terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Problemas do realismo

Serge Daney, arguto como sempre,desvendando o subtexto político de Stalker: And what of these prematurely aged faces, these mini-Zones where grimaces have become wrinkles? And the self-effacing violence of those who wait to receive a beating (or maybe to give a beating if they haven't forgotten how?) And what of the false calm of the dangerous monomaniac and the empty reasonings of a man who is too solitary? These do not come only from Tarkovsky's imagination. They cannot be invented, they come from elsewhere. But from where? STALKER is a metaphysical fable, a course in courage, a lesson in faith, a reflexion on the end of time, a quest, whatever one wants. STALKER is also the film in which we come across, for the first time, bodies and faces which come from a place we know about only through hear-say. A place whose traces we thought the Soviet cinema had lost completely. This place is the Gulag. The Zone is also an archipelago. STALKER is also a realist film.

The hireling shepherd

Neste quadro do pré-rafaelita William Holman Hunt persiste um subtexto,Evangelho de Mateus 18,12-14: "Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas e uma delas se tresmalhar, não deixará as noventa e nove nos montes para ir procurar a que anda tresmalhada? E se chegar a encontrá-la, em verdade vos digo que se alegra mais por causa dela do que pelas noventa e nove que não se tresmalharam." E, na denegação do que aqui se recomenda, é uma moral vitoriana que se insinua.Caroline Healey [English/History of Art 151, Pre-Raphaelites, Aesthetes, and Decadents, Brown University, 2004], desenvolve esta última dimensão, ligando-a a uma tradição pictórica: William Holman Hunt's The Hireling Shepherd epitomizes the painter's emulation of Hogarthian techniques and his quest for typological symbolism. The painting centers on a realistically rendered shepherd and shepherdess, reclining in a field beside a row of trees. Dressed in a typical field worker's attire, the shepherd leans seductively toward the young woman, his head practically resting on her shoulder. In her loose-fitting casual dress, the shepherdess reciprocates his feelings through her suggestive body language. She leans back toward him and reaches her right arm back to seemingly grasp his; however, her facial expression is less inviting, bearing a hint of excessive pride. To the right of the couple, a lamb sits, eating apples. More apples, flowers, and grass dominate the foreground of the image, while sheep graze in a shady area to the shepherd's left. although at first glance, The Hireling Shepherd appears to be a straightforward country scene, it is full of symbolic meaning. Hunt believed that to have any sort of value or vitality, art needed to possess religious significance and emotional resonance with the viewer. He rendered the The Hireling Shepherd in a highly realistic manner, however, Hunt often stressed that realism was not his primary goal in painting. Similar to Hogarth's work, Industry and Idleness, Hunt used The Hireling Shepherd to emphasize the importance of a good work ethic for all citizens and to show the potentially harmful effects of idleness. As a result of the shepherd's neglect, the land has turned marshy and the sheep are in poor health.

domingo, 27 de novembro de 2016

A propósito de Stalker, de Andrei Tarkovsky

"STALKER is a metaphysical fable, a course in courage, a lesson in faith, a reflexion on the end of time, a quest, whatever one wants. STALKER is also the film in which we come across, for the first time, bodies and faces which come from a place we know about only through hear-say. A place whose traces we thought the Soviet cinema had lost completely. This place is the Gulag. The Zone is also an archipelago. STALKER is also a realist film." Serge Daney Na próxima quarta-feira de manhã abordarei este filme no congresso sobre cinema que decorre na Faculdade de Letras de Lisboa.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Há uns anos, numa das primeiras vezes que falei

com o Padre e Teólogo Alexandre Palma, mencionei-lhe uns versos de Leonard Cohen, There is a crack in everything / That"s how the light gets in. Para surpresa minha, ele sorriu e disse-me que os citara num texto seu. Kindred spirits, portanto. Agora, Alexandre Palma reflecte sobre o tópico inesperado, "Cohen, Teólogo", e vale a pena ler. O artigo foi publicado no Diário de Notícias, no passado dia 11 de Novembro. Ei-lo, na íntegra: «Leonard Cohen foi um grande teólogo deste tempo. Afirmá-lo não é a cedência fácil à comoção da sua partida. Reconhecê-lo é, antes, sublinhar um dos traços que fizeram dele, como bem anotava o seu epitáfio no Twitter, um "visionário" na música contemporânea. E não é um lapso que o considere precisamente teólogo. Porque a religiosidade da sua música vai muito para lá das referências bíblicas, espirituais e transconfessionais com que se tece a sua lírica. Porque o eco de Deus na sua obra afina-se com esse diálogo, mas nasce antes e vai mais longe. Nasce de uma inquietude perante a vida que não se sabe dizer sem Deus. E chega à hipótese de um divino ferido, amigo, portanto, do percurso acidentado de Cohen e também de todos os que têm de lutar para crer. Dir-se-ia que a gravidade do seu timbre foi feita para a gravidade do que ele canta. O casamento nele entre voz e palavra não poderia ter sido mais indissolúvel e fecundo. Talvez seja broken a palavra mais teológica do seu léxico. Estranhará que assim seja apenas quem tem de Deus uma ideia naïf e para com a religião uma atitude triunfalista. Cohen não as tinha. Para ele é na falha, na quebra, na fenda que a questão se decide. Nele cantaram todos quantos apenas podem elevar aos céus um "broken Hallelujah" (in Hallelujah). Isto Cohen percebeu como poucos: o teólogo não pode ignorar as feridas que este tempo traz no corpo. E são tantas. E a sua memória tão viva. O louvor que a humanidade pode, então, prestar a Deus está ferido e quebrado, mesmo se não impossibilitado. Porque também disto é Cohen um profeta: essas feridas não mataram o que em nós é música e Hallelujah. Nele cantou-se igualmente a falha como desbloqueio e não somente como défice: "There is a crack in everything / That"s how the light gets in" (in Anthem). Há nisto uma tal sabedoria do humano que toca o divino. O realismo de reconhecer que em tudo uma falha existe. A inteligência de perceber que essa falha não é vazio, mas habitação e estrada de uma luz que permite ver e ser visto. Teologicamente falando, de poder ver a Deus e ser por ele visto. Mas com a ousadia que se exige a todo o teologar e transportado pela narrativa bíblica, Cohen canta ainda um Deus ferido ("you showed me where you had been wounded") e com o nome broken inscrito em cada átomo (in Born in Chains). Uma tal ideia, nada desconhecida de tradições teológicas como a judaico-cristã, transborda de teologia. Cantando e escrevendo, Cohen pensou, desabafou, rezou, amou. Sempre com aquele jeito cavalheiresco cultuado noutras eras. Porque assim era, um gentleman em palco e fora dele. Honrou assim o nome que celebrizou. Foi kohen, isto é, sacerdote, fazendo das letras e da música como que um santuário. Porque a forma mais recorrente de Deus na sua obra será mesmo a da invocação. E também assim se faz e fez teologia. Não apenas falando de Deus, mas falando a Deus. Ter--lhe-á este agora manifestado a sua vontade: "If it be your will / That I speak no more / And my voice be still / As it was before" (in If It Be Your Will). Ter-lhe-á este agora respondido à sua "antiga ideia": "Show me the place where you want your slave to go" (in Old Ideas). Talvez porque tenha acreditado nele, quando Leonard Cohen lhe cantou: "I"m ready, my Lord" (in You Want it Darker).»

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Conferência em Budapeste - Instituto Confúcio

Aqui vos deixo as irreverentes linhas iniciais da minha intervenção de encerramento neste colóquio na Universidade de Budapeste, sob os auspícios do Confúcio (o Instituto, claro) e do Camões (igualmente o Instituto).«: No início do século XX, o poeta modernista Fernando Pessoa leu um artigo de jornal onde se referia a história de alguém que, num passeio pelas Alleghenies , encontrou uma inscrição numa rocha. Devido ao facto de não estar familiarizado com a estranha língua desta inscrição, decidiu copiá-la para que alguém a pudesse eventualmente traduzir. Ao regressar a casa, alguém lhe disse que era português e que dizia o seguinte: "O Noronha esteve aqui!" Fernando Pessoa chega à seguinte conclusão. Onde quer que se vá, percebemos que um inglês ou um português já ali estiveram. Os ingleses porque são muitos, os portugueses porque... é o destino. Irresistível este impulso de partir. Além disso, quem gravou o nome na pedra, não teve a preocupação de se identificar explicitamente, de deixar o nome próprio, de onde vinha. Fê-lo apenas pelo prazer de o fazer. Sem agenda política, pessoal, ou outra. Apenas pelo prazer de o fazer.

Cuidado com o alemão

Um livro muito interessante do Pastor Tiago Cavaco para ajudar a entender a distinção entre um enfoque católico e um protestante, e para melhor compreender a identidade cultural americana!

