sexta-feira, 13 de maio de 2011

"A Susie 4 e os pratos invertidos"


Com um abraço aos velhos amigos do Liceu de Queluz, deixo este passo do meu romance sobre aqueles tempos. Acima está o título do capítulo, e, por favor... não se assustem com o título do romance.
"As sessões de espiritismo eram o mais recente passatempo da rapaziada e raparigada lá do liceu. Como este passatempo surgira, ao certo, ninguém o sabia, mas rapidamente alastrara, tornando-se objecto de culto deles e delas. Os tradicionais grupos de amigos dissolviam-se para dar lugar aos novos grupos formados por um novo tipo de afinidades, consoante a medium em questão; a e não o, pois as raparigas mostravam ser senhoras de mais dotes neste esfera do que eles.
Havia várias medium, umas com mais poderes do que outras. Não se tratava apenas de chegar com mais velocidade, com banda larga, à fala com o Além, era também fundamental o tipo de interlocutor ou interlocutora que, do Lado de Lá, conseguia impressionar, ou não, o Lado de Cá, ou seja, os participantes nas sessões. Estes participantes variavam consoante a qualidade da medium e dos interlocutores envolvidos. Deste modo, a medium mais eficiente conseguia reunir à sua volta, eventualmente em sua casa, a elite do liceu. Das sessões transitar-se-ia para outros encontros sociais, lanches, convívios, porventura, voilà, namoros.
Por seu turno, os menos eficientes, ou pobrezinhos, como então eram designados pelas elites espíritas, podiam, muitas vezes, passar horas a olhar para o pratinho que este nem uma sacudidela dava.
Concluindo, o diálogo com o Além transformara profundamente a vida na escola.
Com o andar da carruagem, os avisos passaram a determinar o dia-a-dia dos mais assíduos; ora havia uma viagem que urgia evitar; ora havia uma festa que não se deveria realizar; ora havia alguém cuja presença poderia ser malévola; ora havia uma miúda endemoinhada... e que, geralmente, era a mais apetecida.
...
Para os mais impressionáveis, as luzes tinham passado a ficar acesas até de madrugada, pois ruídos, sopros, portas a ranger, gatos a miar, enfim, eventuais companhias do Inesperado tornavam-se muito mais tenebrosas no escuro. O antigo ditado mais vale só do que mal acompanhado, dera lugar ao posso julgar que estou só e, no fim de contas, estou mas é mal acompanhado.
Mas as coisas que não se ficavam por aqui.
Os mais ousados, que habitualmente se reuniam nas traseiras da sala de convívio para fumar uns cigarros com aroma estranho, tinham-se tornado devotos do lado negro, ou magia negra. Aí tudo era invertido..."

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Pela mão de Mussorgski numa galeria com anjos


é o título do último livro de poemas que publiquei já lá vão dez anos. Segui aqui a famosa peça de Mussorgski, Quadros de uma exposição, que depois converti através de uma escolha muito pessoal dos quadros e... do ritmo. Alguns destes poemas - os que recuperam a promenade - foram escolhidos por José Duarte e Ricardo António Alves para a antologia do jazz na poesia de língua portuguesa (antes do acordo ortográfico).
Porque hoje estive a ver e ouvir os Quadros de uma exposição, na versão dos Emerson, Lake & Palmer, tocada em 1970 no Lyceum Theatre, deixo-vos um destes poemas, o IX. A porta dos boátiros de Kiev. O quadro que escolhi foi Escada para a lua, de Georgia O'Keeffe.
Eis o poema:

Afinal, tudo parece
girar em torno de anjos,
de sopros... ténues carícias

despertando-nos p'la noite
dentro, p'ra um reencontro
com Deus, ou, talvez, se a

penumbra as ilumina,
para afagar as mãos
como se elas as d'um

anjo mais querido fossem...
para de novo reter
as lágrimas, p'ra rever

um sorriso ou um timbre...

que seria das palavras
sem o afago dos anjos?