhece quem o olha"

Boa semana!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

"Um pouco mais de Europa"




De novo um poema de Moniza Alvi, o VI, de Europa:

"His tender glance
settled on her,
flitted on and off
like a cabbage-white.

Europa stretched out her hand
and touched him
and the being
who hid like a stowaway
inside him."

A reprodução é de O Rapto de Europa, de Matisse.

Bons poemas!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Europa, segundo Moniza Alvi


que, diga-se de passagem, é uma das vozes que mais aprecio no âmbito da poesia inglesa contemporânea.

Eis o fragmento XIV do seu livro mais recente, intitulado... Europa:

"But still
she pressed her legs
against the swimming bull,
clutched him, slid against
his heaving paleness.

Where was she,
Agenor's daughter?
Wrenched from herself,
flung across worlds."

Sexy, n'est-ce pas?
Foi editado no ano passado pela Bloodaxe Books.
Voltarei a ela em breve.
A reprodução deste Rapto de Europa é de um quadro de Hugo Claus.
Boas leituras!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Americanistas em Letras



de Lisboa! É aí que devereis estar dentro em breve, pois a Linha de Acção de Estudos Americanos do CEAUL (Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa) vai organizar um simpósio internacional, que reúne especialistas nacionais e internacionais, subordinado ao tema “Post-Racial America”, celebrando o bicentenário de Abraham Lincoln (1809-1865) e o centenário de Eudora Welty (1909-2001), duas figuras centrais na cultura e na literatura norte-americanas.

O evento é aberto à comunidade e de entrada livre, oferecendo comunicações, debates, mesas redondas com escritores e dinamizadores culturais, filmes (na Cinemateca e na Faculdade de Letras), exposições (posters de Lincoln e fotografias de Tracy Corvo, da série Barbie Doll htpp://www.tracywrightcorvo.com/galleries/barbiegirls/), e ainda contadores de histórias que actualizam o legado de Welty.

Até lá!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Ainda a propósito do António Sérgio




sobre o Dia de Todos os Santos escreveu o Beato Jan van Ruusbroec (1293-1381):

"Na vida eterna, contemplaremos com os olhos da inteligência a glória de Deus, de todos os anjos e de todos os santos, assim como a recompensa e a glória de cada um em particular, das maneiras que quisermos. [...]

O outro coro é o dos anjos; ainda que pela sua natureza estes sejam seres mais elevados, nós, os homens, recebemos mais de Jesus Cristo, com Quem somos um. Ele será, no meio do coro dos anjos e dos homens, o supremo pontífice, diante do trono da soberana majestade de Deus. E, diante de Seu Pai celeste, Deus todo-poderoso, oferecerá e renovará todas as oferendas que Lhe forem apresentadas pelos anjos e pelos homens; e estas renovar-se-ão ininterruptamente, e para sempre se manterão na glória de Deus."

domingo, 1 de novembro de 2009

António Sérgio


faleceu de madrugada, dizem os jornais. Conheci-o nos anos 80, aquando da publicação, na colecção Rei Lagarto, da Oração Americana, do Jim Morrison. Na altura o António convidou-me para falarmos sobre o Morrison, na Rádio Comercial, pela noite dentro.
Havia sintonia.
Ficámos em contacto.
Participei noutros programas dele e ele numa iniciativa minha sobre Kerouac.
Estive com ele na XFM, para uma "imensa minoria".
Às vezes lembrava-me que tinha de lhe telefonar para saber como estava.
Recordarei a sua voz na iniciativa sobre os Doors no Rock Rendez-Vous: "Long Live the Doors!" E o António também, na memória daqueles que tiveram o privilégio de com ele conviver.
Um beijo à Ana Cristina.
Deus tem mais um anjo junto de Si!


Bem me lembro de "Long Live the Doors!" e da voz inconfundível. Acompanhei-o pela rádio, ao longo de muitos anos.
Sim. Mais um anjo.

Austeriana

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Um passo de "The Lessons of the Masters"



A partir de Álvaro de Campos, escreve Bloom: "Campo's profession of faith entails the insight that 'the physical privilege of keeping company' with a Master-spirit is not granted to everyone. Only the privileged can journey to Rome knowing it will leave them transformed. 'Inferior people cannot have a master, since they have nothing for a master to be a master of."
É bem verdade.
Boas meditações!

