quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Meditação de Natal

Com as palavras de Edith Stein/Santa Teresa Benedita da Cruz, mártir e co-padroeira da Europa . O tópico é «Mãe de todos os viventes» (Gn 3,20). Vejamos, pois: «Vi a cidade santa, a Nova Jerusalém, que descia do Céu, de junto de Deus, bela como uma esposa que se ataviou para o seu esposo» (Ap 21,2). Tal como Cristo desceu do Céu à Terra, também sua esposa, a Santa Igreja, tem origem no Céu: nasceu da graça de Deus, desceu com o próprio Filho de Deus e está-Lhe indissoluvelmente unida. A Igreja é formada por pedras vivas (1Ped 2,5) e a sua pedra angular (Ef 2,20) foi colocada quando o Verbo de Deus assumiu a natureza humana no seio da Virgem. Nesse instante, estabeleceu-se entre a alma do Filho divino e a alma de sua virginal Mãe o laço da mais íntima de todas as uniões, a que chamamos união nupcial. Oculta ao mundo, a Jerusalém celeste tinha descido à Terra. Desta primeira união nupcial haveriam de nascer todas as pedras que se juntariam à poderosa construção, todas as almas que a graça despertaria para a vida. Deste modo, a Mãe esposa seria a Mãe de todos os redimidos.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Nova sugestão de leitura

Este Insólitas Afinidades - Alteridade em Albert Camus e Paul Bowles, de Fernando Gomes, produto de uma tese de doutoramento defendida há já alguns anos na Universidade de Évora. Sinalizo a postura ética que subjaz ao olhar sobre as obras destes autores.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Depois de ter acabado de ler

Fuck the Polis, lanço-me à leitura de Talvez escute Deus alguns poetas, de Karl-Josef Kuschel, o qual (confesso a ignorância) voz amiga assegura ser um dos mais prestigiados teólogos alemães. O livro, prefaciado por Steffen Dix e posfaciado por Teresa Bartolomei, foi apresentado ontem, ao final da tarde, por uma tríade de luxo: António M. Feijó, vice-reitor da Universidade de Lisboa, Peter Hanenberg e Alexandre Palma, professores, respectivamente, das Faculdades de Ciências Humanas e Teologia. Um final de tarde em cheio, posso assegurar-vos! Cito a partir do site da Pastoral da Cultura um breve excerto em torno da(s) problemática(s) suscitada(s) pela figura de Judas: "Analisando os livros cristãos primitivos, constatamos que a micronarrativa “traição de Judas” produziu quatro interpretações literárias distintas. Em cada versão podemos observar uma abordagem prospetiva a diferentes motivos para algo que parece ser abissal e para o qual não existe uma explicação plausível. A diversidade das narrativas dá a entender precisamente isso, bem como a crescente importância que lhe é atribuída a partir de Marcos, passando por Mateus e até João. Concretamente, porém, o “caso” Judas parece ser para todos um caso evidente. Houve um traidor pertencente ao círculo mais restrito que denunciou e entregou Jesus aos detentores do poder religioso. Esse traidor chama-se Judas. O motivo: a ganância. O carácter: hipócrita. Porque é que ele faz isso? Quais são os seus motivos? O mais tardar a partir de Lucas, os fiéis na comunidade cristã primitiva pensam saber que Judas se encontrava sob a influência de Satanás. Com isso, quaisquer outras explicações ou questionamentos tornam-se supérfluos. Harmonizando as diferentes fontes, obtemos uma imagem global: Judas atraiçoa o Filho de Deus por ganância sob influência satânica. A traição surge como particularmente infame porque Judas pertence ao círculo mais íntimo dos discípulos e porque esteve sentado à mesa com Jesus durante a “última ceia”. Particularmente hipócrita porque, nessa ocasião, Jesus ainda proferiu um aviso inequívoco dirigido ao traidor. “Mas ai daquele por intermédio de quem o filho da Humanidade é traído. Melhor seria para ele se não tivesse nascido esse homem” (Mt 26, 24). Mesmo assim… O beijo, o mais íntimo sinal de confiança entre duas pessoas, é aproveitado como sinal do engano, da dissimulação, da traição ao amigo. Isso irá caracterizar Judas para todo o sempre. Ele e todos os Judas da história. Não é pois de espantar que o fim de um tal homem tenha, forçosamente, de ser terrível. Em todo o caso, Mateus parece particularmente interessado em descrever ao pormenor a morte de Judas. Um caso claro do Bem contra o Mal, de Deus contra Satanás, de que outra forma podíamos interpretá-lo? De facto, durante séculos a interpretação do caso deste Judas oriundo de Iscariotes pareceu concluída. Na história da teologia e da predicação cristã ele torna-se a figura de projeção do ódio a tudo quanto surge como mentira, engano e traição; na verdade, ele torna-se a própria negação do que é cristão, mobilizando o ódio a tudo o que parece conspirar contra o que é cristão, a começar pelos “judeus”. Judas, Jeduha, literalmente “o judeu”, torna-se assim na figura simbólica do povo dos traidores per se, para toda a eternidade responsável pelo assassínio do Cristo. Na figura simbólica para todos os defeitos de carácter atribuídos ao “judeu”: ganância, hipocrisia, mentira, traição… Só no século XX os escritores questionam esta imagem, ousando formular uma leitura nova e diferente da história de Judas. Mas é a própria questionabilidade da história, evidente desde o início, que primeiro irá estimular a sua produtividade literária. Histórias demasiado evidentes são estéreis, as enigmáticas e contraditórias tornam-se literariamente férteis. E o drama Jesus-Judas não para de produzir interrogações e perplexidades. Será assim tão evidente, a história de Judas que a primitiva comunidade cristã nos lega? Ou não estará cheia de incoerências e contradições em relação a outros textos do mesmo Novo Testamento? Traição e enforcamento sabendo Jesus de tudo será isso compatível com a mensagem do Sermão da Montanha, do amor aos inimigos? Tendo constituído a ceia de despedida uma derradeira celebração do amor “em sua memória”, será possível que um dos companheiros de percurso mais íntimos possa cometer o seu ato vergonhoso, estando ele consciente de tudo? E os motivos de Judas, o seu carácter? Será plausível aquilo que nos é transmitido? Ter-nos-á sido transmitido tudo? Talvez tudo se tenha passado de uma forma completamente diferente. Poderá Judas ter atuado por outros motivos, que não esses, tão infames? E o aspeto metafísico? Se o Demónio está em jogo não é lançada também a questão da teodiceia? Ela teria de arder como uma ferida: porque é que Deus-Pai, na Sua justiça, permite que o seu Filho seja vítima da traição, da mentira, do engano? Finalmente, será possível transformar Judas de uma forma tão cruel no filho de Satanás, condenando-o ao inferno, sem interpelar Deus, o Justo? Consequência: as narrativas do Novo Testamento libertam agora, já não a nível interno, eclesiástico, mas externo, não cristão, uma nova dinâmica, capaz de produzir literatura. Aponto para dois exemplos: Walter Jens e Amos Oz." E agora, tendo cumprido a obrigação de partilhar convosco esta descoberta, fico por aqui, pois tenho este livro aqui ao lado a olhar para mim...

