quinta-feira, 3 de abril de 2014

Entre-tanto II

Aqui vos deixo a segunda parte da minha apresentação do livro de José Frazão Correia: "Uma vez mais isso parece ocorrer quando José Frazão recorda que “somos seres de palavras que se exprimem por palavras” (120), algo que traz à mente uma asserção do já mencionado Ralph Waldo Emerson, segundo o qual “somos símbolos e habitamos símbolos.” No entanto, contrariamente ao pensador americano, que situa a sua reflexão no âmbito da evidente ambiguidade da linguagem, José Frazão assume, como vimos, a importância de superarmos o aparente literalismo dessa mesma linguagem. Importa acentuar um facto: este processo de leitura é também um processo de autodescoberta; nas suas palavras: “consciência de um eu que se afirma, mas enquanto se redimensiona pelo exercício autobiográfico e relacional de se narrar como intriga de tantos fios que confluem numa tensão difícil, mas fecunda”. (122) Curiosa, ainda que não acidental, é esta convocação de um universo semântico da crítica e da teoria literárias: autobiográfico, narrar, intriga. Antes fora Deus que, na enunciação de Salmann, emergia como “índice da necessidade do dever procurar” (72); índice, signo caro à semiologia. E mais adiante serão as quatro parábolas. E mais adiante ainda será “a poética do corpo eclesial”, expressão colhida em Stella Morra, que surge na sequência da importância que assumem “espaços e ... formas plásticas, ... luzes, ... sombras e... movimentos... perfumes e... cores, ... silêncio e ... canto” (141) na celebração ritual. Não falamos, portanto, de compartimento estanques, como comprovaram Robert Alter no seu clássico The Art of Biblical Narrative, e, entre nós, José Tolentino Mendonça em A construção de Jesus. Assim se impõe uma categoria narrativa, como a designamos nos estudos literários; uma categoria narrativa que no âmbito desta reflexão assume um papel de profunda revisão identitária; refiro-me à descrição. Para José Frazão, ela surge no culminar deste processo de redescoberta do sujeito: “A generosidade da atenção, a sabedoria da leitura, a arte da descrição” (80). Exactamente isso, “arte da descrição”. Tudo modelado pelo “estilo de Jesus” (81). Num primeiro instante desta minha brevíssima abordagem centrei-me na linguagem; num segundo instante centrei-me na leitura; é chegado o terceiro e derradeiro momento, aquele em que me devo centrar no estilo. Signo comummente associado à aparência, à exterioridade, à pose, à simulação, à frivolidade até, o estilo emerge nestas páginas como conceito nuclear. Poder-se-á também pensar no estilo da escrita. E aqui uma vez mais me veem à mente as palavras de Emerson, desta feita numa carta a Walt Whitman, pois também na prosa de José Frazão Correia encontramos “coisas incomparáveis, ditas incomparavelmente bem, como elas devem ser ditas.” Mas não é apenas uma prosa que se impõe pela clareza, inteligência e fluidez. Recordando de novo aquele verso que referi no início, diria que José Frazão “está em boa companhia”. Lembremos o início da Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma de 2014 quando, ao reflectir sobre as palavras de São Paulo em Coríntios 2, afirma: “Tais palavras dizem-nos, antes de mais nada, qual é o estilo de Deus.” O estilo de Deus. Não estamos, portanto, no plano da simulação, mas sim da identidade, naquela que para nós, cristãos, será a sua acepção mais radical. Daí a presença do Génesis na leitura que José Frazão nos oferece, lembrando a amplitude deste entre-tanto, na qual devemos discernir e inscrever a nossa experiência biográfica. O nosso autor reitera a centralidade do estilo na sua elaboração - o “estilo eucarístico”, o “estilo de Jesus”, “ao estilo de Jesus no caminho de Emaús” (111), “o estilo cristão”-, numa estratégia pedagógica de liberdade, visto não impor, desde logo, ao leitor uma definição, antes o levando a construí-la através da reflexão que é obrigado a realizar. Apenas quando a elaboração por ele construída, vai avançada, estamos na página 88, a definição é proposta: “o estilo é um modo particular de habitar o mundo. Por isso, de olhar e de sentir, de pensar e de agir. É o toque distintivo de uma presença que se representa num corpo vivo e visível.” (88) Afinal a resposta que eu procurava no início, estava na viagem que a leitura é, no processo de redescoberta da linguagem e, consequentemente, do estilo; a viagem de cada um de nós, ancorada nas nossas circunstâncias biográficas, assim desvendando um estilo moldado pela presença constante de Cristo. E uma vez mais me veio à mente o tal verso, agora numa nova dimensão: “uma forma de estar em boa companhia”. Que melhor companhia podemos nós desejar? "

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