quarta-feira, 30 de junho de 2010

«Rogaram-Lhe que Se retirasse daquela região»


A propósito de: Evangelho segundo S. Mateus 8,28-34

"O mundo actual apresenta-se, assim, simultaneamente poderoso e débil, capaz do melhor e do pior, tendo patente diante de si o caminho da liberdade ou da servidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio. E o homem torna-se consciente de que a ele compete dirigir as forças que suscitou, e que tanto o podem esmagar como servir. Por isso se interroga a si mesmo.

Na verdade, os desequilíbrios de que sofre o mundo actual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem. Porque no íntimo do próprio homem muitos elementos se combatem. Enquanto, por uma parte, ele se experimenta, como criatura que é, multiplamente limitado, por outra sente-se ilimitado nos seus desejos, e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza o que desejaria fazer (Rom 7, 15). Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão grandes discórdias se originam para a sociedade. [...]

Perante a evolução actual do mundo, cada dia são mais numerosos os que põem ou sentem com nova acuidade as questões fundamentais: Que é o homem? Qual o sentido da dor, do mal, e da morte, que, apesar do enorme progresso alcançado, continuam a existir? Para que servem essas vitórias, ganhas a tão grande preço? Que pode o homem dar à sociedade, e que coisas pode dela receber? Que há para além desta vida terrena?"

Concílio Vaticano II
Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo (Gaudium et spes), §§ 9-10

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A importância do encontro



No Sábado passado, por volta das 11 da noite, ainda sob o efeito das palavras intensas do Livro das Revelações, evocadas pela belíssima voz de Luís Miguel Cintra, ergui-me para abandonar a Capela do Rato e apercebi-me de uma jovem que, mais à frente, olhava para mim.
Embora o seu rosto não me fosse estranho, não consegui identificar a que lugar ou situação o ligava.
Eis quando ela me diz: "Foi meu professor de literatura americana!"
Ora, aí estava a resposta!
Contas feitas, havia sido há mais de doze anos que os nossos caminhos se cruzaram.
Reparei que a singela presença de uma gravidez nela se insinuava.
E foi assim que me despedi... desejando-lhe felicidades!
Que bela forma de encerrar a noite!
Que versão leu Luís Miguel Cintra, perguntareis: a (da tradução setecentista da autoria) de João Ferreira Annes d'Almeida; a primeira elaborada directamente do hebraico para português.
Ilda David ilustrou-a.
Mas disso já falei noutra altura.
Para hoje fica, para além da Palavra, a memória daquele rosto e de um encontro significativo (anglicismo, claro!)!

"Cinema ao contrário"


Em Outubro do ano passado inseri este comentário acerca de Shirin.
Reproduzo-o agora numa altura em que, finalmente, podereis ver este filme em exibição no circuito comercial.

"E se, em vez de assistirmos ao desenvolvimento de um filme, à narrativa, aos movimentos da personagens, seus gestos, expressões, silêncios mesmo, assistíssemos às reacções de quem assiste, e do filme percepcionássemos apenas sons, vozes das personagens? Se tivéssemos de o reconstruir através dessas reacções e da oralidade narrativa?
Abbas Kiarostami propõe-nos esse exercício em Shirin.
Nele vemos desfilar os (belos) rostos de 115 actrizes (iranianas, com a excepção de Juliette Binoche), somos confrontados com as suas emoções, expressões de alegria, empatia e lágrimas, perante a história de Shirin - uma princesa persa do século XII - e dos seus amores com o nobre Khosrow.
E não há homens na assistência? Há, sim. No entanto, à semelhança da mulher com marcas de violência no rosto (índice de uma brutalidade masculina?), eles persistem em planos mais recuados. Afinal, esta é uma história que nelas reconhece uma empatia primeira.
Para já o filme foi exibido no Doclisboa.
Regressa às salas no início do próximo ano.
Não se esqueçam e não o percam!
Bons filmes!"