Ainda a subjectividade das ressonâncias

Recordou-me uma das vozes mais próximas de mim que Fuck the Polis, título do mais recente livro de poemas de João Miguel Fernandes Jorge, evoca Fuck Tha Police, do álbum (ainda se lhes chama assim?) de 1988 Straight Outta Compton, dos NWA. Eu devo confessar que, ao lê-lo, recordei outros versos, os de Kavafis, a melancolia dos seus encontros com a História, com os efémeros detalhes do quotidiano... e a inteligência das emoções... Vogando pela casa dos setenta, Fernandes Jorge não deixa de (me) surpreender. Uma sugestão de prenda de Natal, portanto. A começar pela oferta a si próprio.

Li Orígenes e lembrei-me daqueles versos de Emily Dickinson:

"ONE need not be a chamber to be haunted,/One need not be a house;/The brain has corridors surpassing/Material place." Agora vejam o que escreveu, há algum tempo (só quase dois mil anos...), Orígenes (c. 185-253), presbítero, teólogo, no nº 5 de Homilias sobre Josué:"Olhas em teu redor, para veres que caminho tomar, que campo de batalha escolher? Vais certamente espantar-te com as minhas palavras, que no entanto são verdadeiras: limita a procura a ti mesmo. É em ti que se encontra o combate que deves travar, é no teu interior que está o edifício do mal e do pecado que é necessário destruir; o teu inimigo está no fundo do teu coração. Não sou eu que o digo, é Cristo; escuta-O: «Do coração procedem os maus pensamentos, os assassínios, os adultérios, as prostituições, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfémias» (Mt 15,19). Tens noção do poder deste exército inimigo, que avança contra ti do fundo do teu coração? Pois esses são os teus verdadeiros inimigos."

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Recordando o aniversário

Este ano, pela primeira vez, passei o meu aniversário fora do país. Quis a ironia do destino que o celebrasse em Istambul/Constantinopla/ Bizâncio... alcançando a mesma idade com que Yeats escreveu estes versos do famoso "Sailing to Byzantium": That is no country for old men. The young/ In one another's arms, birds in the trees,/ —Those dying generations—at their song,/ The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,/ Fish, flesh, or fowl, commend all summer long/ Whatever is begotten, born, and dies./ Caught in that sensual music all neglect/ Monuments of unageing intellect.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

GREGUERÍAS

Seu autor é Ramón Gómez de la Serna. Eis alguns exemplo: A) Los que matan a una mujer y después se suicidan debían variar el sistema: suicidarse antes y matarla después. B) La muerte es hereditaria. C) Un donuts es un planeta al que aún no le han encontrado el núcleo. D) A un mentiroso sólo lo cura un sordo. De Serna que viveu no Estoril, será publicado, no próximo ano, o volume Cartas de Portugal, com o apoio da Cátedra Cascais Interartes/Fundação D. Luís I. Aqui vos deixo o alerta.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Sugestão quando o final da semana se aproxima

Recorda a semana que passou e interroga-te sobre os lugares por onde andou o teu coração.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Quando puderem, aqui fica a sugestão

Vejam: A Great Pictured Song: Hugh Lane and the Ireland of his Time Eis a descrição que me chegou feita pelos amigos do CEAUL, a quem devo a oportunidade de ter visto o filme e de ter conhecido e conversado com o realizador, Thaddeus O'Sullivan: At the opening of the twentieth century, the city of Dublin became the epicentre of cultural energy- notably in terms of drama and poetry, with the foundation of the Abbey Theatre, the plays of J. M. Synge and Augusta Gregory, and the poetry of W. B. Yeats. This cultural ‘Revival’ was accompanied by shifts of political allegiance which would eventually, after the outbreak of World War I, see the rise of separatist nationalism, the decline of the more moderate ‘Home Rule’ movement, and finally an armed revolution against British rule. In the early 1900s, however, there was a general expectation that self-government would come by constitutional means, and Dublin would be the capital of an autonomous Ireland. For Lady Gregory, Yeats and other cultural ‘power-brokers’, this required the acquisition of cultural capital; and Gregory’s nephew, an art dealer and philanthropist called Hugh Lane, became the driving force in the effort to create a gallery of modern art in the city. This opened in temporary accommodation in 1908, and contained the nucleus of an astonishing collection of modern French paintings by Manet, Renoir, Monet, Daumier, Vuillard, Degas and others. But the campaign to build a permanent gallery to house the collection became intensely controversial, and was still uncertain when Lane was drowned on the Lusitania in 1915. While his intention to leave his modern art collection to Dublin was clear, due to a legal quirk the paintings were claimed by the National Gallery in London- inaugurating a contentious situation which is still only partly resolved today. The story of Lane and his paintings intersects with fascinating issues in the history of Irish nationalism, cultural politics and Anglo-Irish relations.

A importância dos amigos

Não é preciso - embora não haja mal algum nisso, antes uma plácida virtude! - o Jordan Peterson lembrar-nos quão importantes os amigos são para nós. Mão amiga, desta feita o Fernando Guerreiro, fez-me chegar este Iluminuras, de Theodore Fraenckel. Eis uns versos, colhidos no seio do poema "Lendo Petrarca": "Todos/ os mortos têm uma segunda/ vinda (pensou): pela poesia,/ manto que os devolve à luz/ numa carne que os torna -/ para quem neles mais acreditou -/ ainda mais puros e vivos."

Atenção

O número mais recente do TLS contém a habitual opinião de algumas dezenas de escritores obre "os livros do ano". A pesquisar para quem esteja interessado no solo anglo-saxónico, e não só. Eu, pela parte que me toca, já descobri dois ou três livros que me podem interessar. Boas leituras!

Um romance sobre a guerra colonial

Não será, por certo, uma obra acaba de sair. No entanto, só agora, pela mão amiga do general António de Jesus Bispo, pude ler este romance de Luís Rosa, que dá pelo nome Memória dos dias sem fim (Presença). A crueza dos tempos de guerra quando o Homem se desvenda e se reconhece nas suas dimensões mais negras (afinal, já o Freud a isso dedicou o célebre Civilization and its Discontents), emerge ao longo destas páginas num escrita que nos impele para esse espaço de radical alteridade - para mim, pelo menos - que é o dos remotos espaços da Guiné. A intensidade é quase excessiva, não participasse ela da realidade da guerra, em capítulos como "Memória da Insensatez", quando assistimos à abertura de uma cova por parte do suspeito informador e à sua execução. Outros momentos há em que um decepcionante sentido de humor prevalece. E outros ainda em que figuras por nós conhecidas, como a do general Garcia Leandro, com o qual tive o privilégio de privar em contextos muito mais regulados - ainda que selvagens, também, como o pode ser um conselho geral de um universidade -, emerge sob o signo da heroicidade. Recomendo, portanto.