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

António Ernesto de Brito Botelho de Amaral (1945-2016)

Eis o António, na primeira fila, ao lado da Cristina Abreu Matos - atrás estão o António M. Feijó, a Margarida Bettencourt e a Emília Pedro, do outro lado, a Teresa Cid, o Filipe Furtado, a Maria de Jesus Relvas, e outros colegas e alunas -, há dezasseis anos nas minhas provas de agregação. Há sempre algo que desejamos guardar de alguém, um episódio, um comentário, um timbre (era o caso da saudosa Albertina Matos). Esta é a expressão que eu quero guardar dele. Apesar de não sermos da mesma geração etária (o António era onze anos mais velho), éramos da mesma geração académica: licenciámo-nos no mesmo ano, ingressámos no mesmo ano no curso de mestrado, começámos a trabalhar na Faculdade sensivelmente na mesma altura, leccionando ambos literatura americana, fizemos o doutoramento no mesmo ano, fomos ambos orientados pelo mesmo Professor – Joaquim Manuel Magalhães. No meu primeiro livro de poemas dediquei-lhe (a ele e à Mareike, companheira de percurso) um poema. Quando coordenei uma colecção de literatura na Cosmos, em finais dos anos 90, publiquei uma versão da sua tese de doutoramento – Ezra Pound – Escrita inovadora em The Cantos. Creio que a última vez que o vi (embora a memória me possa atraiçoar) foi nas suas provas de agregação. Mais alguém que parte; alguém que deixa saudade e a alegria pela fortuna de o termos conhecido, de termos privado com ele e de o termos incluído naquele grupo de pessoas que considerámos nosso amigo.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Philip Roth, Newark e a América