A propósito das margens (III)



Como referi há dias, o contexto cultural/político/mental no qual os Pop Dell Arte emergiram, era ainda profundamente marcado por uma militância (político/mental)que nutria uma profunda suspeita face às margens e que era particularmente influente no seio da crítica musical (expressão demasiado elogiosa, diga-se, para quem, ontem tal como hoje, escreve sobre música sem saber ler uma pauta!).
Em particular, quando essas margens fugiam ao cânone e evocavam/invocavam as vanguardas estéticas ao mesmo tempo que criavam zonas nebulosas no campo da orientação sexual.
[É por essa razão que não posso deixar de rir às gargalhadas com as novas empatias face aos casamentos (como se diz hoje) gay.
Foram os antepassados desta gente que mandou para os gulags homossexuais e lésbicas, juntamente com judeus, recorde-se.
E para quem argumente que não houve gulags entre nós, basta lembrar o caso de Militão Ribeiro.]
Ora, os Pop Dell Arte traziam para este espaço puritano irreverências várias: o surrealismo francês, um certo cinema contemporâneo (a Fassbinder se deve, como é evidente, Querelle), e a dissonância introduzida por línguas não canónicas, como o francês (já na altura lateralizado) e o italiano.
Toda essa irreverência decorria de uma intensa capacidade indiciadora que perturbava quem estava habituado ao discurso literal de um neo-realismo tardio, à evidência do rock português e aos nacionalismos de direita.
Essa capacidade indiciadora mantém-se ainda hoje, e a ela voltarei noutro dia.
Boa semana!

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Leitura integral


do livro do Apocalipse, feita por Luís Miguel Cintra.
A não perder!
Entrada livre, amanhã, pelas 21.30h, na Capela do Rato.
Bom fim de semana!

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Quão importante nomear é!


Quando estranhos nomes, inspirados em exóticos e excêntricos lugares, abundam, eis um passo e um Texto a reter: Evangelho segundo S. Lucas 1,57-66.80.

"Entretanto, chegou o dia em que Isabel devia dar à luz e teve um filho. Os seus vizinhos e parentes, sabendo que o Senhor manifestara nela a sua misericórdia, rejubilaram com ela. Ao oitavo dia, foram circuncidar o menino e queriam dar-lhe o nome do pai, Zacarias. Mas, tomando a palavra, a mãe disse: «Não; há-de chamar se João.» Disseram-lhe: «Não há ninguém na tua família que tenha esse nome.» Então, por sinais, perguntaram ao pai como queria que ele se chamasse. Pedindo uma placa, o pai escreveu: «O seu nome é João.» E todos se admiraram. Imediatamente a sua boca abriu-se, a língua desprendeu-se-lhe e começou a falar, bendizendo a Deus. O temor apoderou-se de todos os seus vizinhos, e por toda a montanha da Judeia se divulgaram aqueles factos. Quantos os ouviam retinham-nos na memória e diziam para si próprios: «Quem virá a ser este menino?» Na verdade, a mão do Senhor estava com ele. Entretanto, o menino crescia, o seu espírito robustecia-se, e vivia em lugares desertos, até ao dia da sua apresentação a Israel."

Leituras recentes


Li, de uma rajada, Este é o tempo dos assassinos - Variações sobre o assassínio encontradas e traduzidas por Aníbal Fernandes.
Este livro forma uma bilogia com o Festim da Aranha, publicado há dois anos.
São duas colectâneas impressionantes que nos desvendam alguns dos lados mais tenebrosos da nossa natureza humana, através de textos inesperados, já que Aníbal Fernandes recusou optar pelos autores e pelas narrativas mais reconhecíveis neste âmbito.
Acresce o facto de estarmos perante alguém, Anibal Fernandes, que, para além de dominar as línguas de partida e de chegada, é um profundo conhecedor dos contextos em causa. E nunca é de mais assinalar o talento com que se move na língua portuguesa.
Acho que vou abordar este livro, em breve, no JL.
Já agora, saiu um texto meu neste número do JL sobre a tradução do primeiro livro da trilogia USA, de John Dos Passos.
Boas leituras!

