sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Moita Macedo (parte III)

"Referi no início que faria um breve tributo. Uma personagem de Avalon, de Barry Levinson, repete ao longo do filme: “Se não recordas, esqueces”. Sem pretender entrar nos campos daquilo que os franceses designam ego-histoire, quero recordar aqui uma manhã de Agosto de 1971. Faço-o no espírito do testemunho que, como referia Tolentino Mendonça, há umas semanas, ao integrar na nossa memória os que já partiram, dá sentido à nossa própria passagem por aqui. Tinha, então, quinze anos e estava de férias com os meus pais na Costa da Caparica. Ao passearmos pela praia, o meu pai encontrou um amigo que era pai de um colega meu do liceu. Embora provavelmente sem muito rigor científico diziam que, com a mudança da idade, eu tinha “dado um pulo.” Tinha, por isso, a mesma altura que tenho hoje e foi assim que olhava para o meu pai e para o amigo, naquilo que em linguagem cinematográfica se refere como plongé. Apesar da minha altura ser superior à dos intervenientes no diálogo, assisti, num reverente silêncio, à conversa de ambos, como se esperava de um adolescente naqueles tempos. Afinal eles tinham aquilo que, para mim, na altura, eram idades vetustas, um, 45 anos e o outro, 40. Além disso, ambos eram artistas e homens de resistência. Anos mais tarde encontrei em The Black Prince, um romance de Iris Murdoch, a expressão que ilustrava o que então sentia: “Reverencio grandes artistas e homens que dizem não aos tiranos.” Voltemos a essa manhã. Mais ao longe, o irmão mais novo do meu colega brincava junto ao toldo. É estranho como certos instantes, aparentemente banais, resistem na nossa memória. Quando eles se despediram, o meu pai disse-me: “O pai do teu colega é pintor.” Confesso que não tenho memórias particularmente eufóricas do liceu. Esses não foram, para mim, os Glory Days de que fala um músico americano; ou, pegando numa imagem vicentina, uma versão do Auto da Barca da Glória. Também não foram propriamente uma versão do Auto da Barca do Inferno, uma espécie de Buffy, a caçadora de vampiros, como referiu outro músico americano, em que o liceu, pejado de vampiros, é um portal para o Inferno. Para mim, eles foram mais algo de semelhante ao Auto da Barca do Purgatório, durante o qual, como no poema de Pedro da Silveira, as horas se arrastavam como lesmas. Não por culpa de outrem, devo dizer; nem de professores, que os tive muito bons, nem dos colegas, alguns dos quais ainda me acompanham. A eles devo momentos, rostos, que guardo na memória com gratidão. Um desses rostos é o do colega a que o meu pai se referia: o vosso irmão Pedro, meu companheiro de turma no quarto ano do liceu, então ainda em Massamá. E porque o quarto ano era então fatídico para muitos de nós, de novo meu colega de turma no nosso segundo quarto ano. E ainda no quinto, já no liceu de Queluz, hoje Padre Alberto Neto. Juntos, ainda no sexto e no sétimo anos, fizemos uma dupla quase imbatível no ténis de mesa. Hoje, ao falar da obra de Moita Macedo, do vosso pai, não podia deixar de lembrar com saudade o seu filho, o meu amigo Pedro, e também o Zé Luís, o dandy que os mais jovens, como eu, tentavam emular, e a vossa irmã Ana, todos eles vivendo hoje uma plenitude que também nós esperamos um dia conhecer."

domingo, 22 de dezembro de 2013

Moita Macedo (parte II)