É raro surgir nos nossos jornais um artigo tão informado e certeiro como este de Isabel Lucas, no Público. Aqui vos deixo o início deste extenso texto:Lutar, ter sucesso e integrar uma identidade. É a pastoral aprendida por gerações de imigrantes, entre eles os pais de Saul Bellow e os de Philip Roth. Os dois desmontaram-na a partir de territórios pessoais. A Chicago da Depressão e a Newark dos riots, uma metáfora da falha americana. Os pés pisam a plataforma e vem ao rosto um ar frio que faz despertar do torpor de seis horas de viagem. O último comboio do dia é mais lento. Grande parte do trajecto entre Boston e Newark é feito ao ritmo de um sono pouco profundo, corpos mal acomodados nos bancos e as luzes da rua a iluminarem a carruagem como um grande ecrã a passar, veloz, imagens no escuro. São três e meia da madrugada e agora é só o frio da estação e a náusea súbita quando se abre a porta para o grande átrio da Penn Station de Newark. Urina, vómito, suor de muitos dias, um bafo quente que carrega toda a repulsa e gela mais do que o frio. Como avançar? Há dezenas de homens e mulheres deitados no chão, encostados às paredes, arrumados nos degraus como em beliches. Abrigam-se da temperatura negativa da rua e dormem ali. Da penumbra dos corredores à luz branca dos espaços centrais, quase não há um lugar vazio. Junto a uma das portas uma mulher está sentada. Parece descascar uma laranja, mas mais perto percebe-se que não tem nada nas mãos, é só um gesto que replica outro gesto. Quem passa tem de fazer uma espécie de gincana por entre vultos, corpos que parecem trouxas de roupa. Há uns olhos abertos a fixarem-se noutros olhos abertos e o entreolhar é insuportável para ambos. A partir da uma da manhã e mais ou menos até às cinco, as estações de comboios da América abrem as portas aos sem-abrigo e nesses momentos, naqueles espaços, não cabe a cumplicidade; ela não é suportável. Nessas noites, na Penn Station de Newark, como em muitas outras estações por todo o país, há apenas quem não queira ser visto e quem não queira ver. Os sem-abrigo nos Estados Unidos eram um número vago entre os 2,3 e os 3,5 milhões em 2000 (dados da Amnistia Internacional). Quinze anos depois, numa noite de Janeiro de 2015, eram 565 mil os que dormiam na rua e sete milhões os que corriam o risco de não ter brevemente onde dormir, números do último relatório da federação National Alliance to End Homelessness que indicava ainda que a taxa de sem abrigo diminuíra no último ano, de 18,3 para 17,7 por cada dez mil habitantes. Para o orçamento para 2017 — o ano em que deixa a Casa Branca — Barack Obama propôs 11 mil milhões de dólares para gastar nos próximos dez anos na ajuda a famílias sem casa ou em risco de as perder. A iniciativa do Presidente em final de mandato pode enquadrar-se politicamente na difícil resposta à questão que Philip Roth formulou na literatura e colocou na voz de Nathan Zuckerman: “Que fazer com esta coisa terrivelmente significativa que são os outros?” Zuckerman, escritor e alter ego de Roth, era um homem adulto quando formulou a pergunta, logo depois de contar como, aos dez anos, aprendeu “toda a crueldade da vida” ao ler um romance sobre basebol. Mais tarde, mais cínico, mais desiludido, diria: “compreender as pessoas não tem nada a ver com a vida. O não as compreender é que é a vida.Há edifícios novos, torres que exibem nomes de seguradoras, bancos, multinacionais. Percorrer hoje as ruas de Newark é assistir a todas as camadas que fizeram a sua história. Elas estão expostas como feridas abertas. A cidade do sonho imigrante, a cidade mutilada e a que tenta recuperar de todos os traumas foi a mesma onde Philip Milton Roth nasceu em 1933, filho de um vendedor de seguros, judeu, e onde aprendeu a “americanidade” no liceu de Weequahic, entre adolescentes como ele. “Os nossos pais eram, com raras excepções, os descendentes da primeira geração de imigrantes pobres vindos da Galícia e da Rússia polaca no virar do século, quase todos criados no seio de famílias de Newark onde se falava iídiche e onde a ortodoxia religiosa ainda não começara a ser seriamente desgastada pela vida americana. Por muito que falassem sem sotaque e com sonoridade americana, por muito secularizadas que estivessem as suas convicções religiosas, por muito competente e convincente que fosse o seu estilo de vida de americanos da classe média-baixa, continuavam a ser influenciados pela educação recebida na infância e pelos fortes laços que vinculavam os seus pais a costumes e percepções que aos nossos olhos eram antiquados, socialmente inúteis e próprios do velho mundo.” Tudo se desenrolava e ganhava raízes à volta “do fenómeno mais intrinsecamente americano que tínhamos ao nosso alcance”, conta Roth em Os Factos, Autobiografa de Um Romancista (Dom Quixote, 2014). Esse fenómeno era o basebol. Chega-se ao parque de Weekquahic depois de atravessar a baixa de Newark, de subir uma colina e percorrer casas com jardins mais ou menos cuidados onde vivia a comunidade judaica e onde hoje moram sul-americanos e uma comunidade negra que não sucumbiu à pobreza, à droga e ao crime. Décadas depois, o que separa este imenso jardim no Sul de Newark numa tarde de Verão, onde adolescentes jogam basebol, da estação na mesma cidade onde numa noite de Inverno se abrigam centenas de pessoas depois de um nevão que paralisou a costa leste do país? Não é apenas o tempo, cronológico ou atmosférico, mas uma falha. Pastoral Americana (D. Quixote, 1999), o romance de Philip Roth publicado em 1997 (que acaba de ser adaptado ao cinema por Ewan McGregor e com estreia marcada para Novembro), é um livro sobre essa falha. Humana e social, individual e colectiva. Mas também sobre a ideia de decência, virtude, sucesso e a derrocada dos homens grandes que afinal são homens comuns ou de como o progresso e a evolução não seguem um sentido necessariamente ascendente e positivo. Foi o livro a seguir ao qual Roth afirmou numa entrevista à televisão “se não sou americano não sou nada”, em vez de dizer “se não sou judeu não sou nada”, como se esperava então de um judeu americano. Saul Bellow, outro escritor judeu, 18 anos mais velho do que Roth, dissera o mesmo em 1953 na voz do protagonista de As Aventuras de Augie March (Quetzal, 2010) outro livro sobre a condição americana. “Sou americano, nascido em Chicago.” Roth leu esse Bellow e aprendeu que um escritor judeu podia escrever sobre isso de forma inovadora, jogando com o humor, numa linguagem moderna, vibrante, sem fazer “relações públicas” — termo usado por Bellow — no combate ao anti-semitismo. Para Roth, o rapaz de Newark, como para Bellow, o imigrante do Canadá que cresceu em Chicago, ser judeu não era um absoluto, mas ser americano sim. Com todas as dúvidas, inseguranças e desconforto que uma afirmação dessas podia trazer. É esse o material de escrita de Roth. O colapso Às três e meia da madrugada de um dia de semana, na Penn Station de Newark, a maior central de transportes do estado de New Jersey, por onde todos os dias passam mais de 600 mil passageiros em trânsito para Nova Iorque, Filadélfia, Washington, Boston e para os subúrbios da cidade há uma espécie de vertigem de civilização. Fundado em 1935, o edifício actual é controlado pela polícia da Port Authority, entidade que gere as infra-estruturas na zona portuária entre Nova Iorque e New Jersey, terminais de navios, aeroportos, estações de comboio e de autocarro. Agentes de farda azul com as inicias PA,PD controlam quem entra e sai e ficam à porta quando à noite a estação abre para quem se quer abrigar do frio. “Ninguém vê isto a não ser eles mesmos e quem lhes abre as portas. Ninguém passa nestes sítios a esta hora, e como ninguém vê, não existe, estas pessoas não existem, são invisíveis para o mundo.” O homem que diz isto não tem expressão na voz nem no olhar. É um polícia com uma arma no coldre, onde repousa a mão direita por dentro do casaco quente. Vive perto, “meia hora de autocarro”, precisa, e pergunta o que se faz ali àquelas horas com a mesma sonolência com que falou até então, apontando a praça de táxis em frente. “Olhe que não são horas nem lugar por onde se ande assim.” Parece tão derrotado quanto o protagonista de Pastoral Americana depois de ter “perdido” a filha e de o pai lhe ter dito que Newark depois de 1967 era a pior cidade do mundo, devastada por um trio mortal: “impostos, corrupção, raça”, uma cidade habitada por “gente vinda de todo o lado e que se estava nas tintas para o destino de Newark”. Será? Nathan Zuckerman conta a história. Ele nasceu em Newark, como Philip Roth que o criou à sua imagem, filho de imigrantes judeus que, como todos os que ali chegavam, queria seguir a pastoral americana: “a luta ritual pós-imigrante pelo sucesso”, como a definiu Seymour Irving Levov, conhecido como o Sueco, personagem central de Pastoral Americana, romance-síntese de uma identidade carregada de contradições com génese na América e, nos casos de Roth, Zuckerman e do Sueco, formada em Newark, a cidade que um dia se tornou “impossível” porque subverteu essa pastoral. Quando é que tudo entrou em colapso? Na cidade, foi com os motins de 1967, um protesto violento contra as políticas sociais do Presidente Lyndon B. Johnson, que tomou conta das ruas de muitas outras cidades americanas e assumiu proporções dantescas em Newark. O sucessor de John Kennedy parecia incapaz de cumprir as promessas de igualdade de oportunidades independentemente da raça. A comunidade, constituída por irlandeses, polacos, italianos, americanos brancos de várias gerações, sofrera alterações desde a década de 50, quando milhares de negros migrados da forte segregação do Sul se instalaram, respondendo à oferta de emprego que crescia na indústria e nos serviços. No final dos anos 60, representavam mais de 50% da população de Newark, mas estavam no fundo da pirâmide social. Eram os mais pobres, os menos representados, sentiam-se à margem no trabalho, na educação e na riqueza. Toda a tensão acumulada explodiu nas ruas depois de dois polícias brancos terem prendido um taxista negro. Foram seis dias dos mais negros na história recente da América. Morreram 26 pessoas, houve centenas de feridos e a cidade nunca mais se recompôs. Quem pôde fugiu. E esse passou a ser o destino trágico de Newark até hoje: só parece ficar quem não pode sair. No livro, o colapso foi o crime da filha do Sueco. Num dia de 1968, Merry fez explodir um edifício dos Correios em protesto contra os valores americanos que justificavam a guerra do Vietname. Era a iniciação do Sueco ao descalabro, o “desmantelamento de uma América totalmente nova, a filha e a década fragmentando em mil pedaços a sua forma particular de raciocínio utópico, a praga América infiltrando-se no castelo do Sueco, e aí, infectando todos. A filha que o leva para fora da sonhada pastoral americana e o mergulha em tudo o que é a sua antítese e o seu inimigo, na fúria, na violência e no desespero da contra-pastoral — na primitiva raiva americana”, escreve Zuckerman pelas mãos de Roth sobre a perplexidade que se experimenta perante a queda trágica. Sobre o momento em que o “impossível acontece”. É esse o território de partida nos romances de Philip Roth, e já o fora nos de Saul Bellow, uma espécie de fantasma que espreita. Uma força transformadora de desconforto, incómoda que está muito ligada à sua afirmação americana, à identidade. Newark, como a Chicago de Bellow são uma metáfora dessa sensação de ruptura, de disrupção. A negação da linha de evolução permanente. A ideia original para o romance foi a de uma rapariga bombista. Era a mancha a cair na imagem de pureza da adolescente feminina. Demorou anos a apurar. Ela pertencia à quarta geração de uma família de imigrantes de Newark, filha de um herói local, o melhor jogador de basebol do liceu de Weequahic, frequentado sobretudo por judeus, herdeiro de uma fábrica de luvas. O Sueco era louro como um ariano, mas com apelido judeu, um símbolo de integração, o rapaz exemplo para todos e não apenas para a comunidade judaica a que pertencia. “Os sentimentos judaicos contraditórios provocados pela sua presença eram, simultaneamente, aplacados por ela; a contradição dos judeus, que ora se sentem adaptados ora não se sentem adaptados, que ora insistem que são diferentes e ora não o são, resolvia-se com o espectáculo triunfante deste Sueco que, afinal, era mais um Seymour do nosso bairro, cujos antepassados tinham sido Solomons e Sauls e que, por sua vez, haviam de gerar Stephens que haviam de gerar Shawns. Onde é que se encontrava nele o judeu? Não se conseguia encontrá-lo, e contudo, sabia-se que estava lá. (...)”, lê-se no início de Pastoral Americana. O Sueco era um instrumento da história por toda essa simbologia de integração ao mesmo tempo que anos depois a filha também seria por contestar o movimento da História. O leitor vai sabendo de tudo isto pela voz do narrador, Nathan Zuckerman, o escritor que Philip Roth criou em 1974 em My Life as a Man e que seria protagonista e/ou narrador de mais nove romances de Roth. Aqui ele tem sessenta e tal anos, está deprimido e encontra o seu herói de infância, o Sueco, no momento em que ele tem uma segunda família. Antes, casara-se com a Miss New Jersey 1949, católica de Newark, e foram viver longe do bairro judeu, numa terra nos subúrbios. É aí que em 1968, aos 16 anos, a sua filha põe uma bomba e mata um homem. Zuckerman, ao serviço de Roth, quer chegar à consciência desse homem e pô-la em palavras, mas fá-lo em contraponto com outro estado de consciência: a de Zuckerman. Zuckerman e o Sueco são dois pólos opostos — pelo seu íntimo — de uma mesma realidade, social, religiosa, local. De um lado, o obcecado, torturado pelo conflito interno, tantas vezes assaltado por sentimentos de raiva e frustração e que se salva com a escrita; e do outro, “o banal e convencional”, acredita Zuckerman, alguém que se define pela “ausência de valores negativos e mais nada”. Zuckerman quer escrever sobre ele partindo de um pergunta: qual é, onde está, como se manifesta a subjectividade do Sueco? A construção da narrativa, de que o leitor se sente parte como espectador privilegiado, é a perseguição dessa essência pelo escritor. O livro foi publicado, a crítica aplaudiu e ganhou o Pulitzer em 1998. Muitos viram nele um romance político, de alguém que parecia ter mudado de lado e surgir como um neoconservador. No entanto, como refere Claudia Roth Pierpoint na biografia literária Roth Unbound (2012), nos seus livros ele não dá nunca uma única perspectiva das coisas. A autora, que apesar de partilhar o mesmo apelido não tem parentesco com o escritor, cita-o: “Eu não escrevo sobre as minhas convicções. Escrevo sobre as consequências cómicas e trágicas de convicções questionáveis”. Roth queria dizer que não faz política mas literatura e por isso pode falar de tudo da mesma forma que Saul Bellow já fizera em As Aventuras de Augie March. “Estávamos em pleno Inverno, e o frio e a humidade eram terríveis; de modo que percorrer a cidade nos eléctricos aracnídeos, em viagens que duravam horas, deixava qualquer um apalermado como um gato ao pé do fogão, por causa do aperto lá dentro. (...) Nunca existiram civilizações sem cidades. Mas e cidades sem civilização? Seria uma coisa inumana, se fosse possível, tantas pessoas a viverem juntas sem gerar nada umas para as outras. Não, mas não é possível, e a desolação gera o seu próprio fogo, e portanto isso nunca acontece.”