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Sei que isto é politicamente incorrecto


e que, à semelhança dos opinion makers, também eu deveria acompanhar o coro e dizer que, neste Mundial, depois de Portugal, a minha preferência recaía no Brasil.
Deveria mas não devo, já que a minha empatia mais radical recai na selecção dos Estados Unidos da América!
Por isso mesmo, hoje, sensivelmente às 16 h e 48 minutos, depois de muito sofrer, dei um pulo no sofá, ao mesmo tempo que gritava GOOOOOLOOOO! quando o Donovan (segundo o jargão) empurrou a bola para o fundo das redes!
Já estamos nos oitavos e em primeiro lugar do grupo!
E mesmo depois de nos terem roubado uma vitória (o golo mal anulado contra a Eslovénia).
No blog do Tiago Guillul descobri, entretanto, que, também ele, faz recair as suas preferências nos EUA, depois de Portugal, claro!
Les bons esprits se rencontrent!
E que se lixe o pc (politicamente correcto, claro!)!

P.S. E depois dos E.U.A., torço pela Espanha! Para que não haja equívocos, esclareço que, contrariamente ao Saramago, sou contra a nossa assimilação por Castela!!!!!

terça-feira, 22 de junho de 2010

A propósito das margens (II)


Para se compreender aquilo que os Pop Dell'Arte trouxeram de inovador para o panorama músical e cultural português em meados dos anos 90, é necessário recordar quais as forças, então, em presença.
Em primeiro lugar, persistia ainda uma certa cultura de neo-realismo «tardio», nomeadamente a nível de crítica, o que implicava um certo puritanismo na abordagem da diferença (recorde-se que uma certa esquerda que hoje é muito moderna, impedia Ary dos Santos de se filiar partidariamente pela sua ostensiva afirmação homossexual), e um medo muito grande das vanguardas (vistas como desvios pequeno-burgueses).
Em segundo lugar, havia o revivalismo de direita, com os topoi nacionalistas e saudosistas, tipo Heróis do Mar.
Por fim, o (mal) chamado Rock Português.
É nesse contexto que surge a novidade que pretendia ver para além do copo de água.
Até depois!

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Europa hoje... uma perspectiva


Anselmo Borges é alguém que leio atentamente, todas as semanas, no Diário de Notícias. Numa altura em que a Europa é objecto de debate, esta sua análise, pelo cruzamento entre a narrativa histórica e o enfoque exógeno americano, traz algo de novo.
Ei-la:

"Não faz falta o pessimismo para sentir perplexidade e desalento face ao futuro da Europa. Jorge Semprún, por exemplo, esse grande espírito europeu, não sabe se o euro vai desaparecer, mas diz que é possível que desapareçam várias aquisições e teme o pior, pois precisamente "o pior é possível, incluindo a desarticulação europeia". E proclama: depois do esgotamento da luta contra o passado nazi e fascista, de um lado, e contra o totalitarismo estalinista, do outro, "a Europa precisa de um novo motor ideológico e moral".

Donde vem a crise? Já em 1918, Oswald Spengler escreveu a obra polemicamente célebre: A decadência do Ocidente. De modo agudo, o eminente filósofo Edmund Husserl pronunciou, em Maio de 1935, em Viena, uma conferência famosa, subordinada ao tema A crise da humanidade europeia e a filosofia. A crise, segundo ele, deriva do positivismo, portanto, da redução das ciências ao puro conhecimento dos factos, esquecendo a subjectividade. Esta crise das ciências exprime a crise ético-política, dos valores e do sentido. A ciência positivista nada tem para dizer-nos: "As questões que ela exclui por princípio são precisamente as questões mais escaldantes na nossa época desgraçada para uma humanidade abandonada aos sobressaltos do destino: são as questões que dizem respeito ao sentido ou ausência de sentido de toda esta existência humana."