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Encontros


Aconselho-vos a uma visita, hoje, a http://clarices-bichocarpinteiro.blogspot.com/
Aí podereis encontrar um testemunho sobre o reconhecimento que muitos de nós temos face àqueles/as que marcaram o nosso percurso intelectual, a nossa vida. Afinal, nem todos são Mestres, nem, necessariamente, é Mestre quem quer!
Depois de ler este testemunho, senti vontade de reler The Lessons of the Masters, de George Steiner.
Kierkegaard considera que não é difícil obrigar a parar alguém com quem nos cruzamos na rua para que lhe digamos aquilo que queremos. Difícil, sim, é dizer algo a alguém com quem nos cruzamos na rua, sem que esse alguém interrompa o seu percurso, e sem que nós próprios interrompamos o nosso percurso.
Contudo, quando esse encontro se verifica, ambos ficamos mais ricos. Além disso, embora os nossos pontos de vista possam ter sido perturbados, e foram-no por certo, a nossa liberdade não foi beliscada. Antes pelo contrário, ampliou-se devido ao reconhecimento da nossa ignorância.
Ora, aí está o segredo da relação pedagógica que nos interessa.
Polícias e/ou guardas pretorianos/as já há muitos/as por aí a dizer-nos que só há um caminho, o deles/as!
Boas recordações dos/as vossos/as Mestres/as!

Elegias

Há quem se refira de forma depreciativa às lyrics de The Rising, de Bruce Springsteen, considerando-as "lamechas."
De facto aquilo que Springsteen faz é tomar numa das mais antigas tradições poéticas americanas, a elegia, e utilizá-la como instrumento de luto colectivo. Daí o facto de as canções desse Cd terem sido amiúde utilizadas em cerimónias de evocação de vítimas do 11 de Setembro.
Anne Bradstreet terá sido a primeira grande cultora do género; veja-se como a tonalidade elegíaca percorre os versos finais do poema que dedicou ao incêndio que destruiu a sua casa:

"A price so vast as is unknown,
Yet by his gift is made thine own.
There's wealth enough; I need no more.
Farewell, my pelf; farewell, my store.
The world no longer let me love;
My hope and Treasure lies above."

Há uma óbvia aceitação da desgraça, decorrente da ética puritana da qual Bradstreet participa.

É evidente que Springsteen não a subscreve; daí uma sensação de perda injustificada. Veja-se "My city in ruins":

"There is a blood red circle
On the cold dark ground
And the rain is falling down
The church door's thrown open
I can hear the organ's song
But the congregation's gone
My city of ruins
My city of ruins

Now the sweet bells of mercy
Drift through the evening trees
Young men on the corner
Like scattered leaves,
The boarded up windows,
The empty streets
While my brother's down on his knees
My city of ruins
My city of ruins

Come on, rise up! Come on, rise up!
Come on, rise up! Come on, rise up!
Come on, rise up! Come on, rise up!

Now's there's tears on the pillow
Darlin' where we slept
And you took my heart when you left
Without your sweet kiss
My soul is lost, my friend
Tell me how do I begin again?
My city's in ruins
My city's in ruins

Now with these hands,
With these hands,
With these hands,
I pray Lord
With these hands,
With these hands,
I pray for the strength, Lord
With these hands,
With these hands,
I pray for the faith, Lord
We pray for your love, Lord
We pray for the lost, Lord
We pray for this world, Lord
We pray for the strength, Lord
We pray for the strength, Lord

Come on
Come on
Come on, rise up"

Como se pode ver nesta "poetic of mourning" a esperança persiste.
Não me parece, por isso, que a expressão do luto possa ser confundida com "lamechice."

Boas músicas!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009




"Awaiting for you all", canção de All things must pass, de George Harrison, foi cantada no Concert for Bangladesh, e escolhida para abrir o cd dcoumentário sobre este concerto.
Se este foi o primeiro do género e abriu portas para muitos outros, ele foi, também, um dos primeiros onde se reuniram grandes estrelas da música popular dos anos sessenta/inícios de setenta.
Muito desses anos pode ser sentido neste evento.
"Awaiting for you all" evidencia algo de muito positivo que ali podemos sentir.
Eis alguns versos:

"You don’t need a love-in,
You don’t need a bad pan
You don’t need a horoscope or a microscope
To see the mess that you’re in
If you open up your heart,
You will see what I mean
You’ve been polluted so long
But here’s a way for you to get clean

By chanting the names of the lord
And you’ll be free
The Lord is awaiting on you all
To awaken and see
Chanting the names of the Lord
And you’ll be free
The Lord is awaiting on you all
To awaken and see

You don’t need a passport
You don’t need no visas
You don’t need to designate or to emigrate,
Before you can see Jesus
If you open your heart,
Then you will see he’s right there
He always was and will be
He’ll relieve you of all your cares

By chanting the names of the Lord
And you’ll be free..."

Boas músicas!

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Há quanto tempo se exerce a Razão sobre este Livro!