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Algumas linhas do texto de Jean-Sébastien Chauvin

a propósito de Brooklyn Village, de Ira Sachs [Cahiers du Cinéma, 725: 35]: "Cette douceur, dont le filme ne se départit jamais, tient au regard d'Ira Sachs, à cette sorte de tempérance d'honnête homme, son art mesuré et profond de la description des vies qu'il filme, où le détail prévaut sur la superstructure, la sublime insignifiance des choses ayant une portée aussi grand que le climax d'une scène intelligemment scénarisée. Il faut voir l'émotion de ces plans tout simples..."

Diante dos nossos olhos

é o título de um ensaio meu publicado no número 5 da revista Fátima XXI, sobre a figuração do anjo. Aqui vos deixo um excerto: "como enunciar algo que ilude as fronteiras do nosso quotidiano? O compositor inglês contemporâneo Patrick Hawes, a quem devemos um álbum comovente intitulado Anjos [Angels], escreve a propósito: “Nunca vi um anjo e, no entanto, a minha consciência da presença de anjos tem-se tornado cada vez mais forte ao longo destes últimos anos.” (Hawes, 2013) Num depoimento disponível na internet Hawes é filmado aproximando-se de uma igreja, em cujo limiar recorda uma experiência que seu pai terá vivido: “Este foi o sítio onde o meu pai viu anjos. Foi já para o fim da tarde, três ou quarto figuras, juntas, rodeadas de luz, bastante indistintas, mas discerníveis como tendo forma humana. E as figuras estavam a dançar, e não deram por ele. E ele dizia que era quase como se houvesse música no ar.” Foi, também, com esta experiência em mente que ele concebeu o referido álbum, onde contou com os poemas escritos pelo seu irmão, o reverendo Andy Hawes. Será, no entanto, talvez, no Prelúdio I do Anjo, um solo de piano onde as palavras estão ausentes, que mais intensamente o poder evocador da música pode ser sentido."

Verás coisas maiores do que estas

Ao longo dos anos fui-me cruzando, por aqui, com uma jovem com um lenço na cabeça, à semelhança de muitas outras mulheres que estão a passar por tratamentos de quimioterapia. Já há algum tempo, cruzámo-nos uma vez mais, mas desta feita já não trazia o lenço; o cabelo, ainda fraco, estava arranjado. Tinha certamente acabado de sair do cabeleireiro. Estava maquilhada, andava célere, com um sorriso aberto que guardo na memória. Aquele sorriso dizia, como podem ver, estou aqui e estou feliz. Já há algum tempo que não passamos um pelo outro, mas recordei hoje desse seu sorriso ao ouvir um versículo de João: Verás coisas maiores do que estas.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

De novo as eleições americanas (outro texto do DN)

Ao deambular pelas ruas de Florença, a escritora americana Mary McCarthy ficou impressionada com as fachadas dos palácios florentinos que, segundo ela, mais faziam lembrar fortalezas ou masmorras. Acima de tudo, era a ausência de hospitalidade que elas pareciam denunciar. Sensivelmente na mesma altura, o antropólogo inglês Geoffrey Gorer assinalava o facto de, nas habitações americanas, tudo estar sujeito ao escrutínio exterior: nem sebes, nem muros, nem portões separam a casa da rua. E acrescentava algo de interessante, estes edifícios são exemplos vibrantes dessa integridade transparente que os americanos gostam de pensar ser a sua característica mais meritória. Eis-nos, portanto, face àquelas que seriam duas posturas distintas, a europeia e a americana. A transparência exibida pela arquitectura, sinalizaria, afinal, um traço de carácter: a sinceridade. Daí o culto de uma ética da informalidade, da espontaneidade, do tratamento pelo nome próprio, da expressão pública dos sentimentos, algo a que Trump tem sistematicamente recorrido. Se Hillary Clinton não estiver atenta a este aspecto neste momento crucial; se preferir esconder a sua realidade por detrás de uma fachada semelhante à de um palácio florentino, em vez de, literalmente, revelar a sua verdadeira radiografia clínica, e assim desmontar as dúvidas que se têm colocado, então provavelmente estará a hipotecar o seu futuro. Longes vão os tempos em que se conseguia ocultar a fragilidade física do Presidente Kennedy, ou o declínio mental do Presidente Reagan.

Um contributo para a compreensão da América (texto publicado no DN)

The Nine Nations of North America é o título insólito de uma obra publicada em 1981 por Joel Garreau. Nela, Garreau defendia a tese segundo a qual, sob umas fronteiras “artificiais” – os países - identidades culturais e económicas profundas deviam ser reconhecidas: as tais nove nações. Cito dois exemplos, Ecotopia – designação tomada do romance utópico de Ernest Callenbach, com capital em São Francisco, estendendo-se ao longo da costa oeste, da Colúmbia Britânica ao norte da Califórnia; e Mexamérica, com capital em Los Angeles, formada pelo sul da Califórnia e do Arizona, por grande parte do Texas, do Novo México e – algo que perturbaria o excêntrico muro de Trump – o norte do México. Esta tentativa de desvendar matrizes identitárias ancoradas em horizontes geográficos, ecoa Letters from an American Farmer (1782), o clássico iluminista de Michel Guillaume Jean de Crèvecoeur que, ao adquirir a cidadania americana, passaria a chamar-se John Hector St. John of Crèvecoeur. Aí, na célebre carta, “What is an American”, ele identifica o perfil da jovem nação – o melting pot, associando comportamentos cívicos ao enquadramento institucional emergente, ou à sua ausência (a fronteira), nas circunstâncias geográficas do Novo Mundo. Assim se delineia uma linha de pensamento que Thoreau revisitará, e na qual Garreau se inscreve. No entanto, esta leitura esquece uma outra dimensão dos Estados Unidos, aquela em que os matizes identitários se ancoram na retórica dos colonos puritanos: terra prometida, povo eleito, espírito de missão, ética da responsabilidade individual. Ora, o início da década de 1980 recupera-a, introduzindo-a explicitamente no argumento político. Penso na investidura do Presidente Reagan onde ele enfatiza a sua actualidade ao recordar o puritano John Winthrop que, ainda a bordo do Arbella, associa o lugar que os aguarda à cidade no monte (Mateus 5, 14). Uma leitura apressada estabeleceria uma razão de causa-efeito entre este argumento e o conservadorismo reaganiano. A questão é mais complexa, pois o legado de Winthrop fora já evocado pelo Presidente Kennedy ao proclamar o desígnio da Nova Fronteira, e seria retomado em 1997, pelo Presidente Clinton, na segunda investidura, ao mencionar a promessa da Terra Prometida. Clinton revê-o, porém, sob o signo iluminista que consagra a universalidade sabiamente ampliada por Martin Luther King no discurso de Washington. Esta é, portanto, uma retórica transversal à sociedade americana e indissociável da sua dimensão mítica. Uma retórica Branca, Anglo-Saxónica e Protestante, dir-se-á. E, todavia, mítica. Curiosamente, pertence a um republicano, Clint Eastwood, uma das interpelações estéticas mais profundas desta dimensão. Ainda na primeira metade da década de 1980, este realizador toma a forma de expressão artística americana por excelência - o cinema, e o seu género privilegiado - o western, para a ela proceder em Pale Rider. Entre nós este filme foi intitulado Justiceiro Solitário, o que rasura as reverberações bíblicas - em Apocalipse 7, 8, o cavaleiro que representa a Morte, monta a pale horse. São muitas e subtis as formas como Eastwood perturba o mito; aponto apenas esta: o protagonista é, paradoxalmente, um pregador e um pistoleiro que, qual fantasma, surge do reino dos mortos ao som das palavras do Salmo 23, aqui usadas no enterro de um… cão. Estamos longe da solenidade em que este Salmo é amiúde lido e dos protagonistas unidimensionais recorrentes no western. Tal como a América confrontada com os fantasmas da sua História recente, dos resquícios da II Guerra Mundial ao mais recente Vietname, também no filme os fantasmas predominam; neles é uma alteridade que emerge, o que suscita outra questão. Haverá uma certa tendência para imaginar uma idade do ouro em que a democracia ali decorreria sem discursos perturbadores do normal funcionamento institucional. Basta, no entanto, olhar para os tempos da Revolução Americana para reconhecer as múltiplas tensões e contradições que então se viveram. Lembre-se quão intensos foram os debates entre os que defendiam uma organização baseada nos exemplos de Esparta, ou de Roma ou de Atenas, entre governo estadual e central, e na solução mista que acabaria por prevalecer. Lembre-se os inúmeros movimentos de base, não raro violentos, que a historiografia recente tem vindo a investigar. “Contradigo-me?/ Muito bem, então, contradigo-me / (sou imenso, contenho multidões)”, proclamou Walt Whitman, poeta da epopeia americana. Reconhecer que essa imensidão implica a presença da alteridade, revela, por um lado, bom senso (um eco filosófico iluminista vindo da Escócia pela mão de Lord Kames) que se repercutiria no sistema de checks and balances, e, por outro, abertura para as vozes críticas face ao governo. Um nobre exemplo destas será Henry Adams, autor da famosa autobiografia The Education of Henry Adams, e membro da aristocracia política familiar iniciada com o Presidente John Adams. A ele se devem censuras a Washington – leia-se, ao governo – tão radicais que banalizam muitas das investidas verbais dos populismos que, à direita e à esquerda, hoje se fazem ouvir. Afinal, embora com matizes distintos, têm sido vários os movimentos que não se inscrevem na matriz fundadora, do populismo oitocentista do People’s Party, ao anarquismo do início do século XX, ou ao socialismo de Henry Wallace que Oliver Stone tentou resgatar em A História não contada dos Estados Unidos. Mais ou menos fugazes, eles não têm, contudo, conseguido rasurar essa matriz. Resta saber se os partidos que a representam, são capazes de reconhecer e dar resposta aos sintomas em que populismos vários hoje se alimentam. Nota final, quando se refere a presença da língua espanhola na realidade americana actual, ignora-se um facto relevante: mais do que uma língua é uma diversidade cultural que ali se sinaliza. Na forma como esta diversidade se integrar e ajudar a reescrever essa matriz, e como esta a saberá acolher, reside muito da vitalidade que, no futuro, uma América sedimentada nas contradições poderá ter.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