Claro que a nossa crise europeia tem a ver com a crise económico-financeira mundial, com a chegada ao palco da história dos países emergentes, como a China, a Índia, a Rússia, o Brasil, a África do Sul, com problemas globais que só poderão encontrar solução no quadro de uma governança global. Mas o que tem feito a União Europeia para se tornar uma real União, com um projecto sólido económico-político, e não simples consórcio de negócios? Sobretudo, onde está a alma da Europa e os valores capazes de a cimentarem?

Como escreveu Theodor Dal- rymple, em Março passado, em The American Conservative, "num certo sentido, a Europa nunca esteve tão bem. Os progressos em termos de saúde e de riqueza foram prodigiosos. Apesar destes êxitos, há como que uma atmosfera de declínio. Os europeus, que nunca foram tão prósperos, olham para o futuro com temor, como se tivessem uma doença oculta que ainda se não tivesse manifestado mas devorasse já os seus órgãos vitais. Deus morreu na Europa e a sua ressurreição é pouco provável, excepto talvez na sequência de uma catástrofe. No entanto, nem tudo foi perdido na atitude religiosa. Cada indivíduo vê-se sempre como um ser único na sua importância, mas já não tem esse contrapeso da humildade própria de quem se sente um dever para com o seu Criador. Acima de tudo, a maior parte dos europeus já não crê num grande projecto político. Este miserabilismo leva a uma mistura de indiferença e de ódio face ao passado." E, depois de se interrogar sobre se os americanos terão algo a aprender com tudo isto, o autor conclui: "Uma sociedade moderna sã deve saber tanto manter-se como mudar, tanto conservar como reformar. A Europa mudou sem saber conservar: essa é a sua tragédia."

Com a morte de Deus, criou-se um vazio. Os europeus instalaram-se no ter e no prazer. Sem Deus, onde está o sentido que dá unidade? Não se pode esquecer o que já Nietzsche anteviu. O louco, em A Gaia Ciência, proclama "a grandiosidade do acto" de matar Deus, mas também pergunta: "Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?" E Nietzsche, ele mesmo, sete anos antes de se afundar na noite da loucura, escreveu a Ida, mulher do seu amigo Overbeck, advertindo-a para que não abandonasse a ideia de Deus: "Eu abandonei-a, quero criar algo de novo, e não posso nem quero voltar atrás. Desmorono-me continuamente, mas não me importa". Sem Deus nem eternidade, na ditadura do presentismo consumista, hedonista, individualista, apenas restam instantes que se devoram na voragem do efémero."

Boas reflexões!

Um contributo para a meditação sobre a obra de Saramago


José Tolentino de Mendonça em entrevista à TSF:

É possível viver depois da morte?

Penso que essa é uma afirmação que todas as pessoas de fé partilham…

Mas curiosamente José Saramago não era um homem de fé…
Ele não era um homem de fé mas, como todo o artista, tem uma espécie de intuição acerca da condição humana. E há formas diferentes de eternidade. Penso que o facto de a sua obra ser preservada e ser lida daqui a 100 anos é uma forma de imortalidade.

Saramago vai permanecer através da sua obra…

Eu penso que é uma das obras contemporâneas que permanecerá. Até porque num tempo em que se vê quase o crepúsculo dos contadores de histórias, José Saramago mostra que essa continua a ser uma arte humana de excelência.
Nas histórias que contava, ele era capaz de transportar o horizonte humano mais longe, um pouco para essa fronteira última, para esse continuar misterioso que a vida e a morte assinalam.

Há menos de um ano, teve um frente-a-frente animado com José Saramago a propósito da polémica que se gerou em torno do livro “Caim”. O que é que ficou dessa polémica?