"Curiosamente, quando transitamos para a obra pictórica de Moita Macedo, a evidência do rosto dilui-se. Fernando António Baptista Pereira, com a argúcia analítica que fez dele uma das vozes mais penetrantes sobre a arte em Portugal, abordou esta relação entre a palavra e a imagem em Moita Macedo. Contudo, importa continuar este trabalho de reflexão. Fá-lo-ei abrindo um caminho, o do aprofundamento da análise daquela que considero ser a seminal relação entre autobiografia estética e representação. Ainda antes de prosseguir importa acentuar que, em tempos que recusam a sistematização, Baptista Pereira teve a coragem de avançar com uma abordagem sistemática e tópica da obra do artista. Por seu turno, Vítor Serrão, figura cimeira da História de Arte entre nós, assinalou, com o brilhantismo que lhe é habitual, quais os seus tópicos nucleares. Numa obra que oscila entre a abstracção e a representação, e em que as fronteiras entre ambas se diluem, Baptista Pereira identifica tópicos como “Os outros Eus”, “as Tauromaquias”, “os Quixotes”, “Cristos e Calvários”, “Caravelas”, “Cidades”. É neles que o sujeito, que um rosto, uma identidade, se projectam. O rosto que se explicita na palavra, parece denegar aqui a sua presença. Um dos momentos em que essa denegação será mais evidente, é, na minha opinião, um quadro de 1976, intitulado Um quasi auto-retrato. Uma das vertentes que mais me toca na obra de Moita Macedo é aquela em que predomina a ausência de um referente - chamemos-lhe abstracta; aquela em que a pintura, claramente devedora do Modernismo, é apenas isso, pintura. Escreve a propósito o crítico de arte norte-americano, Clement Greenberg: “Onde os Velhos Mestres criaram uma ilusão do espaço que nos podemos imaginar a palmilhar, a ilusão criada por um modernista é a de um que nós podemos olhar, podemos percorrer apenas com o olhar. ... Com Manet e os impressionistas ... a questão deixou de ser definida como oposição entre cor e desenho, e tornou-se uma questão de pura experiência óptica ...” (Clement Greenberg, “Modernist Painting”, apud Fried 20) É, portanto, uma relação diferente entre pintura e observador, uma relação marcada pela opticalidade, que se impõe. Gostaria de a abordar em Moita Macedo. Gostaria de o fazer na esteira do crítico de arte que mais me inspira, o norte-americano Michael Fried, e do seu conceito de absorpção. Gostaria de meditar sobre aquela vertente não figurativa da obra de Moita Macedo, partindo da análise de Forma, enquanto estrutura pictórica, que emerge do reconhecimento dos limites do quadro. Gostaria de ver em que medida, também para ele, a forma se terá ou não tornado algo de diferente do que era na pintura convencional – um “objecto de convicção” (Fried 78). Gostaria de identificar qual a relação de continuidade entre o exterior e o interior. Ou ainda como se pode reconhecer uma sintaxe através da análise da relação entre elementos arbitrários (sem sentido)? E que tipo de experiência cognitiva se suscita? Não temei, porém, pois isso exigiria muito tempo. E ele escasseia. Deixarei, portanto, essa reflexão para outra oportunidade. Regressemos, então, a Um quasi auto-retrato. O auto-retrato constitui uma tradição pictórica particularmente relevante. Nela destacaria duas dimensões algo recorrentes, a da interpelação do espectador, através do olhar do retratado, e a dramática. Com efeito, no auto-retrato é recorrente o olhar do artista convocando aquela que o observa para a sua intimidade, ou antes, para a intimidade que ele deseja exibir. Artistas como Dürer fizeram-no amiúde em vários momentos da sua vida, revelando determinadas singularidades, sem ignorar a presença do espectador. Mesmo quando narcisicamente diluído em instantes solenes como a Natividade, em Boticelli, ei-lo que, exibindo-se num auto-retrato, nos interpela. Implícita ou explícita a dimensão dramática emerge no auto-retrato. Veja-se a ironia de Judite com a cabeça de Holofernes, de Cristofano Allori, onde, sob a narrativa bíblica, desponta a auto-biográfica: Allori auto-representa-se como Holofernes, enquanto a amante que o abandonara, é figurada como Judite, acompanhada por sua mãe, ou seja, pela sogra desejada. Nenhum destes aspectos surge em Um quasi auto-retrato. Afinal, porque ele é quasi, porque não chega a ser assumido como pertencente à convenção do género auto-retrato, a representação do artista, dos seus traços, da sua expressão, dá lugar a uma massa, transformada em índice onde o corpo, apenas delineado, sugerido, num movimento algo furtivo, se insinua. Neste quadro, o testemunho é indiciado, é indirecto. Nada aqui se evidencia da estratégia confessional. Será este, porventura, o verdadeiro auto-retrato? Aquele em que o corpo se transformou no objecto, na textura da tinta, na própria matéria que, ela sim, dá corpo, vida, ao objecto artístico. Poderá, afinal, este quadro, algo singular e excêntrico, em termos tipológicos, face ao conjunto da sua obra, ser uma espécie de arte poética sua? A figuração de uma síntese?"