The Light of the World (1851–3), de William Holman Hunt

Evangelho segundo S. Lucas 8,16-18: Naquele tempo, disse Jesus à multidão: «Ninguém acende uma lâmpada para a cobrir com uma vasilha ou a colocar debaixo da cama, mas coloca-a num candelabro, para que os que entram vejam a luz. Não há nada oculto que não se torne manifesto, nem secreto que não seja conhecido à luz do dia. Portanto, tende cuidado com a maneira como ouvis. Pois àquele que tem, dar-se-á; mas àquele que não tem, até o que julga ter lhe será tirado». Comentário de São Cromácio de Aquileia (?-407): "O Senhor chama aos seus discípulos «luz do mundo» (Mt 5, 4) porque, iluminados por Ele, que é a luz eterna e verdadeira (Jo 1,9), eles próprios se tornam uma luz no meio das trevas. Porque Ele é o «Sol da justiça» (Mal 3,20), o Senhor pode chamar aos seus discípulos «luz do mundo»: é por meio deles que irradia sobre o mundo inteiro a luz da sua própria ciência. [...] Iluminados por eles, também nós passámos das trevas à luz, como diz o Apóstolo: «Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; vivei como filhos da luz» (Ef 3,8). E noutro passo: «Não sois filhos da noite nem das trevas, mas sois filhos da luz e filhos do dia» (1Tess 5,5). Com razão diz também S. João na sua primeira epístola: «Deus é luz» (1,5); e «quem permanece em Deus está na luz» (1,7). [...] Portanto, uma vez que temos a felicidade de estar libertos das trevas do erro, devemos andar sempre na luz, como filhos da luz que somos. [...] Por isso diz o Apóstolo: «Vós brilhais entre eles como estrelas no mundo, ostentando a palavra da vida» (Tess 2,15). [...] Aquela lâmpada resplandecente, que foi acesa para nossa salvação, deve brilhar sempre em nós. [...] Por isso é nosso dever não ocultar esta lâmpada da lei e da fé, mas colocá-la sempre no candelabro da Igreja para salvação de todos, a fim de nós próprios gozarmos da luz da sua verdade, e de com ela serem iluminados todos os crentes."

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Perceber como não nos percebem (ou uma leitura de “O Nascimento de uma Nação” de Mário Avelar - sem Playmobil incluído) - parte II

Texto da autoria de Tiago Cavaco: "Não é possível querer ser um evangélico português com alguma capacidade de auto-reflexão sem perceber de puritanismo. E com isto não sugiro que temos de ter diplomas em história da religião para sermos competentes no exercício da nossa fé (o que nos torna competentes no exercício da nossa fé é o Espírito Santo). Simplesmente limito-me a reconhecer o óbvio, que é perceber um pouco do passado para termos a ideia que as coisas não caíram dos ceús aos trambolhões. Ao contrário do que hoje acontece em largas regiões do evangelicalismo, a fé reformada nunca sugeriu desligar-se da história para viver um cristianismo mais puro (como se os outros que nos antecederam fossem uns ímpios, e nós fôssemos uns iluminados). Logo, o desafio para um cristão evangélico português é assumir humildemente que viver a sua fé com profundidade pode passar por reconhecer as origens estrangeiras da tradição religiosa a que pertencemos. Frequentemente os cristãos evangélicos portugueses são como adolescentes em busca da sua personalidade, convictos de que quanto mais diferentes forem dos progenitores, melhor. Por isso mesmo, um dos sonhos teen típicos dos cristãos evangélicos portugueses é o de um cristianismo evangélico tipicamente português. Desculpem colocar as coisas de uma forma tão radical, mas no dia em que descobrirem um cristianismo evangélico português avisem-me que emigro para Espanha. Mantendo ainda as coisas em termos curtos e grossos: se queres um cristianismo tipicamente português, ele já existe há mais tempo que existe Portugal e chama-se catolicismo romano. Evangélicos adolescentes: enxerguem-se e cresçam. Ser um cristão evangélico português com uma relação saudável com a sua fé é viver em harmonia com o facto de se pertencer a uma tradição religiosa que é sobretudo de travo anglo-saxónico. Com se diz lá nas terras deles: deal with it. Isso quer dizer que somos obrigados a piorar o sentimento de estranheza que a maior parte dos portugueses tem connosco? De modo algum. Simplesmente quer dizer que estamos em paz com o factor mais importante da nossa fé não ser o conforto que sentimos com a história da nossa tradição religiosa, e quer dizer que estamos em paz com o facto da nossa tradição religiosa ter efectivamente uma história pouco ou nada portuguesa. Gente adulta tende a saber viver conciliada com a sua história. Sim, somos estrangeirados - e daí? Logo, esta minha longa queixa é apenas para vos dizer que às vezes o melhor modo de percebermos quão abençoadamente esquisitos podemos ser é ler essa esquisitice na pena de outros. Ora, ler o Mário Avelar falando sobre literatura americana é perceber que não há Estados Unidos da América sem os puritanos. Um evangélico português que lê o Mário Avelar é ajudado a perceber que aquilo que faz dele esquisito em Portugal, é o que faz com que os Estados Unidos sejam os Estados Unidos. Com isto não estou a dizer que os Estados Unidos são uma nação evangélica, mas estou a apenas (a ser mais um) a dizer que os Estados Unidos são uma nação nuclearmente influenciada pelos puritanos. Por outro lado, um português não-evangélico que lê o Mário Avelar acaba, ainda que por tabela, a receber uma lição sobre os evangélicos que também existem no seu país. Todos ficam a ganhar lendo o Mário Avelar (perdoem-me a quadrinha). (Continua.) [Ontem o Marcos Mateus comentava o meu texto alertando que outras denominações evangélicas em Portugal foram fruto do trabalho missionário de outros países, como a Escócia e a Inglaterra no caso das chamadas Igrejas dos Irmãos, e não dos Estados Unidos. Sem dúvida. Podíamos também mencionar os suecos e as Assembleias de Deus, para termos mais um exemplo (ou os suíços e a Acção Bíblica, e por aí fora). O ponto fundamental da minha argumentação não contesta as origens missionárias de outros países. O ponto fundamental da minha argumentação, e que será mais visível na terceira e última parte deste texto é que, mesmo quando a influência missionária protestante não foi directamente americana, a cultura evangélica que é recebida e desenvolvida em Portugal é decididamente influenciada pela cultura americana. Isto porque a cultura americana é nos Séculos XIX e XX (e sobretudo XX) aquela que representa o lugar onde o movimento evangélico, ainda que tendo manifestações plurais pelo mundo fora, foi mais fértil e capaz de ser exportado para outros lugares.]"

terça-feira, 14 de junho de 2016

Palavras finais da minha intervenção

na segunda conferência da John Dos Passos Society, a propósito da iconografia em The Portugal Story: "... the visual syncretism of this shield somehow mirrors Portuguese attitude towards the Other and the tendency to miscegenation, to immersion and assimilation of alien cultures. We may be leaving today in the legacy of these narratives, of these galleries of heroes who in their deeds and in their cruelties helped building a specific presence in the world. In this post-modern hybrid text mixing subjective perceptions and History, fact and personal insight, narrative and collage, John Dos Passos seems to be finding his own legacy. This is the reason why, I think, he stopped telling his story when the Portuguese strategic agenda decreed that we should stop leaving. We kept on leaving but then there was no design, only an escape, the search for a better living."