Ficaram notas que verbalmente não se traduzem mas que, com o passar do tempo, ficamos a apercebermo-nos da sua importância.
As declarações de Saramago pareceram-me demasiado parciais e redutoras daquilo que é o texto bíblico e a sua influência na cultura ocidental, mas houve três notas que eu gostava de partilhar, e que mostram como um ser humano foge sempre às etiquetas. Se por um lado José Saramago era aquela intransigência ideológica muito sólida e rígida, ou aquela estatura ética, a exigência, aquela voz toada de profeta que ele também tinha, por outro lado há como que a busca de uma outra coisa.
Na altura disse-lhe: “O Saramago, que faz estas afirmações incendiárias em relação à Bíblia, é contudo o mais bíblico dos autores contemporâneos, porque a sua escrita tem uma musicalidade, uma cadência e uma porosidade por onde a Bíblia entra”. E ele sorriu.
E de facto, o português de Saramago, que é muito reconhecível, tem uma enfatização muito próxima de alguns textos bíblicos, o que dá uma sedução enorme ao seu próprio escrever.
Um outro momento interessante foi quando eu lhe recordei um texto de um amigo dele, um colunista do jornal “El Pais”, que escreveu que Saramago não andava longe dos místicos. Saramago concordou e disse que aquele texto lhe tinha agradado muito. E de certa forma, o nada do ateísmo que Saramago proclamava como que se encontra numa viagem diversa…

Era um descrente curioso pelas coisas místicas?

O vazio, aquela pergunta exacerbada, aquela insatisfação em relação a qualquer resposta que Saramago tinha é a mesma que os místicos têm. E ele não reagiu mal. Pelo contrário, aceitou o comentário do autor espanhol como um elogio à sua escrita. Como se visse no texto do colunista um reconhecimento de que a sua obra acaba por ter como que uma equivalência em termos religiosos.
O terceiro apontamento foi eu ter percebido, durante a conversa, que ele estava a guardar uma espécie de trunfo para o final, porque tinha junto de si um volume no qual mexia de vez em quando e que eu não conseguia ver o que era. No fim ele mostrou-mo: era uma edição de Jordi Savall das “Últimas Sete Palavras de Cristo na Cruz”, do compositor Joseph Haydn. Essa edição trazia um texto de um teólogo catalão e outro de Saramago.
E ele quis muito dizer que é chamado para escrever sobre Jesus, num texto que é de facto muito belo. E ele acaba por afirmar uma coisa que, a mim, que sou crente e teólogo, me interessa muito: para ele, Saramago, não era relevante a forma como Jesus ilumina a questão de Deus, porque para ele essa questão não se põe. Mas é muito importante a forma como a figura de Jesus ilumina a questão do homem, este enigma que nós somos. Ele achava que Jesus iluminava muito esse enigma.
Isso faz com que aquilo que possamos pensar sobre Saramago e as diatribes dele, as polémicas com a Bíblia, com a herança cristã e com a Igreja mais institucional hão-de ser agora relidos com outros olhos e com aquela distância que só o tempo dá, permitindo ver como nele há uma procura espiritual que certamente o livro “Caim” não encerra, mas que pode agora ser olhada e aberta a novas interpretações.

Acredita que, de alguma forma, José Saramago foi, na sua escrita, iluminado pelos céus?
Essa ideia de inspiração é muito discutida mesmo em relação à Bíblia, dado que a iluminação não é directa. Para Saramago, a Bíblia não podia ser considerada um livro inspirado.
Eu disse-lhe que não tinha nenhum problema em considerar a Bíblia inspirada, até do ponto de vista de fé. O Jorge Luís Borges dizia acreditar que Homero também tinha sido inspirado. E se lermos Platão, também percebemos que ele é inspirado. E se lermos Pessoa. E até se lermos Saramago, percebemos que há uma espécie de co-genialidade e de inspiração que é também do domínio do inexplicável. A arte não se explica, nem a narração. A força e a temperatura que uma palavra trabalhada por um grande autor podem atingir são uma coisa absolutamente misteriosa.

E José Saramago era um homem grande da arte portuguesa…

Era um grande artesão da palavra. E isso é um legado que ele deixa à cultura portuguesa.