Sugestão de leitura

Maria Irene Ramalho publicou há alguns anos, nos Estados Unidos, uma obra intitulada Atlantic Poets, na qual desenvolve uma abordagem de poetas canónicos - dos dois lados do Atlêntico - no âmbito de uma rede de conexões que se situam além das meras e evidentes continuidades amiúde enunciadas. Desta forma, Pessoa & Companhia são desvendados através de uma estratégia hermenêutica que se pode inscrever nesse impulso analítico que tem vindo a ser designado transnacionalidade, e que, sob o signo da urbanidade, assim revela um fascinante solo de afinidades, não só entre Pessoa e Whitman, mas também entre Pessoa e Crane. Ainda que fundamental para quem pretenda estudar o nosso Modernismo ( e não só), há muito que este livro não está acessível. Em boa hora, contudo, as Edições Afrontamento publicaram uma tradução sua, Poetas do Atlântico, Fernando Pessoa e o modernismo anglo-americano. A ler, portanto, em particular quando, sob a designação de estudos atlânticos, tanta espuma vagueia por aí.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A Bíblia, as fake news, e o discernimento

O discernimento é um conceito caro aos jesuítas que amiúde surge nas intervenções do Papa Francisco. A propósito do tema das "fake news", a revista Civiltà Cattolica dedica um artigo na sua edição mais recente, cujo resumo transcrevo. Afinal, também face às "fake news" se exige uma atitude pautada pelo discernimento, mas isso é algo que apenas a cada um de nós pertence. Vejamos: La Rete offre la possibilità di accedere a una mole di informa­zioni impensabile fino a qualche decennio fa. Un utente può trovarsi disorientato davanti a una simile quantità di notizie e di dati che corrispondono a molteplici punti di vista, ciascuno dei quali vuole imporsi come verità. In questo marasma, la notizia che fa più rumore e le opinioni che hanno più consenso e più like sono date per vere. In un tale ginepraio, come è possibile discernere in modo autentico il vero dal falso ed evitare la manipolazione della coscienza? Il Pontefice ha dedicato al fenomeno delle «false notizie» (le cosiddette fake news) il suo Messaggio per la 52a Giornata mondiale delle comunicazioni so­ciali. Non si tratta di un fenomeno recente: persino il racconto biblico mette in guardia dal grande pericolo rappresentato da verità distorte e da informazioni false e contraffatte. La Scrittura e il modello di narrazione biblica istruiscono il lettore su come soppesare i differenti punti di vista e il loro grado di affidabilità, discernendo le parole che danno vita dalle menzogne che conducono alla morte. Chi legge con attenzione è in grado di riconoscere nel racconto il gioco dei punti di vista contrapposti, affidandosi a un narratore – onnisciente e attendibile – e alla voce e alla promessa di Dio. Emblematiche le narrazioni di Genesi 2-3 e di Numeri 13-14. Nel Genesi, il serpente costruisce l’immagine falsa di un Dio despota e arbitrario, nemico dell’uomo e della donna, instillando il dubbio e il sospetto sulla bontà della sua parola e dei suoi doni. In Numeri, il popolo di Israele, giunto alle soglie della terra promessa da Dio, si fa influenzare dalle parole e dalla paura trasmessa dagli esploratori, dà credibilità alle loro menzogne e si arresta e, anzi, vuol tornare indietro. Il parere della maggioranza dei capi e dei principi prevale sulla voce isolata di Caleb e sulla stessa promessa di Dio. La menzogna conduce alla paura, e la paura porta sulla soglia della violenza, finché l’intervento di Dio pone un argine alla follia del popolo. Così l’ingresso in Canaan sarà rinviato alla gene­razione successiva. Si può dire che un discorso, quanto più è persuasivo e convin­cente, tanto più è degno di fede? La parola più forte e altisonante è anche quella più affidabile? Un’opinione sostenuta dalla maggio­ranza è automaticamente vera? I racconti di Genesi e Numeri mostrano come la distorsione della verità ponga al lettore un problema di discernimento: con quale parola stringere alleanza? Quale parola è vera e conduce alla vita?

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Soube há algum tempo

que um amigo da adolescência, com quem partilhara boa parte da década dos vinte(s), tinha falecido. Há mais de trinta anos que não o via. E foi uma estranha sensação de vazio. Encontrei, então, estas palavras de Karl Rahner que me ajudaram a reposicionar-me face a estas inevitabilidades: When I look back in this way, I see my life as a long highway filled by a column of marching men. Every moment someone breaks out of the line and goes off silently, without a word or wave of farewell, to be swiftly enwrapped in the darkness of the night stretching out on both sides of the road. The number of marchers gets steadily smaller and smaller, for the new coming up to fill the ranks are really not marching in my column at all. Onde é que eu divirjo de Rahner? Para mim, estes que acabam de entrar fazem mesmo parte da minha marcha e daquilo que eu sou hoje.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Excerto de um texto meu sobre Naipaul publicado no JL

Será nesse espaço entre – nesse in betweeness – , lugar e instante de porosidade que, como sustenta Desmond, habitamos e que somos, que será possível reconhecer as inúmeras convocações existenciais, estéticas e prosódicas predominantes em obras de Naipaul que se impõem na nossa memória. Destaco duas, às quais amiúde regresso pelo profundo impacto que em mim tiveram: A House for Mr. Biwas e The Enigma of Arrival. Quem tenta confinar A House for Mr. Biwas a uma representação marcada pelo preconceito, e assim a balcanizar sob o argumento de uma qualquer superioridade moral, ignora quão devedor este romance é de uma tradição pícara que Naipaul conheceu através de Lazarillo de Tormes, obra que, ele próprio, traduziu; de uma escrita pícara com a qual, nas suas modalidades inglesas, terá contactado através da sua educação numa instituição que, longe do centro do império, havia sido inspirada no aparato formal da escola pública. É nesse espaço de tensão entre comédia e tragédia que a narrativa de transformação de Mr. Biwas ocorre; de transformação do escravo em homem livre, de um homem que tenta construir a sua identidade num lugar que lhe é estranho. Como se pode ignorar a reificação do espaço através da dimensão visual que subjaz a A House for Mr. Biswas, em que, como um crítico assinalou, a cada parágrafo corresponde um quadro, em que cada frase envia para ou designa um signo visual - retratos, imagens, estatuetas? A viagem adquire uma dimensão peculiar em The Enigma of Arrival, obra também ela situada num lugar entre, visto haver sido inscrito na categoria romance, embora nela não se enquadrando plenamente. Não seria mais rigoroso entendê-la como uma autobiografia poética? Não ecoará na estética de The Enigma of Arrival, Richard Jefferies, escritor oitocentista admirado por Naipaul, e que, segundo este, usava a ficção para escrever ensaios breves? Uma vez mais quem pretender reduzir esta obra a um olhar idílico do ethos rural figurado na casa de Wiltshire, numa eventual reminiscência de Thomas Hardy, ignora as virtualidades especulativas da emoção culta - como lhe chamou um dia Jorge de Sena - devedora da écfrase. Na verdade, à semelhança do quadro de De Chirico que empresta o título à obra e que tão difícil é de descrever, pois, segundo Naipaul, nele nada é estritamente real, também aqui tudo persiste num solo de porosidade. E se as figuras lembram o clássico, assim os meus pensamentos vão para o mundo clássico (Naipaul). Este é, portanto, o mundo da ficção, o mundo que ele conhecera através da escrita; talvez houvesse um elemento de sonho – mas quando se chega ao cais, barco algum se insinua, o que, reconheça-se, é assustador. E assim se esclarece que o espaço de acolhimento – o mundo rural eventualmente idílico -, afinal, não o é de uma forma eufórica. Mais um argumento da escola do ressentimento que se desvanece. Curiosamente, é também através deste herdeiro de Joseph Conrad e Henry James, dois outros escritores que, não sendo ingleses, assumiram Inglaterra como sua, que a Grande Tradição presiste.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Um filme sobre a velhice?

