terça-feira, 1 de abril de 2014
Entre-tanto I
Aqui vos deixo a primeira parte da minha apresentação do livro de José Frazão Correia que teve lugar ontem, ao fim do dia, no Corte Inglês. Espero que gostem, mas, acima de tudo, espero que o meu texto vos motive a ler este belo livro.
Voilà:
"Quando o José me convidou para participar no lançamento do seu livro mais recente, foi sensibilizado e honrado que de imediato aceitei. Com efeito, os seus textos haviam-me tocado de uma forma particular, tendo eu chegado mesmo a fazer algo que o José ignora, ou seja, citá-lo numa palestra minha sobre -, imagine-se, a presença do jazz na poesia modernista de expressão portuguesa. No entanto, passada a surpresa inicial, não pude deixar de reflectir no facto de este ser um livro de Teologia, escrito por um teólogo, e apresentado por um teólogo. Qual seria, portanto, o meu lugar aqui, com o meu perfil de Letras, não pude deixar de me interrogar. Apesar de esta poder ser, tomando um verso que li algures a propósito de um quadro de Edward Hopper, “uma forma de estar em boa companhia”, comecei a sentir algum desconforto. Afinal, não tendo eu o hábito de me pronunciar sobre áreas do saber com as quais não estou intimamente familiarizado, qual poderia ser o meu contributo? O facto de o José ser um homem sensato, de alguma forma me tranquilizou. Haveria, por certo, algo que ele discernia em mim, e que eu não conseguia ainda vislumbrar. Decidi, por isso, esperar pelo dia seguinte, quando o livro chegaria às minhas mãos, para tentar desvendar qual seria o meu contributo. E foi assim que, desde esses instantes iniciais, à medida que o ia descobrindo, ia tentando antecipar o rumo das minhas palavras hoje.
Intimamente, enquanto o lia, ansiava por aquele momento em que ele se revelaria, em que ele me forneceria uma chave, uma resolução mágica. Não pude deixar de pensar no protagonista de The Figure in the Carpet, o conto de Henry James, nutrindo a secreta esperança de que a revelação chegaria ao virar da próxima página. No entanto, porque, para mim, a literatura tem uma dimensão pedagógica, tinha a noção de que semelhante demanda era uma quimera. Na verdade, era o próprio processo de leitura que me perturbava.
A perturbação começara, aliás, com o título, Entre-tanto. Não, Entretanto, mas Entre-tanto. Um hífen cortava a palavra em duas, decompunha-a, para logo a recompor. Evidenciava que o tempo, o instante entre um antes e um depois, coexistia com um lugar, entre-tanto ou no meio de tanto, ou no seio de tanto ou algures no tanto, não necessariamente no centro, talvez nas margens, na fronteira, mas sempre algures no tanto, dentro do tanto.
A velocidade e a voracidade dos tempos que vivemos, com suas abreviações e cifras, impondo-se na linguagem do nosso quotidiano, era pouco compatível com o tempo em que eu me detinha para meditar naquilo que aquela banal conjunção indiciava. No entanto, a pedagogia desta obra, a lição, começava no título. O título indiciava ou anunciava aquele que seria um método de escrita, um método que passava pela reflexão sobre a palavra escolhida, pela sua etimologia, pela sua composição, pelas marcas do tempo que ela encerra. Uma suspensão para a reflexão sobre o evidente, sobre o banal, para redescobrir o mais banal dos signos, as potencialidades de sentido que ele enuncia. Daí os itálicos, a coexistência de segmentos em itálico com tipo de letra normal, os hífens: o entre-ver, o pressentir, o entre-o-tanto. Ao desmembrar a palavra, era um véu que se erguia.
Duas vozes emergiram na minha memória perante este processo. Desde logo, a de Michel Foucault que lembrava ter existido um tempo em que o espaço era necessariamente transitivo, oferecendo-se e solicitando a interpretação do indivíduo; a prosa do mundo predominava, fazendo do sujeito um hermeneuta natural, ou aquilo que um crítico um dia referiu ser um hermeneuta compulsivo, ao evocar a experiência radical dos colonos puritanos no Novo Mundo. Depois, era a voz de Ralph Waldo Emerson que proclamara ser a linguagem poesia fóssil.
Com efeito, José Frazão Correia perturba a tranquilidade do leitor, exigindo que este se assuma, no presente, como hermeneuta que desvenda a prosa do mundo, e como arqueólogo em busca do sentido no tempo. Mas não é apenas isso. Se o fosse, estaríamos perante o domínio da semiologia; uma opção legítima, mas que não se inscreve no horizonte aqui perscrutado. Com efeito, ainda no início do livro, José Frazão cita Giovanni Cesare Pagazzi: “o mundo da carne do Filho não é só a humanidade, mas todas as coisas que viu, sentiu, gostou, tocou, cheirou.” (31) Para logo concluir: “o mundo real com o qual esteve em con-tacto sensível.” Daí a importância que o mais banal signo pode assumir na nossa compreensão do real. Assim se confirma que Walt Whitman, o poeta americano, tinha razão quando, em “Canto de mim mesmo”, proclamara: “Nem uma polegada, nem um fragmento de uma polegada, é impuro” (Whitman 41). José Frazão revê e amplia esta ideia ao escrever: “cada porção de espaço e de cada fragmento de tempo sabe fazer um acontecimento de graça” (87). A recusa da impureza é, com efeito, uma asserção que indicia as tensões teológicas dos Estados Unidos de meados do século XIX, quando o carácter operativo de um puritanismo tardio era questionado. Poeta e teólogo convergem, deste modo, nesta percepção da existência."
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