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Uma partilha

Porque este é um espaço visitado por pessoas que partilham afinidades comigo, ou com quem eu partilho afinidades, é
natural que exista uma dose simpatia. E porque me regozijo com as alegrias dos meus amigos, estou certo que também se irão regozijar quando elas me batem à porta. A notícia que vos trago hoje tem a ver com o facto de a Academia Portuguesa da História me ter concedido uma honra que muito me sensibilizou ao acolher-me no seu seio como académico honorário. Aqui fica a notícia, esperando que ela não vá alimentar, entre outros, que não entre vós, o pecaminoso sentimento que deu título ao meu romance mais recente. Até breve!

Moita Macedo (parte I)

Começo hoje a inserir neste espaço a minha intervenção na abertura da exposição de pintura de Moita Macedo. Trata-se de uma obra que importa resgatar do esquecimento e, talvez, de um certo confinamento a um espaço político-cultural. A sala Portugal da Sociedade de Geografia, onde está a exposição, é um dos tesouros menos conhecidos de Lisboa. Por isso, de uma cajadada matam dois coelhos: vêem uma excelente exposição e conhecem um espaço lindíssimo. Aqui fica, então, a primeira parte do texto que apresentei:
"Dividi a minha intervenção em duas partes: começarei por me debruçar sobre uma questão teórica, a da relação entre palavra e imagem, sobre a qual tenho consagrado uma parte relevante da minha investigação ao longo de trinta anos, e concluirei com um breve tributo. O facto de o artista que hoje homenageamos ser também um artífice da palavra, suscita naturais interrogações face ao eventual diálogo entre essas suas vertentes criativas. Deve-se, aliás, ao próprio Moita Macedo a enunciação desse diálogo radical: “Pintei versos, escrevi quadros.” Nesta frase reconhecem-se os ecos clássicos do grego Simónides de Ceos - “A pintura é poesia silenciosa, a poesia é pintura que fala”, e do romano Horácio quando, séculos mais tarde, proclamaria na sua Arte Poética: “Ut pictura poesis”- tal como a pintura, também a poesia. Seria necessário esperar por Laocoön, o ensaio setecentista de Lessing, para que as duas tradições artísticas - as que surgem ancoradas na palavra e as que se afirmam pela imagem, conhecessem a famosa distinção: artes do tempo e artes do espaço. Coloca-se, deste modo, uma questão: ao superar a dicotomia lessinguiana, como sugere a declaração “Pintei versos, escrevi quadros”, Moita Macedo estará a exprimir uma afinidade radical entre as duas expressões artísticas por ele praticadas? Gostaria, assim, de vos propor uma brevíssima reflexão em torno deste tópico. Ao lermos os poemas de Moita Macedo emerge na nossa memória uma tradição poética que será facilmente identificável por parte daqueles que viveram ou conheceram os círculos intelectuais de resistência ao regime, em particular, na década de sessenta do século passado. São inúmeros os poetas que, de imediato, recordo; nomes hoje praticamente esquecidos como Vicente Campinas, Mário Gonçalves, Francisco Viana, Bação Leal, ou mesmo Daniel Filipe, ou não esquecidos, como Manuel Alegre e, numa geração mais recente, José Jorge Letria. Nomes habitualmente associados a um neo-realismo tardio e que, por isso mesmo, pela sua filiação política, não raro são confinados ao marxismo. No entanto, mesmo quando trazemos à mente nomes da geração anterior, como Sidónio Muralha, aquilo que me parece ser mais evidente é a dimensão confessional; a afirmação de uma sensibilidade face ao mundo que, por muito que pudesse custar a esse marxismo, e a eles próprios, está mais próximo de um certo