terça-feira, 17 de maio de 2016

Seguir o último de todos e o servo de todos

"Meu amigo, tomemos a aparência daquele que nos deu a vida. Ele, que era rico, empobreceu-Se a Si mesmo. Ele, que estava colocado no alto, desceu da sua grandeza. Ele, que habitava nas alturas, não tinha onde reclinar a cabeça. Ele, que há-de vir sobre as nuvens, montou um jumento para entrar em Jerusalém. Ele, que é Deus e Filho de Deus, tomou a aparência de servo. Ele, que é o repouso para todos os trabalhos, fatigou-Se com os incómodos do caminho. Ele, que é a fonte que estanca a sede, teve sede e pediu água para beber. Ele, que é a saciedade que satisfaz a nossa fome, teve fome quando jejuou no deserto e foi tentado. Ele, que vela e nunca dorme, deitou-Se e adormeceu num barco no meio do mar. Ele, que é servido na tenda de seu Pai, deixou-Se servir pelas mãos dos homens. Ele, que é o médico de todos os doentes, viu as suas mãos perfuradas pelos cravos. A Ele, cuja boca anunciava coisas boas, deram a beber fel. Ele, que não tinha feito mal a ninguém, foi açoitado e suportou ultrajes. Ele que tinha feito viver os mortos, entregou-Se a Si mesmo à morte na cruz. Sendo nosso vivificador, Ele próprio experimentou todos estes abaixamentos; abaixemo-nos nós também, meus amigos." Afraates (270?-c. 345), monge e bispo de Nínive, As Exposições, n.º 6

terça-feira, 10 de maio de 2016

O silêncio, segundo Gianfranco Ravasi

"O silêncio é mansidão quando não respondes às ofensas e deixas a Deus a tua defesa. O silêncio é paciência quando sofres sem te lamentares, não procuras consolações humanas, esperas que a semente germine. O silêncio é humildade quando calas para deixar emergir os irmãos e deixas aos outros a glória do feito. O silêncio é fé quando não procuras compreensão e renuncias à glória pessoal porque te basta ser conhecido por Deus. Assim escrevia em 1581 S. João da Cruz, grande místico e escritor espanhol. O seu canto do silêncio conjuga-se bem com a "mística" que - como na palavra "mistério" - tem na raiz um verbo grego que significa "calar". Não é preciso acrescentar muito sobre este tema, tão marginalizado no tempo em que vivemos, marcado por um excesso de falatório, rumor e fatuidade exterior. Gostaria, em vez disso, de colocar o acento nas "cores" do silêncio que o santo consegue fazer brilhar. Há, antes de mais, a mansidão que emerge do calar as respostas amargas, sarcásticas, vingativas. Há a paciência que desponta desde o reprimir do lamento emitido para obter compreensão e para se tornar o centro da atenção do outro. Sofrer em silêncio é confiar só a Deus a própria dor, sabendo que Ele «as nossas lágrimas no seu odre recolhe, escrevendo-as depois no seu livro (Salmo 56, 9). O silêncio é também o ventre da humildade porque o prepotente tem sempre uma palavra a mais do que os outros e o soberbo faz ribombar a sua voz de maneira retumbante, de tal forma que ela domine e revele a grandeza de quem a emite. E, por fim, a fé é silenciosa porque é intimidade com Deus. E é belíssima a frase, de sabor paulino (leia-se Galátas 4, 9), com que João da Cruz conclui o seu louvor do silêncio: «Basta-nos ser conhecidos por Deus!»." P. [Card.] Gianfranco Ravasi In "Avvenire" (Trad.: Rui Jorge Martins) A imagem: Le silence de la neige, Fernand Khnopff | 1916

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Recomendo vivamente! Estará em exibição em breve...

Quando se reproduzem frases feitas sobre uma suposta indiferenciação cultural nos tempos que vivemos (leituras distorcidas da chamada aldeia global), sugiro esta meditação sobre a memória, a vida para além da morte, o passado, e as suas confluências. A par da sugestão deixo-vos, por isso, algumas palavras de Apichatpong Weersasethakul, o realizador, a propósito de Cemitério do Esplendor: "A arquitectura foi um caminho que me fez apreciar o espaço e também os filmes experimentais, os feitos nos Estados Unidos nos anos 60 e 70, que são muito estruturais, e isso é algo que vejo como arquitectura. Vejo um filme como uma linha de tempo e blocos de diferentes espaços, e a arquitectura foi muito importante para isso. O cinema experimental representa a liberdade de fazer filmes, o que para mim é muito importante, desde logo porque sou muito introvertido, e o cinema experimental é o contrário de se trabalhar com uma grande equipa, faz-se apenas numa câmara escura, é como pintura." "... no filme há muitas, muitas camadas de coisas que podem activar a memória ou a imaginação. O que está por baixo não se sabe ao certo. Uma informação é que é um cemitério. Mas podia ser outra coisa, como uma rede de fibra óptica. Mas por mim não sei realmente o que está por baixo, na terra."

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Leonídio Paulo Ferreira, no Diário de Notícias, a propósito do bardo

Uma trupe de marinheiros britânicos, um público de chefes africanos e um intérprete de português. Foi assim, em setembro de 1607 num navio junto à Serra Leoa, que Hamlet foi pela primeira vez encenado fora da Europa e também pela primeira vez traduzido. Lucas Fernandez, que fontes da época dizem que falava português perfeito, foi traduzindo cada frase da peça de William Shakespeare para a assistência, onde estava o seu cunhado e rei daquela parte de África. Velho amigo dos portugueses, o povo temne enviava a elite para estudar em Lisboa com os jesuítas e nem o domínio filipino afetou a aliança. "O episódio é conhecido, embora não consiga identificar um registo coevo entre nós", explica Mário Avelar, professor catedrático de Estudos Anglo-Americanos. E acrescenta: "Parece-me que é, acima de tudo, significativo por revelar a importância que Shakespeare tinha para os seus contemporâneos, e, em particular, a sua popularidade. Resta, todavia, a questão de saber que Hamlet foi exibido? Com efeito, na altura já haviam sido editadas duas versões de Hamlet, o primeiro Quarto (assim designado devido à forma como a folha era dobrada), vindo a lume em 1603, que terá sido escrito a partir da memória, eventualmente por um ator que teria participado numa encenação, e o segundo Quarto, publicado no ano seguinte, e que já revela uma extensão considerável, idêntica àquela que vemos hoje em dia serem levadas à cena. Terá sido um destes Hamlets?" O académico, em conversa com o DN, avança ainda outra hipótese: "Ou terá sido uma modelação de uma destas versões? Uma versão truncada, por exemplo?" O navio que serviu de palco foi o Red Dragon. Ia a caminho do Oriente, com o capitão William Keeling a ancorar na foz de um rio da Serra Leoa enquanto esperava que a tripulação se curasse do escorbuto e outras maleitas. Que tenha encontrado negros a falar português não deve surpreender, como nota o historiador João Paulo Oliveira e Costa, pois "os portugueses frequentavam a região há cem anos e alguns ficaram a viver lá". Contudo, não se pode falar do português na África como língua franca, quando muito era "falado nas praias frequentadas pelos portugueses". Segundo o autor de História da Expansão e do Império Português (A Esfera dos Livros, 2012), é na Ásia que se pode afirmar tal. "Ao longo do século XVI, os portugueses foram os únicos europeus que frequentaram todos os mares da Ásia. Por isso, o português tornou-se língua franca e holandeses e ingleses celebraram os primeiros tratados com Estados asiáticos em língua portuguesa." Ora é esse domínio militar e comercial de Portugal no Índico que navios como o Red Dragon, que seguia para a Indonésia, pretendiam quebrar. Numa anterior viagem, a embarcação chegou a visitar feitorias portuguesas, assistindo a combates com os cobiçosos holandeses. Será, aliás, numa batalha com a Marinha holandesa que o Red Dragon será afundado em 1619, talvez ainda com algum marinheiro dos que tinham entrado na peça sobre o príncipe dinamarquês. Navio Red Dragon foi palco de várias peças de Shakespeare como diplomacia cultural O episódio de Hamlet em África foi pioneiro mas não único e sabe--se que outras peças de Shakespeare foram encenadas em navios, quase como diplomacia cultural. Mas traduções clássicas, essas, limitaram-se de início à Europa, como sublinha Mário Avelar: "Os textos dramáticos de Shakespeare começaram a ser divulgados na Europa continental ainda em vida do autor. As primeiras traduções em alemão datam de 1624, ou seja, no ano seguinte à publicação do Primeiro Fólio, da responsabilidade de dois atores que haviam trabalhado com Shakespeare, e que consolidaria um cânone inicial. Surgiram depois as traduções francesas, já no século XVIII, o que não significa que ele não tenha continuado a ser levado à cena por essa Europa fora." Em Portugal, foi preciso esperar mais pelas traduções do bardo de Stratford-upon-Avon. Hamlet só se popularizou em finais do século XIX graças à tradução por D. Luís, como notou em recente entrevista ao DN Joanna Burke, diretora do British Council. Sobre a representação pelos marinheiros ao largo de África, Diogo Infante, que já foi Hamlet em palco, diz achar "absolutamente credível uma encenação num navio". E sublinha que "a grande vantagem do teatro é a capacidade para se transpor no tempo e no espaço". Para o ator, basta pensar na simplicidade do Globe Theater da época de Shakespeare, reconstruído em Londres, com a estrutura em madeira. Nunca se saberá como Lucas Fernandez traduziu a primeira fala de Hamlet "Who"s there?". Pode ter sido "Quem está aí?, como fez Sophia de Mello Breyner, ou "Quem vem lá?, a opção do brasileiro Péricles Eugênio da Silva Ramos . Mas é inegável que esta encenação de "Hamlet num cenário afro-português" (assim o descreve uma History in Africa publicada por Cambridge) faz parte da história do genial inglês que viveu entre 1564 e 1616 e cujos 400 anos da morte se assinalam amanhã. Como diz Mário Avelar, autor de O Essencial sobre William Shakespeare (INCM, 2012), "nunca ninguém como Shakespeare foi tão longe na capacidade de verbalizar a complexidade do ser humano, as nossas contradições, aquilo que persiste nos espaços mais recônditos do inconsciente, aquilo que nos eleva aos atos mais heroicos e que faz de nós seres desprezíveis. Falstaff, ele sintetiza toda essa generosidade, os instintos básicos, o prazer e a melancolia, também. E não posso deixar de acentuar esta palavra, verbalizar. Nunca ninguém, como ele, levou tão longe o poder da palavra, o seu poder de nos revelar".