José Saramago foi também um grande embaixador da cultura portuguesa.
Isso é uma verificação que todos lhe devemos, não apenas pelo Nobel, mas pelo reconhecimento que junto de públicos muito diferentes e leitorados do mundo inteiro ele obteve para a língua portuguesa.
Muita da literatura de Saramago lembra os nossos clássicos. Os livros dele chamam a atenção não apenas para Fernando Pessoa e para o heterónimo Ricardo Reis, não apenas para o P. António Vieira, mas para a beleza da própria língua portuguesa e dos seus criadores, e esse é um contributo notável.

Sendo um homem da grande cultura, José Saramago foi um autodidacta.
Isso é impressionante. A biografia dele é de facto notável e que nos cala. Perceber de onde ele vem e como foi capaz de crescer. É quase um homem que se faz a si mesmo. Evidentemente isso não existe: nós fazemo-nos no encontro com os outros. Mas há ali uma vontade indómita de ser que o torna um acontecimento humano extraordinário.

O que é que vai guardar, não do escritor, mas do homem?
A sua estatura, a sua reivindicação. Em José Saramago há muito do que eu chamaria uma espécie de teologia do protesto. Um homem que não aceita soluções fáceis para as grandes perguntas da existência. E que a tudo diz que não, protestativamente. Isso é uma coisa que nos faz bem a todos. Numa cultura muito conformista e de assentimentos fáceis, perceber o seu “não”, mesmo discordando dele e percebendo as limitações de algumas das suas declarações e do seu pensamento.
Penso que esse ar de profeta que ele carregava é muito importante porque a cultura e um criador têm também uma responsabilidade civil que é de lançar esse inconformismo, de lançar a pergunta. Nesse sentido, a pessoa de José Saramago cumpria muito bem essa imagem."
Boa semana e boas leituras... de Saramago e não só!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A propósito das margens (I)





Numa das minhas juventudes (não é gralha, não, refiro-me aos tempos em que, segundo a taxinomia de Miguel Esteves Cardoso, era trintinho)acompanhei de perto a emergência de vários grupos que abanaram a cena musical portuguesa.
O velho bairro de Campo de Ourique, em particular um segundo andar na Rua Coelho da Rocha, foi o epicentro desse abanão.
Uma das coisas que caracterizava esses grupos e essas gentes era a estranheza das suas graças, fossem estas as das bandas que rondavam o nonsense (Mler Ife Dada - foto acima), a provocação ideológica (Santa Maria Gasolina em teu Ventre - foto acima) ou a subtil revolução de paradigmas culturais (a subversão da dicotomia entre «alta cultura» e «cultura popular» em Pop Dell'Arte - primeira foto acima); fossem estas as graças dos seus protagonistas (Sei Miguel - foto acima - ou o próprio João Peste, embora neste caso «Peste» fosse, efectivamente, uma graça familiar (breve parêntesis biográfico: João Guerreiro, reconhecido pedagogo, catedrático de Matemática, e notável humanista, era o pai do João Peste).
A Ama Romanta, uma editora «de vão de escada», emergiu para dar voz a estas vozes, antes de alguns (a maioria) se dissolverem ou de outros (nomeadamente os Pop Dell'Arte), ainda que provisoriamnete, integrarem o main stream discográfico.
De todos guardo os velhos vinis!
Importante, para mim, e por agora, é o facto de algo de lateral, algo que começou por se inscrever num grupo restrito, ter introduzido uma certa urbanidade de vanguarda até então ausente destes meios.
Algo que Al Berto e Mário Cesariny compreenderam ao convidarem o João Peste para o recital/espectáculo/concerto que realizaram na viragem para os anos 90.
Para sorte nossa, depois de muitas mortes anunciadas (lembro-me de uma delas, demasiado prematura, ter sido pressagiada logo após o célebre concerto dos Pop Dell'Arte na Aula Magna), o João Peste e os Pop Dell'Arte continuam a gozar de boa saúde criativa.
Uma pequena editora, um pequeno grupo, e, contudo, das margens algo emergiu perturbando o centro.
Poder-se-á considerar que algo de idêntico se passa nos dia que correm...
Mas isso fica para próxima.
Boa semana!