Sim, pois Lucky é um olhar terno sobre a decadência do corpo e também sobre o mistério que a envolve: por que razão se colapsa quando tudo no corpo parece estar numa fluida sintonia? Porque se fixou o olhar numa imagem intermitente que nos envia para o imaginário de Twin Peaks? Aliás, ao longo do filme são várias as citações de homenagem a Twin Peaks, da luminosidade, a certos fragmentos cénicos, ao telefone vermelho e à misteriosa personagem cuja voz persiste no silêncio, aos equívocos (ambiguidade) da linguagem e dos encontros entre personagens- "You're nothing", que melhor e mais lúcida saudação do que esta?-, à óbvia presença de David Lynch. Talvez, mais do que a tudo isso, seja este filme uma homenagem a Harry Dean Stanton. Já o (re)vi várias vezes e vou continuar a (re)vê-lo... obsessivamente.

Uma leitura do "Cântico dos Cânticos"

Elas são inúmeras, divergentes, contraditórias (saudavelmente contraditórias, diria), estendendo-se ao longo dos tempos. Talvez hoje nos confinemos a uma vertente apenas, tomando-a como a leitura; mas é na pluralidade dos olhares que se faz a riqueza desta tradição em que nos movemos, uma tradição que, afinal, deve a sua riqueza à coexistência da pluralidade. Para melhor conhecermos, então, este prisma de olhares, recuemos ao século XII e às palavras de São Bernardo, monge cisterciense. Proponho-lhe que o leia, tomando como cenário um outro olhar, o de Marc Chagall: «Beija-me com ósculos da tua boca» (Cant 1,2). Quem fala assim? A esposa [do Cântico dos cânticos]. E quem é esta esposa? É a alma associada a Deus. E a quem fala ela? Ao seu Deus. [...] Não seria possível encontrar palavras mais doces para exprimir a ternura recíproca de Deus e da alma que estas do Esposo e da esposa. Tudo lhes é comum, não possuem nada próprio nem à parte. Única é a sua herança, única a sua mesa, única a sua casa, única até a carne que em conjunto constituem (Gn 2, 24). [...] Se a palavra «amar» convém especialmente e em primeiro lugar aos esposos, é compreensível que se dê o nome de esposa à alma que ama a Deus. A prova de que ela ama é que pede a Deus um beijo. Não deseja a liberdade, nem uma recompensa, nem uma herança, nem mesmo um ensinamento, mas um beijo, ao jeito de uma esposa casta, elevada por um santo amor e incapaz de esconder a chama que lhe arde dentro. [...] Sim, o seu amor é casto, pois ela deseja apenas Aquele que ama, e não alguma coisa que Lhe pertença. O seu amor é santo, porque ela não ama com um desejo pesado da carne, mas com pureza do espírito. O seu amor é ardente, pois, inebriada por este mesmo amor, esquece a grandeza de quem ama. Não é Ele, com efeito, que com um olhar faz tremer a Terra? (Sl 103,32). E é a este que ela pede um beijo? Não estará embriagada? Sim, está embriagada de amor pelo seu Deus. [...] Que força, a do amor! Que confiança e que liberdade no Espírito! Não há maneira mais clara de manifestar que «o amor perfeito afasta o temor» (1Jo 4, 18).

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Lembram-se de "As asas do desejo"?

E daqueles versos de Peter Handke, Als das Kind Kind war? Eis o contexto remoto no qual a ressonância desses versos radica. É ele o da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 12,31.13,1-13: Irmãos: Aspirai com ardor aos dons espirituais mais elevados. Vou mostrar-vos um caminho de perfeição que ultrapassa tudo: Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos. se não tiver caridade, sou como bronze que ressoa ou como címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu possua a plenitude da fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou. Ainda que distribua todos os meus bens aos famintos e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita. A caridade é paciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente, não procura o próprio interesse; não se irrita, não guarda ressentimento; não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O dom da profecia acabará, o dom das línguas há de cessar, a ciência desaparecerá; mas a caridade não acaba nunca. De maneira imperfeita conhecemos, de maneira imperfeita profetizamos. Mas quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. Quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança e pensava como criança. Mas quando me fiz homem, deixei o que era infantil. Agora vemos como num espelho e de maneira confusa, depois, veremos face a face. Agora, conheço de maneira imperfeita; depois, conhecerei como sou conhecido. Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Questões de identidade

Em Pat Garrett and Billy the Kid, de Sam Peckinpah, perante a pergunta: Who are you?, a personagem assumida por Bob Dylan responde: That's a very interesting question. Afinal, não passamos nós todas as nossas vidas à procura de uma resposta para esta pergunta?

Balanço no final de um semestre

"I must be eternally grateful that, in my life, profession and devotion are completely identical - there is no distinction between what I do out of duty and what I do out of love." Encounters with silence, Karl Rahner

terça-feira, 10 de julho de 2018

Dois instantes

da apresentação da minha tradução de poesia e prosa de Hopkins, na Capela do Rato, com dois amigos, a irmã Eliete, das Paulinas, e o Padre Tolentino.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Manuel Teixeira Gomes,

aos sessenta e cinco anos, após vinte e seis meses passados na presidência da República, diz: Basta! Estou farto. Qual é o primeiro barco a sair de Lisboa? Não é daqui a um mês, é já. Zeus? É um cargueiro? Não me importa, hão-de levar-me. Não me interessa para onde vão. Parto sem um papel, nada que me lembre a minha vida de escritor ou Presidente. E assim chega à Argélia onde virá a morrer em 1941. Foi sobre ele que o meu antigo professor Urbano Tavares Rodrigues decidiu escrever a sua tese de doutoramento.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Lançamento

Na próxima quarta-feira, dia 4 de Julho, pelas 18.30h, decorre na Capela do Rato a sessão de lançamento da minha tradução de Poesia e Prosa Escolhidas, de Gerard Manley Hopkins, um poeta jesuíta da segunda metade do século XIX, por alguns considerado o vulto maior da poesia vitoriana e um precursor das inovações prosódicas modernistas. José Tolentino Mendonça apresenta e eu darei umas achegas. Não percam!

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Conferência da John Dos Passos Society

Decorreu em Lisboa, na Sociedade de Geografia, entre 20 e 22 de Junho. Para além de uma atmosfera de alegria na partilha de descobertas e pontos de vista, fica a certeza de que existem novos percursos na aproximação à obra multifacetada de um escritor que devemos redescobrir. Nesta foto, Aaron, com quem partilhei a organização da Conferência, Eulália, autora de uma bela tradução para espanhol de poemas de Dos Passos, John, neto do escritor, Lucy, a filha , que nos deixou momentos particularmente intensos das suas memórias, Rosa, nova presidente da Sociedade, e Miguel, sempre disponível para participar.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Acabou de sair

A minha poesia reunida - os livros antes editados, e um inédito.

Convite

terça-feira, 24 de abril de 2018

Finalmente à venda

Na próxima quinta-feira, pelas 18.30h, em Évora, durante o Encontro Nacional da APEAA, Antonio Sáez-Delgado apresenta. A 14 de Maio, pelas 18.30h, em Lisboa, na Imprensa Nacional, apresenta Isabel Pires de Lima.