Welles e Shakespeare

Saiu um novo número da vértice, desta feita dedicada ao Mestre Orson Welles. Podereis encontrar aí um texto meu sobre o diálogo de Welles com Shakespeare.

"Cristo e o Cirineu", de Ticiano

"A invocação de Deus como Pai é conhecida em muitas religiões. A divindade é muitas vezes considerada pai dos deuses e dos homens. Em Israel, porém, Deus é chamado Pai enquanto Criador do mundo. Mais ainda, Deus é Pai em razão da Aliança e do dom da Lei a Israel, que é o seu «filho primogénito» (Ex 4,22). E é também chamado Pai do Rei de Israel. Ele é muito especialmente o Pai dos pobres, do órfão e da viúva que estão sob a sua protecção amorosa. Jesus revelou que Deus é Pai num sentido inaudito: não o é somente enquanto Criador, mas é eternamente Pai em relação a seu Filho único, que só é eternamente Filho em relação a seu Pai: «Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar» (Mt 11,27). " (Catecismo da Igreja Católica § 238, 240-242 )

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Sobre os tempos que vivemos...

um passo de Amoris laetitia - A Alegria do Amor, do Papa Francisco: "O amor de amizade chama-se 'caridade' quando capta e aprecia o 'valor sublime' que tem o outro. A beleza - o 'valor sublime' do outro, que não coincide com os seus atractivos físicos ou psicológicos - permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa, sem a imperiosa necessidade de a possuir. Na sociedade de consumo, o sentido estético empobrece-se e, assim, apaga-se a alegria. Tudo se destina ser comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura é uma manifestação deste amor que se liberta da posse egoísta. Leva-nos a vibrar à vista de uma pessoa, com imenso respeito e um certo receio de lhe causar dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro implica este gosto de contemplar e apreciar o que é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe para além das minhas necessidades. Isto permite-nos procurar o seu bem, mesmo quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável, agressivo ou chato." (p. 84, na edito da Paulus)

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A propósito de Henry James

William James, famoso psicólogo e conhecido filósofo, não se cansava de sublinhar nas suas cartas ao irmão Henry um certo desapontamento pela dedicação absoluta deste último a um fazer artístico que lhe totalizava uma vida privada de afetos ou acontecimentos relevantes, à exceção de um contínuo vaguear pela Europa. Todavia, longe de constituir um entretenimento distraído e supérfluo, a literatura para Henry James representava um meio para dar voz ao que Aristóteles chamava «as questões últimas» ou que Flannery O'Connor definia «o mistério da nossa posição na Terra». Nascido em Nova Iorque a 15 de abril de 1843. de uma rica família de industriais de origem irlandesa, Henry James recebe uma educação liberal e de vanguarda do seu pai, Henry sénior, intelectual arguto, influenciado pelas teorias de Swedenborg, filósofo e místico sueco do século XVIII. Os estudos dos dois irmãos, William e Henry, foram irregulares por causa das contínuas deslocações de escola e cidade, entre EUA e Europa (Genebra, Londres, Paris e Bona), que caracterizaram depois a vida adulta de Henry e se tornaram, pelo encontro entre culturas desencadeado, o tema chave de grande parte dos seus romances.
Pelos vinte anos, depois de ter abandonado a faculdade de direito em Harvard, Henry James iniciou a sua carreira literária com a publicação de diversas recensões críticas e dos primeiros contos: durante a sua longa vida escreverá vinte e dois romances e cento e doze contos, além de algumas obras teatrais (de escasso sucesso) e um grande número de ensaios e artigos, atestando-se como um dos autores mais prolíficos da história da literatura. A sua narrativa foi profundamente influenciada por Nathaniel Hawthorne, Charles Dickens, Honoré de Balzac e Ivan Turgenev. A aguda observação e o estudo das moções da alma humana, que constituem o núcleo das suas obras, fazem referência a um forte sentido moral oculto num requinte estético, pertencente a um escritor amante da arte, conhecedor de numerosas línguas, ávido leitor, bem como autor de uma produção colossal que o consagra ainda hoje, cem anos após a morte (ocorrida em Londres a 18 de fevereiro de 1916) como figura chave na história do romance moderno. Não deve induzir em engano o tom barroco ou eduardiano a que pertencem páginas formadas de frases perfeitas, articuladas, longuíssimas. Frases "sem pressa" e sem fim, "endless sentence" como o definiu Pound no sétimo dos seus "Cantos", talvez devido também ao facto de, nos últimos anos da sua vida, Henry James ter ditado os seus trabalhos a uma estenógrafa. A prosa do escritor norte-americano é caracterizada por longas digressões, ricas de adjetivos e subordinadas, que parece simplesmente registar na página um discurso denso de impressões, conjeturas, especulações, mas que na realidade se revela capaz de imergir nas profundidades do eu, desvelando os conflitos mais íntimos e as tensões mais radicais. "O aperto do parafuso" é uma entre as primeiras obras-primas de James: uma novela gótica que evidencia - como "O inquilino fantasma", "O altar dos mortos", "Os amigos dos amigos" e muitas outras histórias - a sua paixão pelo sobrenatural, entendido como extensão do mundo real: esses fantasmas que, como dizia Virgina Woolf, «têm a sua origem dentro de nós» e indicam como Henry James, «velho senhor requintado, mundano e sentimental, consegue ainda fazer-nos ter medo do escuro». James interessava-se em articular, por vezes até ao paradoxo, o conflito moral e as escolhas do indivíduo, que emergem da contrapor uma realidade ímpar e uma sociedade subjugadora. O que está em jogo é a procura de si, mesmo que com o preço de uma escolha final que prenuncia a derrota. Como acontece em "Retrato de uma senhora", um dos seus livros mais conhecidos, em que a protagonista, Isabel Archer, jovem e bela americana, desposa um homem que depois se dá conta de não amar, um homem egoísta apenas interessado no seu dinheiro. Mas Isabel, não obstante a possibilidade de se separar e criar uma nova vida sentimental, opta por fazer prevalecer o sentido de dever e voltar ao marido. Nesta obra o provincialismo e a ingenuidade de Isabel permanecem entretecidos naquela rica e decadente sociedade florentina e romana, onde a jovem é enganada sobre os reais sentimentos do homem que dentro em pouco desposará, confinando-se num destino de solidão e dissolução psíquica. Com este romance delineia-se uma temática recorrente em Henry James, constituída pela perene dialética social e cultural entre os EUA e a Europa, continente pelo qual continuará a ser fascinado, até decidir tomar, em 1915, a cidadania inglesa. A relação Europa-América assume a forma do conflito também em "Daisy Miller", "O americano" e "Os bostonianos", incardinados na contraposição entre um velho continente artisticamente requintado quanto extenuado pela corrupção e pelo prestígio social, e uma América empreendedora, cínica e sem escrúpulos. Elena Buia Rutt In "L'Osservatore Romano", 27.2.2016 Trad./edição: Rui Jorge Martins

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Um apontamento sobre o século XX

As palavras são de Eduardo Lourenço: “Sempre o espetáculo da perda ou da ausência, mesmo momentânea, de uma qualquer espécie de lei – imanente ou transcendente – sem a qual a humanidade instintivamente perdia a sua imagem, constituiu a mais tenebrosa das perspetivas. Aquela que todos os Dantes, conhecidos ou anónimos, descreveram sob a forma de uma topologia infernal. Nós incorporámos o inferno no quotidiano do mais fascinante e atroz dos séculos” (in O Esplendor do Caos, 10-11).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Bruno Catalano, escultor.