terça-feira, 8 de junho de 2010

Um livro a reter


Seu título é Diálogo em Tempo de Escombros, e seus autores José Manuel Fernandes e D. Manuel Clemente. No prefácio escreve José Tolentino Mendonça: “Um jornalista com a dimensão profissional, cultural e humana de José Manuel Fernandes, um grande jornalista deste tempo português e europeu desafia um homem de Igreja para um encontro construído em três andamentos: na primeira parte, José Manuel Fernandes, enuncia conjuntos de questões que gostaria de ver abordados, quase à maneira de um diagnóstico interrogado do presente. D. Manuel Clemente ensaia uma resposta na segunda parte ... No terceiro round, chamemos-lhe assim, uma conversa epistolar entre entrevistador e entrevistado vem precisar e ampliar alguns aspectos do diálogo.”
Estamos, efectivamente, perante um diálogo entre percepções distintas do real, e não, como amiúde sucede, perante monólogos alternados.
A editora é a Pedra da Lua.
Boas leituras!

Sobre Evangelho segundo S. Mateus 5,13-16, escreveu Santo Agostinho




'Os apóstolos, meus irmãos, são candeias que nos permitem esperar a vinda do dia de Cristo. O Senhor declara-lhes: «Vós sois a luz do mundo.» E, para que eles não se possam considerar uma luz semelhante àquela da qual foi dito: «Ele era a verdadeira luz que iluminava todo o homem» (Jo 1, 9), ensinou-lhes imediatamente qual é a verdadeira luz. Depois de lhes ter anunciado: «Vós sois a luz do mundo», prosseguiu: «Não se acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire.» Chamei-vos luz, diz Ele, mas esclareço: sois apenas uma candeia. Não vos deixeis, pois, levar pelo orgulho, se não quereis ver apagar-se esta cintilação. Não vos coloco debaixo do alqueire, mas coloco-vos em cima do candelabro, para alumiardes tudo com os vossos raios.

Qual é este candelabro que leva esta luz? Vou-vos ensinar. Sede vós mesmos as candeias, e tereis lugar neste candelabro. A cruz de Cristo é um imenso candelabro. Quem quiser brilhar não deve envergonhar-se deste castiçal de madeira. Escutai e compreendereis: o castiçal é a cruz de Cristo. [...]

«Assim brilhe a vossa luz diante dos homens; que eles vejam as vossas boas obras e glorifiquem.» Glorifiquem a quem? Não a ti, porque procurares a glória é quereres apagar-te! «Que eles glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.» Sim, que eles O glorifiquem, a Ele, ao Pai do céu, vendo a vossas boas obras. [...] Escutai o apóstolo Paulo: «Que nunca eu me glorifique, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo» (Gal 6, 14).'

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Porque hoje despertei com uma queda para a nostalgia, eis Annus Mirabilis, de Philip Larkin




"Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(which was rather late for me) -
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles' first LP.

Up to then there'd only been
A sort of bargaining,
A wrangle for the ring,
A shame that started at sixteen
And spread to everything.

Then all at once the quarrel sank:
Everyone felt the same,
And every life became
A brilliant breaking of the bank,
A quite unlosable game.

So life was never better than
In nineteen sixty-three
(Though just too late for me) -
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles' first LP."

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Para a Alice


"My respiration and inspiration, the beating of my heart, the passing
of blood and air through my lungs,
The sniff of green leaves and dry leaves, and of the shore and
dark-color'd sea-rocks, and of hay in the barn,
The sound of the belch'd words of my voice loos'd to the eddies of
the wind,
A few light kisses, a few embraces, a reaching around of arms,
The play of shine and shade on the trees as the supple boughs wag,
The delight alone or in the rush of the streets, or along the fields
and hill-sides,
The feeling of health, the full-noon trill, the song of me rising
from bed and meeting the sun. (...)

There was never any more inception than there is now,
Nor any more youth or age than there is now,
And will never be any more perfection than there is now,
Nor any more heaven or hell than there is now.
Urge and urge and urge,
Always the procreant urge of the world... "

breve excerto de "Song of Myself"