Sugestão de leitura

Para quem esteja interessado em reflectir, com seriedade, rigor e densidade, sobre os tempos que correm, e a identidade europeia, em particular, aqui vos deixo a sugestão de leitura de um texto que não se deve ignorar,Radix, Matrix - Community Belonging and the Ecclesial Form of Universalistic Communitarism, de Teresa Bartolomei.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Atenção, Americanistas!

Nestes versos do Uncle Bob, é o Manifest Destiny que ecoa, não é verdade? "Oh the history books tell it/ They tell it so well/ The cavalries charged/ The Indians fell/ The cavalries charged/ The Indians died/ Oh the country was young/ With God on its side." Mas é preciso ler o resto para percepcionar o debunking.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Evangelho segundo Lucas

revisitado pelo grande Dante Gabriel Rossetti em "Ecce Ancilla Domini!".
A sua irmã Christina, inspirou a sua figuração de Maria, e o seu irmão William Michael, a do anjo Gabriel. De notar o modo como ele representa a perturbação de Maria. Eis o passo de Lucas: "Naquele tempo, o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma Virgem desposada com um homem chamado José, que era descendente de David. O nome da Virgem era Maria. Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo». Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria aquela."

(Turner) Um apontamento

de Andrew Graham-Dixon a propósito das aguarelas feitas por Turner aquando da sua estadia na mansão do patrono das artes George O'Brien Wyndham em Petworth: "The watercolours he painted during hi several visits to Petworth amount to a diary of the house. They are full of enigmatic details which, filtered through Turner, combine the mundane with the phantasmal. An unmade bed, no one in it, becomes a scarlet apparition of sensuality, sexiness transmuted into sheer, heavy color. Billiard players [primeira imagem] loom as black and strange silhouettes out of a sunburst of light and color. To look through Turner's painted journal is to see him suddenly and marvelously accelerate towards the brilliance of his maturity. (...) Many of his Petworth works are watercolours, and this marks the moment when he realized that the watercolour was central to his art, not a peripheral, minor form of as it was generally regarded at the time. He began to import the effects of watercolour into oil painting, a process which reached its first fluid climax in a large oil painting called Interior at Petworth [segunda imagem]." (Andrew Graham-Dixon, A History of British Art)

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Uma leitura algo ousada

A instalação - chamemos-lhe assim - intitulada An Oak Tree, de Craig-Martin, exposta na Tate Modern, é acompanhada da seguinte "explicação". Leiam e vejam se concordam: "An Oak Tree is based on the concept of transubstantiation, the notion central to the Catholic faith in which it is believed that bread and wine are converted into the body and blood of Christ while retaining their appearances of bread and wine. The ability to believe that an object is something other than its physical appearance indicates requires a transformative vision." Refere Gordon Graham que An Oak Tree foi enviada, devidamente acondicionada, para a Austrália de modo a integrar uma exposição. No entanto, o Ministério da Agricultura impediu a sua entrada ao abrigo da protecção de espécimens botânicos. Os curadores argumentaram que não se tratava propriamente de uma árvore. Ora, católico algum utilizaria argumento idêntico a propósito de uma Hóstia.

O historicismo de Kandinsky

na esteira de Hegel, com umas ressonâncias do nosso amigo Ralph Waldo Emerson: Every work of art is a child of its time ... It follows that each period of culture produces an art of its own, which cannot be repeated. Effort to revive the art principles of the past at best produce works of art that resemble a stillborn child. For example, it is impossible for us to live and feel as did the ancient Greeks. For this reason those who follow Greek principles in sculpture reach only a similarity of form, while the work remains for all time without a soul.

'Lovers on a park bench' uit 'Einstein on the beach'

A propósito do subtil tópico

dos limites do olhar de quem concebe um retrato, esclarece Collingwood: A portrait ... is a work of representation. What the patron demands is a good likeness; and that is what the painter aims at, and successfully, if he is a competent painter, at producing. It is not a difficult thing to do; and we may reasonably assume that in portraits by great painters such as Raphael, Titian, Velasquez, or Rembrandt it has been done. But, however reasonable the assumption may be, it is an assumption and nothing more. The sitters are dead and gone, and we cannot check the likeness for ourselves. If, therefore, the only kind of merit a portrait could have were its likeness to the sitter, we could not possibly distinguish, except where the sitter is still alive and unchanged, between a good portrait and a bad.

Como nos vai lembrando o nosso quotidiano

Alexander Pope tinha razão quando afirmava: People who know a little about a subject are often strongly inclined to believe themselves to be expert. Vejam ainda, nesta linha, estes versos seus: A little learning is a dang'rous thing;/ Drink deep, or taste not the Pierian spring:/ There shallow draughts intoxicate the brain,/ And drinking largely sobers us again.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Hoje à noite

no Centro Cultural de Cascais, o dia da poesia é assinalado com a leitura de poemas de Carlos de Oliveira feita por Susana Borges. Aqui fica um dos seus poemas que muito me tocou na juventude; seu título é "Bolor": "Os versos/ que te digam/ a pobreza que somos,/ o bolor nas paredes/ deste quarto deserto,/ o orvalho da amargura/ na flor/ de cada sonho/ e o leito desmanchado/ o peito aberto/ a que chamaste/ amor."

terça-feira, 20 de março de 2018

Refere Filoxeno de Mabug (?-c. 523)

bispo da Síria, num Carta sobre a vida monástica: Aprende e vê, meu irmão [...], que há no deserto muitas serpentes que mordem a multidão dos teus pensamentos, e que são: injúrias, difamações, angústias, murmúrios, disputas, calúnias que são lançadas contra ti. E talvez no princípio esteja a... inveja.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Ruy Belo: Aventura espiritual intensa