pathos existencialista que, na nossa sensibilidade colectiva marcada pela saudade, declara a melancolia do indivíduo face a uma realidade constrangedora. Talvez estes poetas estejam, afinal, mais próximos do Santo Agostinho, das Confissões, ou de Rousseau, também o das Confissões, do que de Marx. Por isso mesmo, creio que a designação que melhor os identifica será a de confessionalistas. Curiosamente, foi nos Estados Unidos que a tradição poética confessional se celebrizou na década de 1950, não por acaso em Boston, nessa cidade onde a memória puritana ainda persistia, sob a égide da psicanálise freudiana. Sylvia Plath será porventura o nome mais conhecido, entre nós, dessa sensibilidade literária. Para ela, como para poetas como Robert Lowell, Freud desvendou o indivíduo como espaço de existência dramática. Já para os poetas portugueses antes referidos, a dimensão dramática decorre, como assinalei, das circunstâncias sócio-políticas envolventes. Daí que a dimensão confessional se exiba como melancólico testemunho do poeta. É deste modo que ela se exibe naquele que, para mim, é a voz mais forte dessa tradição, Daniel Filipe; curiosamente, aquele a quem Moita Macedo dedica “Quando morre um poeta”. Este poema de Moita Macedo denuncia uma óbvia afinidade face a Daniel Filipe; uma afinidade estética, política e, reitero, existencial, firmada numa partilha radical, em termos etimológicos, do quotidiano. No entanto, o reconhecimento dessa afinidade não nos deve constranger em termos de leitura. Embora o testemunho seja evidente nos poemas de Moita Macedo, essa exibição de um rosto, de uma sensibilidade, que o testemunho pressupõe, não funciona como derradeiro limite do texto. Não estou a denegar a existência dessa vertente, central em versos seus como os intitulados “Desejo ao poema”: Queria// Que os meus poemas fossem pedras/ Que à noite,/ Tradição arremessasse!// Queria// Que cada pedra fosse uma canção/ Que o povo cantasse! / Essa vertente é, de facto, recorrente. Mas outra, eventualmente mais indirecta e reflexiva, deve ser lembrada. Veja-se o poema significativamente intitulado “Colagens”. Nele é a estética visual ancorada na palavra, aquilo a que a tradição ecfrástica grega designava enargeia, isto é, a vivacidade de representação do objecto através da palavra, que pontifica: N`elas/ Recortados, colados, estendidos/ Esfaimados e adormecidos/ Estão arautos despertados/ De ânsia de ideal, de ânsia dos/ sentidos/ N`elas/ Estão pedaços-de-Paula/ Lançados sobre as telas./ Nestes dois exemplos define-se um rosto: o do cidadão/poeta e o da artista. "

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Moita Macedo

Amanhã, 3ª feira, pelas 18h, na Sociedade de Geografia de Lisboa, é inaugurada uma exposição de Mota Macedo. Após a abertura segue-se um conjunto de intervenções de Guilherme de Oliveira Martins, António Valdemar, Tomás Paredes e minha. Aqui fica o convite para que apareçam.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Salmo 23(22),1-3a.3b-4.5.6.

O Senhor é meu pastor: nada me faltará. / Leva-me a descansar em verdes prados,/ conduz-me às águas refrescantes,/ reconforta a minha alma,// e guia-me por caminhos rectos, por amor do seu nome./ Ainda que atravesse vales tenebrosos,/ de nenhum mal terei medo/ porque Tu estás comigo./ A tua vara e o teu cajado dão-me confiança.// Preparas a mesa para mim/ à vista dos meus inimigos;/ ungiste com óleo a minha cabeça;/ a minha taça transbordou.// Na verdade, a tua bondade e o teu amor/ hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida,/ e habitarei na casa do Senhor/ para todo o sempre.