Eis o que o bispo, São Máximo de Turim (aqui ao lado, visualmente falando, claro!), já no século V d.C., meditava a propósito deste passo do Evangelho de Lucas, «É semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e deitou no seu quintal». Atente-se no close reading avant new criticism:

"A propósito do que diz o Evangelho: «Um homem tomou-o e deitou-o no seu quintal», que homem é esse, em vossa opinião, que semeou o grão que recebeu, como um grão de mostarda no seu pequeno jardim? Penso que é aquele sobre o qual o Evangelho diz: «Um membro do Conselho, chamado José, natural de Arimateia [...], foi ter com Pilatos, pediu-lhe o corpo de Jesus e,descendo-O da cruz, envolveu-O num lençol e depositou-O num sepulcro preparado no seu jardim» (Lc 23, 50-53). É por essa razão que as Escrituras dizem: «Um homem tomou-o e deitou-o no seu jardim». No jardim de José misturavam-se perfumes de diversas flores, mas um grão como aquele nunca lá tinha sido deitado. O jardim espiritual da sua alma rescendia ao perfume das suas virtudes, mas Cristo ainda não tinha sido aí colocado. Ao sepultar o Salvador no monumento do seu jardim, ele acolheu-O mais profundamente no fundo do seu coração."

Os itálicos são meus.

Bons close readings!

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A bicicleta de Faulkner



Na narrativa que concebeu sobre a sua vida com Iris Murdoch, Iris, A Memoir of Iris Murdoch, John Bayley descreve a decadência daquela que foi uma das mentes mais brilhantes da cena literária inglesa do século XX, devido à doença de Alzheimer. Entre outros aspectos, Bayley refere a "expressão leonina" que será característica daqueles/as que sofrem dessa doença.

Não pude deixar de me lembrar desse passo quando, em A bicicleta de Faulkner, Maria do Céu Guerra exibe essa mesma expressão em determinado instante do processo degenerativo da sua personagem, também ela, vítima de Alzheimer.

Embora, na minha opinião, o texto de Heather MacDonald fique aquém das expectativas, visto não conseguir integrar organicamente Faulkner no texto e não explorar a dimensão da memória, tão relevante na cultura do Sul dos EUA, incentivo-vos a ir à Barraca.

A interpretação é equilibrada, destacando-se naturalmente a intensidade de Maria do Céu Guerra, a quem todos aqueles que gostam de teatro (e mesmo aqueles que não gostam!) tanto, tanto devem. Além disso, houve, para mim, uma revelação: a encenação de Rita Lello.

Não percam, portanto, e boa semana!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

"Cinema ao contrário?"


E se, em vez de assistirmos ao desenvolvimento de um filme, à narrativa, aos movimentos da personagens, seus gestos, expressões, silêncios mesmo, assistíssemos às reacções de quem assiste, e do filme percepcionássemos apenas sons, vozes das personagens? Se tivéssemos de o reconstruir através dessas reacções e da oralidade narrativa?
Abbas Kiarostami propõe-nos esse exercício em Shirin.
Nele vemos desfilar os (belos) rostos de 115 actrizes (iranianas, com a excepção de Juliette Binoche), somos confrontados com as suas emoções, expressões de alegria, empatia e lágrimas, perante a história de Shirin - uma princesa persa do século XII - e dos seus amores com o nobre Khosrow.
E não há homens na assistência? Há, sim. No entanto, à semelhança da mulher com marcas de violência no rosto (índice de uma brutalidade masculina?), eles persistem em planos mais recuados. Afinal, esta é uma história que nelas reconhece uma empatia primeira.
Para já o filme foi exibido no Doclisboa.
Regressa às salas no início do próximo ano.
Não se esqueçam e não o percam!
Bons filmes!

Donne pelos olhos de Cristina Campo, com Dürer pelo meio, ou ainda como a arte nos ajuda a ler com o inevitável impulso da inteligência...










"A paisagem emblemática da poesia de John Donne assemelha-se à da Melancholia de Dürer: um repertório e um compêncio simbólico de todas as artes humanas e ocultas: livros, globos, histórias, balanças, esferas armilares, clépsidras, compassos e óculos. No fundo ruínas de catedrais e mosteiros ilustres em que agora crescem a hera e ervas, pedaços de cantos litúrgicos sobreviventes às procissões aos antigos santuários; tal como nas sublimes Variações Walsingham de Philips sobre as quais, nas festas da Corte, vai dando os seus passos esqueléticos a Rainha. Aí se misturam dobres de sinos e trompas de caça, flourish and fanfare,marchas fúnebres e acordes de cravo; a gíria do mercado e a do tribunal, os termos da sala de anatomia e o bichanar da alcova, o léxico subtil e marmóreo da teologia e o sussurro das fontes nos parques ingleses, o grito mitológico da mandrágora e o estribilho da ladainha, os especiosos sofismas do cortejador lascivo e a ternura grave do esposo. Tudo agredido, misturado com o modo casual e potente do grande teatro da época..."
Os Imperdoáveis (Assírio & Alvim), pp. 194-195.
Boas leituras!