Importa tomar Ruy Belo (27.2.1933-8.8.1978) como um dos escritores espirituais do séc. XX português. E sem pretender contornar as veementes e sucessivas afirmações do poeta, que nos orientariam num sentido diferente. Por exemplo, em 1970, no prefácio a “Homem de palavra(s)”: «O clima do livro já não é o da fé, aliás perdida» ou, em 1972, na reedição de “Aquele grande rio Eufrates”: «todo este livro foi escrito num clima a que não só já não tenho acesso hoje em dia como espero não o voltar a ter». Só que o novo “clima” em que o poeta se move, no começo da década de setenta, é de resistência àquilo que o catolicismo, na sua opinião, simbolizava enquanto servidor do ordenamento político e cultural vigente. Talvez fosse agora tempo de começar a olhar esta poética naquilo que ela também é: aventura espiritual intensa como poucas, colóquio interior, despojado mesmo quando a voz tinha a energia sagrada das falas ininterruptas, ponte estendida no território de chamas que é essa quase circularidade entre presença e silêncio, entre dúvida e crença, dialética que aproxima a aridez trágica da passagem do tempo desse «no sé qué», de que João da Cruz falava e que nos romances de Bernanos e Graham Green, que Ruy Belo leu, recebia o nome de Graça. Um dos seus poemas, “Nós os vencidos do catolicismo”, deu o nome a uma geração que, tendo-se distinguido por um grande empenhamento eclesial, se afastou em desilusão e rutura. Vale a pena, à distância de alguns anos, tornar a esse poema surpreendente: «Nós os vencidos do catolicismo que não sabemos já donde a luz mana haurimos o perdido misticismo nos acordes dos carmina burana Nós que perdemos na luta da fé não é que no mais fundo não creiamos mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos Já nenhum garizim nos chega agora depois de ouvir como a samaritana que em espírito e verdade é que se adora Deixem-me ouvir os carmina burana Nesta vida é que nós acreditamos e no homem que dizem que criaste se temos o que temos o jogamos ”Meu deus meu deus porque me abandonaste?”» O primeiro verso retoma a formulação, também ela geracional, «vencidos da vida», numa equivalência que sublinha a importância da experiência aqui em jogo. Experiência descrita como derrota e perda. De um saber («não sabemos já»); de uma condição («o perdido misticismo», «perdemos na luta da fé»); de uma estruturante certeza («não lutamos já firmes», «duvidamos»). Como se diz, a crença não deixou de existir, mas recuou para o território íntimo, «mais fundo», pois «nenhum garizim nos chega agora». Pelo poema irrompe, inesperado, o capítulo quarto do Evangelho segundo João. Aí Jesus, na ausência dos discípulos, dialoga com uma mulher samaritana, transgredindo o código judeu de conduta. À samaritana, Jesus anuncia que não é no Templo de Jerusalém ou no Santuário samaritano do Monte Garizim que se deve adorar a Deus: «os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade». Ora, esta irrupção evangélica, é tanto mais espantosa quanto ela conta a construção da fé, em Jesus, não a sua perda, por parte de um sujeito social e religiosamente incorreto (a mulher samaritana). Outra referência são os «carmina burana», a monumental coleção de líricas e cantos medievais, de origem vária, que deve o seu nome à Abadia Beneditina de Beuron (Alemanha). Este repositório responde ao gosto do “vagare”, próprio dos estudantes, laicos ou eclesiásticos, dos “studia” conventuais. É uma mistura fascinante de cristianismo e paganismo, de espírito e matéria, de finura e vulgaridade, de filosofia e puro passional. Lado a lado, convivem o canto gregoriano, a melodia trovadoresca e a sátira popular. Alvo do burlesco, porém, não é a experiência espiritual autêntica, mas os fingimentos, as falsas contrições, a mera representação da devoção ou da virtude. Os “carmina burana” não são, afinal, figuras de substituição do «perdido misticismo», mas de purificação pelo abalo que o seu riso traz a uma religiosidade institucional, socialmente instalada, donde a aventura interior está ausente. Estamos, de novo, à procura do espírito e da verdade. E a parte final do poema, guarda-nos a maior surpresa. O poema que até aqui parecia apenas uma declaração, revela ter um destinatário. O mesmo do Salmo 22, que Jesus grita na hora da cruz: o próprio Deus, aqui invocado repetidamente, «meu deus, meu deus». E aludindo ao «abandono» de Deus, o poeta faz a composição transfigurar-se, pois o que parecia ser uma perda do sujeito é agora atribuído a esse escândalo teológico, por excelência, que é o silêncio de Deus. José Tolentino Mendonça [à semelhança de textos anteriores, partilho do site da Pastoral da Cultura]

Este mundo não é a conclusão

«Este mundo não é a conclusão./ Há um seguimento para além -/ invisível, como a música -/ mas forte, como o som -/ acena, e por isso escapa -/ a filosofia ignora-o -/ é a intuição -/ que deve finalmente penetrar o enigma.» Deixou-nos 1775 poesias de extraordinária intensidade e fragrância. É Emily Dickinson, uma das poetisas que mais admiro, nascida em 1830 numa cidadezinha do Massachusetts: lá vive quase sempre, num cenário intacto de céus luminosos e florestas silenciosas, e lá morre, em 1856. Dela escolhi alguns versos sobre a morte, um tema “forte” que mereceria algum espaço durante estes dias quaresmais de reflexão. A sua fé era íntima, profunda e lacerante. Com efeito, escrevia: «É muito mais grave perder a fé/ que um património -/ porque este pode ser renovado,/ a fé não». Emily olha para além do horizonte da morte, esse «seguimento» da vida semelhante a uma música que aprecias, sentes viva e palpitante, mas que também te escapa. A filosofia, por si só, apesar do esforço de titãs do pensamento como Platão, não consegue dar-te evidências definitivas. É a «intuição» da fé que consegue resolver o enigma. Dickinson vai mais longe e confia-se a Cristo: «Eu vos digo - assim disse Jesus -/ que existe aqui na Terra uma espécie/ que não conhecerá o gosto da morte -/ se Jesus disse a verdade/ não preciso de outras garantias -/ porque a afirmação do Senhor/ não se pode contradizer./ Disse-me Ele que a morte estava morta». Um desafio árduo e corajoso que nos faz avançar dia após dia no caminho da vida, agarrados ao fio da esperança, até ao momento em que Cristo dirá, a nós e à “pequena” Emily: «Sabei que o mais pequeno/ é reputado o maior no céu./ Habita a minha casa!». P. (Card.) Gianfranco Ravasi In Avvenire Trad.: SNPC