A intensidade da ausência e do fragmento.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Lincoln tinha "o estranho" hábito de falar por parábolas

Eis uma: Wa-al that reminds me of a party of Methodist parsons that was travelling in Illinois when I was a boy, and had a branch to cross that was pretty bad — ugly to cross, ye know, because the waters was up. And they got considerin’ and discussin’ how they should git across it, and they talked about it for two hours, and one on ’em thought they had ought to cross one way when they got there, and another another way, and they got quarrellin’ about it, till at last an old brother put in, and he says, says he, ‘Brethren, this here talk ain’t no use. I never cross a river until I come to it.’Onde terá ele ido buscar este hábito? Talvez também aqui: Jesus respondeu-lhes: «A vós foi dado a conhecer o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se lhes propõe em parábolas, para que, ao olhar, olhem e não vejam, ao ouvir, oiçam e não compreendam; senão, convertiam-se e seriam perdoados». Disse-lhes ainda: «Se não compreendeis esta parábola, como haveis de compreender as outras parábolas? (Marcos 4)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Jessica Powers

é uma poeta americana do século XX, sobre a qual orientei uma dissertação de mestrado (escrita por João Banha Correia, se a memória não me falha!) já lá vão uns quinze anos. Convidei, então, para a arguir um colega de percurso académico, António Botelho de Amaral. O António ficou tão emocionado com a descoberta da poesia de Powers que, numa incursão pelos Estados Unidos, foi visitar lugares onde ela viveu, tendo conseguido mesmo contactar com pessoas que a conheceram. Nestes tempos de correrias, não raro ignoramos que a vida académica é também (e acima de tudo) feita de entrega, dádiva e paixão, como esta. Eis um poema de Jessica Powers: "I walk in a cloud of angels./ God has a throne in the secret of my soul./ I move, encircled by light,/ blinded by glowing faces,/ lost and bewildered in the motion of wings,/ stricken by music too sublime to bear./ Splendor is everywhere./ God is always enthroned on the cherubim,/ circled by seraphim./ Holy, holy, holy,/ wave upon wave of endless adoration./ I walk in a cloud of angels that/ worship Him."

Conversione di San Paolo

Pintada por Caravaggio em 1601 para a Capela Cerasi da Igreja de Santa Maria del Popolo, tendo como pando de fundo Actos dos Apóstolos 22,3-16. Eis um excerto deste passo: ... no caminho, ao aproximar-me de Damasco, por volta do meio-dia, de repente brilhou ao redor de mim uma intensa luz vinda do Céu. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ‘Saulo, Saulo, porque Me persegues?’. Eu perguntei: ‘Quem és Tu, Senhor?’. E Ele respondeu-me: ‘Eu sou Jesus Nazareno, a quem tu persegues’. Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz que me falava. Então perguntei: ‘Que hei-de fazer, Senhor?’. E o Senhor disse-me: ‘Levanta-te e vai a Damasco; lá te dirão tudo o que deves fazer’. Votos de uma boa semana.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Como ler um detalhe

(as figuras geométricas) em Guidoriccio da Fogliano, de Simone Martini. Eis a sugestão de Antonella Anedda em La vita dei detagli – Scomporre quadri, immaginare mondi: "Non solo stelle ma triangoli bruni, losanghe nere su stoffa ocra, nodi e rotelle: il mantello tartaro di Gerione nel XVII canto dell’Inferno."

Um derradeiro verso

de um poema escrito há muito: "Que seria das palavras sem o afago dos anjos?"

As asas do desejo...

palavras inspiradas de Rilke que flutuam na nossa memória: "Als das Kind Kind war, wußte es nicht, daß es Kind war, alles war ihm beseelt, und alle Seelen waren eins."

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

"«Será permitido ao sábado fazer bem...

... ou fazer mal, salvar a vida ou tirá-la?». Mas eles ficaram calados." (Evangelho segundo S. Marcos 3,1-6). A propósito do Salmo 91,3,4-5,7, escreve Santo Hilário (c. 315-367): O Senhor trabalha no dia de sábado? Com certeza, de outra forma o céu desaparecia, a luz do sol apagava-se, a terra perdia consistência, todos os frutos perdiam a seiva e a vida dos homem perecia se, por causa do sábado, a força construtiva do universo deixasse de agir. Mas, de facto, não há qualquer interrupção; durante o sábado, tal como nos seis outros dias, os elementos do universo continuam a cumprir a sua função. Através deles, o Pai trabalha, pois, todo o tempo, actuando através do Filho que nasceu dele e por quem tudo isto é obra sua.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O sectário.

Ainda a propósito da campanha eleitoral, ou sobre as virtudes pedagógicas da poesia, eis um excerto do poema, em cinco partes, intitulado “T. C. (1568-1639)”, da autoria de Hans Magnus Enzensberger. O poema pertence a Mausoléu (Cotovia), cuja versão para português pertence a João Barrento. Eis o excerto, então: "O sectário é cego e surdo./ O seu percurso de vida está de tal modo dependente do acaso que ele pertence necessariamente aos seres vivos mais férteis; por isso, um sectário pode ter numerosa descendência./ A reprodução do sectário dá-se por segregação de membros, ovos, larvas, barbatanas, borbulhas, cápsulas, bolhas, areias./ A cura é sempre difícil porque, quando a cabeça do sectário não é eliminada, nasce rapidamente um corpo."

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Por favor, não percam

O Quarteto, de Heiner Müller, um belo texto que revisita outro belo texto. Chega-nos pela mão da superior inteligência estética de Jorge Silva Melo. Ivo Canelas confirma-se um dos nossos melhores actores contemporâneos. Sobre a peça referiu Silva Melo: "Isto não é uma adaptação do Laclos como é a peça do Christopher Hampton. Em termos musicais eu diria que são variações sobre o tema do Laclos. Ele pega nas personagens do Laclos que define mais ou menos no primeiro ato e depois põe-se a inventar. O próprio Heiner dizia: eu não fui reler a peça Ligações Perigosas, lembrava-me mais ou menos, porque eu gosto é de pegar num texto como os miúdos pegam numa boneca, desmontá-la toda e ver que lá dentro só há serradura e porcaria, e depois pego nisso para fazer o meu texto."

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A minha contribuição para o debate sobre as presidenciais

Hamlet fala com os coveiros (Acto V, cena i), na versão poética de Sophia e a imagem da versão fílmica de Grigori Kozintsev, com Innokenty Smoktunovsky como príncipe da Dinamarca: "Dantes esta caveira tinha língua e sabia cantar. E agora, olha, este patife atirou-a para o chão como se fosse a queixada de Caim, o primeiro assassino! Este crânio, que esse burro agora faz rolar, pode ter sido a cabeça de um político; talvez um daqueles políticos que julgam que têm influência em Deus?"

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

"Entra no quarto mais secreto" (Mateus 6,6)

Ou quando entrar no quarto mais secreto reside no aparente paradoxo de sair ao encontro do Outro. Despertares, epifanias em A Portrait of the Artist as a Young Man, de James Joyce: "He had wandered into a maze of narrow and dirty streets. From the foul lane ways he heard bursts of hoarse riot and wrangling and the drawling of drunken singers. He walked onward, undismayed, wondering whether he had strayed into the quarter of the jews. Women and girls dressed in long vivid gowns traversed the street from house to house. They were leisurely and perfumed. A trembling seized him and his eyes grew dim. The yellow gas flames arose before his troubled vision against the vapoury sky, burning as if before an altar. Before the doors and in the lighted halls groups were gathered arrayed as from some rite. He was in another world: he had awakened from a slumber of centuries."