Entre filosofia e teologia, o desafio da alteridade

Na história do pensamento ocidental, teologia e filosofia coexistem tão profundamente que se podem descrever como «inseparáveis, nunca unidos». Para mais, elas descobrem uma nova solidariedade perante os desafios do nosso tempo. O que torna hoje filósofos e teólogos particularmente próximos é a experiência de uma pobreza comum diante da perceção difusa na cultura contemporânea de uma radical ausência de pátria, da ausência de um horizonte partilhado em relação ao qual se concebe o etos [conjunto de costumes e práticas de um povo], não só como práticas e costumes, mas também como enraizamento e morada, fundamento do viver, agir e morrer humanos. Este sentido de adeus, esta fragilidade e fraqueza, são o lugar em que filósofos e teólogos já não se podem confrontar ou combater-se movidos por certezas fáceis, quase como se cada qual possuísse o bastão da verdade com o qual julga o outro. A lâmina da dor do tempo, o desafio deste elusivo estado líquido (cf. Zygmunt Bauman), que tudo parece pervadir, não pode deixar de nos interrogar sobre a mutação epocal que estamos a viver. Teologia e filosofia mais pobres, menos ideológicas, são precisamente por isso mais abertas à procura, e assim acomunadas na experiência e na necessidade de pensar, ambas, na alteridade que as causa, tal como a modernidade as tinha provocado com a sua ambição de compreender a totalidade do real no exercício da razão adulta e emancipada. O desafio da alteridade parece oferecer-se, sobretudo, em três formas, como o lugar onde filósofos e teólogos podem hoje encontrar-se: o maravilhamento, a agonia e a ética. No primeiro a alteridade apresenta-se de maneira pura e forte: ela nasce do impacto com o Outro, com a sua presença indedutível e não programável, com a sua ausência inquietante. O maravilhamento, que é ao mesmo tempo assombro e temor, é, como observa Platão, a paixão do filósofo, mas é também – como sublinha Karl Barth na sua “Introdução à teologia evangélica” – a condição do teólogo. O maravilhamento nasce do saber de não se possuir o Outro a partir de um pensamento, que sabe ser por natureza transcendente em relação ao Outro: «Denken heißt überschreiten», afirmava com razão Ernst Bloch, pensar é transgredir, não se deter na tranquila posse, mas deixar-se alcançar e provocar pelo novo e pelo diferente. Escrevia Friedrich W.J. Schelling: «É uma sentença conhecida de Platão: a paixão do filósofo é o maravilhamento. Se essa sentença é verdadeira e profunda, então a filosofia, em vez de se limitar ao que deve ser entendido como necessário, preferirá sentir a tendência de passar do que se deve considerar como necessário, o que, portanto, não provoca nenhum maravilhamento, àquilo que está fora e acima de todo o exame e conhecimento necessários; não encontrará qualquer paz antes de chegar a algo que seja digno de um maravilhamento absoluto». Quem vive a dificuldade do conceito sabe que está a lidar com a alteridade pura e forte do Outro. Este Outro o teólogo experimenta-o não apenas na forma de uma escuta intelectual, mas também na densa e provocatória experiência do divino Outro, que é a oração. Não menos pode o filósofo abrir-se à radical alteridade do Outro no assombro do seu interrogar-se sobre o abismo do início, onde se experimenta o maravilhamento consciencializado do pensar (o assombro da razão). A agonia é igualmente um rosto da experiência da alteridade: a relação com o Outro é luta. A agonia é experimentar em si a fronteira a atravessar, apercebida na forma da interrogação, que incessantemente provoca o pensamento a transcender-se. É esta a razão especulativa mais profunda da copresença da fé e da não crença em cada um de nós, porque todos, no momento em que somos não negligentes no pensar e nos abrimos até ao fundo à alteridade do Outro e ao seu incessante colocar-nos em questão, vivemos a inquietude da sua elusiva alteridade. Não se dá apenas um existir perante o Outro, que vem a nós e nos perturba, seja ele entendido como indiferença do Início ou como Deus que vem, mas também um existir com o Outro na luta, o viver o pensamento como fadiga e paixão. O cristianismo, enquanto experiência do divino Outro que vem a nós, é por natureza agonia, como sustenta Miguel de Unamuno. A teologia será, portanto, levar ao conceito a agonia do viver cristão, e filosofia pensar a agonia do próprio pensamento. Nesta condição agónica, filósofo e teólogo encontram-se: o pensamento nasce da dor, e sem a interrupção provocada pela ferida do mal e da morte não se daria o pensamento. «Da morte, do temor da morte, toma início e eleva-se todo o conhecimento acerca do Tudo», escreve Franz Rosenzweig na abertura de “A estrela da redenção”. É também por esta razão que não se pode fazer pensamento sem ética: esta não é apenas o compromisso de existir diante do Outro e de resistir na luta com o Outro, mas também a consciência de existir para os outros. A ética é, portanto, o campo do terceiro grande desafio da alteridade, dirigido aos filósofos e teólogos na dor do tempo presente, na ausência da pátria: o desafio no plano do agir moral. Os outros não devem ser entendidos apenas como uma produção do nosso pensamento, como limite ou desafio da nossa liberdade e das nossas escolhas, mas também e acima de tudo como pergunta radical, fundamento do existir eticamente responsável, da vida como correspondência. Está aqui em jogo o outro invocado por Emmanuel Lévinas como crise da metafísica a favor de uma sua superação na ética. É ainda mais radicalmente o outro da “caritas” evangélica, do mandamento "semelhante" ao primeiro, participativo e realizador dele, que é o mandamento do amor. Os outros desafiam filósofos e teólogos a superar a falsa separação entre teorética e ética: a dimensão moral investe hoje a teorética de maneira forte, como questão de existir e pensar a existência não só em si mesma, mas para os outros. Portanto, nestas frentes do maravilhamento, da agonia e da ética estamos hoje todos mais pobres: a condição de perda, debilidade, fragilidade que daí deriva pode ser acolhida como desafio a escapar, a cair e, portanto, a não pensar, ou pode ser vivido como uma provocação para um pensamento não negligente, que tenha a coragem da solidão na qual se dê espaço para o maravilhamento e que aceite viver a responsabilidade pelos outros no primado do amor. D. Bruno Forte Arcebispo de Chieti-Vasto, Itália In L'Osservatore Romano Trad.: SNPC

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Era o mais bravo dos cavaleiros

do rei. Certo dia, ao contornar a esquina de uma rua da cidade, deparou-se com a Morte que o olhou perplexa. Aterrorizado, foi, de imediato, ao encontro do rei e contou-lhe o sucedido. Este ordenou que lhe dessem o melhor dos cavalos dos estábulos reais para que ele, sem mais delongas, partisse para Samarcanda. Não satisfeito com o que se passara, o rei convocou a Morte e inquiriu sobre aquele encontro, referindo-lhe o espanto do cavaleiro ao deparar-se com ela, ao que a Morte retorquiu: "Também eu fiquei perplexa, pois só contava encontrá-lo amanhã... em Samarcanda..." Talvez pela lição desta história adquira mais sensatez aquela afirmação da dupla Lennon-McCartney: Life is very short and there's no time/ For fussing and fighting, my friend.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Li, há dias, "Prolongamento", de Michael Paul Gallagher s.j.

um livro que mexe bem com o que de mais fundo existe em nós: saber como nos confrontaremos nós com a inevitabilidade da morte? Escrito nos meses que se seguiram à descoberta de que, pela terceira vez, o cancro lhe tomou o corpo, e que o fim se aproxima, "Prolongamento" é, para todos aqueles entre nós que não sabem quando se dará o encontro em Sarmacanda, um alerta para estarmos atentos ao que de belo nos espreita no dia-a-dia. Eis um passo escrito a 5 de Outubro de 2015, alguns dias antes da sua partida: Comecei a quimioterapia em regime de ambulatório. Vai ser um dia por semana e depois uma semana livre. Achei muito diferente do internamento hospitalar: numa sala grande com cerca de trinta doentes, maioritariamente mulheres. Muitos deles tinham acompanhantes. Eu estava sozinho. Em vez de me pedirem a lista de sintomas, disseram-me que a quimioterapia podia avançar. Começou com os protectores. Para mim foi um dia difícil - solidão, cansaço - mas ainda assim fui capaz de encontrar uma âncora importante para a oração. Toda a minha vida procurei ser um companheiro de Jesus. Agora ofereço a minha lenta viagem de desapego, pedindo que os meus fragmentos de escuridão se unam à agonia de Cristo. Posso apenas oferecer o meu percurso entorpecido até à sua cruz, onde a dor é inimaginável. De Cristo aprendo como enfrentar este capítulo, o qual estou convencido que está em declínio. Estou deprimido? Possivelmente. O amor por detrás de Jesus na Cruz não estava cheio de alegria ou de luz. Era keinosis ou deslocamento, um esvaziamento do eu. Boas leituras!

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Católica ensina o espiritual nas linguagens estéticas e tensões da religião na esfera pública

«Reconhecer o espiritual nas linguagens estéticas, num contexto (pós)secular» e «compreender as dinâmicas de tensão que descrevem a religião na esfera pública» são dois dos objetivos da formação que a Universidade Católica, em Lisboa, propõe a partir de 27 de fevereiro. Ao longo do programa, os participantes ficarão igualmente a saber como «identificar os factores de mudança global na construção das identidades religiosas», bem como desenvolverão «competências argumentativas relativas à interpretação das novas paisagens religiosas e espirituais». O seminário “Uma era (pós) secular? Religião e mudança global” resulta da participação de um conjunto de investigadores num projeto internacional que visou «a exploração das dinâmicas de mudança que afetam a experiência religiosa num contexto global», lê-se na página da formação. O programa «pretende facilitar o acesso alargado aos resultados desse itinerário de investigação colaborativa. A investigação partiu da realidade portuguesa, contexto em que a erosão de uma identidade religiosa maioritária – “por defeito” –, potenciou a disseminação de referências religiosas noutras margens e em novas paisagens espirituais», acrescenta o texto de apresentação. Coordenado por Alfredo Teixeira e Alexandre Palma, o projeto apresenta-se como «uma oportunidade única de contacto com dez investigadores, no quadro de um programa formativo, ao longo de cinco sessões, num contexto de discussão que facilitará a disseminação do conhecimento». Esta primeira iniciativa do Instituto de Estudos de Religião, resultado de uma parceria que reúne quatro unidades da Universidade Católica - a Faculdade de Teologia, a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (Braga), a Faculdade de Ciências Humanas (Lisboa) e a Escola das Artes (Porto) -, é constituída por 10 horas de contacto em sala de aula, a que se acrescentam cinco horas de acompanhamento na plataforma Moodle (Internet). Cada sessão «desenvolve-se a partir do trabalho colaborativo de dois investigadores, que apresentam as suas perspetivas interpretativas e dialogam entre si. Este diálogo alarga-se, depois, aos participantes no seminário. Em cada sessão abre-se um fórum de discussão, em ambiente Moodle, disponível para a participação dos inscritos no seminário». “Era secular – O debate sobre uma ideia” (Luís Lóia, Paulo Fontes, 27 de fevereiro), “Ortodoxias e heterodoxias – Paradoxos do crer” (Steffen Dix, Alexandre Palma, 6 de março), “O todo e o resto – Uma disjunção bíblica para hoje” (Luísa Almendra, José Tolentino Mendonça, 13 de março) são os temas das primeiras sessões. O itinerário prossegue com “Crer e pertencer – Religião, ‘media’ e espaço público” (Alfredo Teixeira, Nelson Ribeiro, 20 de março) e “O espiritual e o religioso – Uma disjunção estética” (Mário Avelar, Paulo Pires do Vale, 27 de março). Estudantes de programas de ensino superior interessados em formação especializada no domínio dos “Religious Studies” e agentes ligados à educação, comunicação, cultura, mediação social, desenvolvimento humano e assistência religiosa são os principais destinatários do programa. A formação pode ser frequentada como um todo (os cinco encontros) ou por módulo, estando nestes casos disponível sem creditação. Prevê-se também a modalidade de participação em todo o seminário com creditação, que confere 2,5 unidades ECTS. As candidaturas estão abertas até 26 de fevereiro.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

3.ª meditação do P. Tolentino Mendonça ao papa

A sede de Deus e a capacidade de a reconhecer estiveram no centro da segunda meditação de hoje do P. José Tolentino Mendonça, pregador dos Exercícios Espirituais para o papa e a Cúria Romana que decorre até sexta-feira em Ariccia, próximo do Vaticano. O poeta e teólogo português apontou, sob o título «dei-me conta de estar com sede», a predisposição de alma e os instrumentos necessários para interpretar o desejo de Deus que está em nós, a contemplá-lo e a educá-lo para valorizar a espiritualidade da sede. Neste contexto, o biblista sublinhou que «entrar em contacto com a própria sede não é uma operação fácil, mas se não o fazemos a vida espiritual perde adesão à nossa realidade». "Tomar consciência da nossa sede Temos por isso de perder o medo de reconhecer a nossa sede e a nossa secura. Como primeira ação, o P. Tolentino exortou a não se intelectualizar demasiadamente a fé: «Construímos um fenomenal castelo de abstrações. Não é por acaso que a teologia dos últimos séculos se deteve tanto tempo a debater as questões levantadas pelo Iluminismo e se tenha afastado das colocadas, por exemplo, pelo Romantismo, como as da identidade, coletiva e pessoal, do emergir do sujeito ou do mal de viver. Estamos mais preocupados com a credibilidade racional da experiência da fé do que com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva. Ocupamo-nos mais da razão do que do sentimento. Deixamos para trás das costas a riqueza do nosso mundo emocional». O ser humano é uma «mistura de muitas componentes emocionais, psicológicas e espirituais, e de todas devemos ganhar consciência». Assim como a vida espiritual não é prefabricada mas está «envolvida na radical singularidade de cada sujeito». Falar da sede é falar da existência real, e não da ficção de nós mesmos à que tantas vezes nos adaptamos, é iluminar uma experiência, mais do que um conceito. Por isso é preciso sacudir o torpor quotidiano porque «pode acontecer que tenhamos a maior dificuldade até mesmo de admitir que estamos com sede». Um dos requisitos para receber a água da vida é reconhecermo-nos com sede. Interpretar a sede Depois de tomar consciência da própria sede, é preciso interpretar esta necessidade que existe em nós. O P. Tolentino evidenciou que nesta fase deve distinguir-se o desejo de uma mera necessidade, que se aplaca e se satisfaz com a posse de um objeto: «Não confundamos o desejo com as necessidades. O desejo é uma falta nunca completamente satisfeita, é uma tensão, uma ferida sempre aberta, uma interminável exposição à alteridade. O desejo é uma aspiração que nos transcende e que não determina, como a necessidade, um termo e um fim. A necessidade é uma carência contingente do sujeito. O infinito do desejo é desejo de infinito». «O desejo humano diferencia-se do desejo dos animais», e ser humano significa «sentir que a existência depende deste reconhecimento mais do que qualquer outra coisa». Este anseio é mortificado nas sociedades capitalistas, que exploram avidamente as conpulsões de satisfação de necessidade induzida, removendo a sede e o desejo tipicamente humanos. Na prática, o discurso capitalista promete libertar o desejo das inibições da lei e da moral em nome de uma satisfação ilimitada. E quando isto se verifica, «o prazer, a paixão, a alegria a esgotarem-se num consumismo desenfreado, tanto de objetos como de pessoas», chega-se à extinção da sede, à agonia do desejo. A vida perde o seu horizonte. A sede de Deus «Como o veado anseia pela água.» O P. Tolentino referiu-se ao Salmo 42 para realçar a busca para saciar a sede de Deus. Se se contempla o mundo com amor, descobre-se que «é todo o Criado a ser atravessado por este desejo visceral». O primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura apelou à valorização da espiritualidade da sede, mais que as estruturas: «Talvez precisemos de redescobrir o desejo, a sua itinerância e abertura, em vez das codificações em que tudo está previsto, estabelecido, garantido. A experiência do desejo não é um título de propriedade ou forma de possessão; é antes uma condição de mendicidade. O crente é um mendigo de misericórdia». A concluir, o P. Tolentino dirigiu-se em particular aos pastores, chamando-os à reconciliação com a sua vulnerabilidade, e recordou a advertência do papa Francisco: «Uma das piores tentações é a auto-suficiência e a auto-referencialidade». Ao contrário, abraçar a própria vulnerabilidade e aceder ao desejo de ser reconhecido e tocado como o leproso que foi ter com Jesus (cf. Mateus 8, 3), como a sogra de Pedro na cama com a febre (cf. Mateus 8, 15), como a mulher que há 12 anos sofria de hemorragias (cf. Mateus 9, 20), como aqueles que gritavam «Filho de David, tem piedade de nós!» (Mateus 8, 27)." Fonte, Marco Guerra, in Vatican News, Trad. / edição: SNPC