quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Era o mais bravo dos cavaleiros

do rei. Certo dia, ao contornar a esquina de uma rua da cidade, deparou-se com a Morte que o olhou perplexa. Aterrorizado, foi, de imediato, ao encontro do rei e contou-lhe o sucedido. Este ordenou que lhe dessem o melhor dos cavalos dos estábulos reais para que ele, sem mais delongas, partisse para Samarcanda. Não satisfeito com o que se passara, o rei convocou a Morte e inquiriu sobre aquele encontro, referindo-lhe o espanto do cavaleiro ao deparar-se com ela, ao que a Morte retorquiu: "Também eu fiquei perplexa, pois só contava encontrá-lo amanhã... em Samarcanda..." Talvez pela lição desta história adquira mais sensatez aquela afirmação da dupla Lennon-McCartney: Life is very short and there's no time/ For fussing and fighting, my friend.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Li, há dias, "Prolongamento", de Michael Paul Gallagher s.j.

um livro que mexe bem com o que de mais fundo existe em nós: saber como nos confrontaremos nós com a inevitabilidade da morte? Escrito nos meses que se seguiram à descoberta de que, pela terceira vez, o cancro lhe tomou o corpo, e que o fim se aproxima, "Prolongamento" é, para todos aqueles entre nós que não sabem quando se dará o encontro em Sarmacanda, um alerta para estarmos atentos ao que de belo nos espreita no dia-a-dia. Eis um passo escrito a 5 de Outubro de 2015, alguns dias antes da sua partida: Comecei a quimioterapia em regime de ambulatório. Vai ser um dia por semana e depois uma semana livre. Achei muito diferente do internamento hospitalar: numa sala grande com cerca de trinta doentes, maioritariamente mulheres. Muitos deles tinham acompanhantes. Eu estava sozinho. Em vez de me pedirem a lista de sintomas, disseram-me que a quimioterapia podia avançar. Começou com os protectores. Para mim foi um dia difícil - solidão, cansaço - mas ainda assim fui capaz de encontrar uma âncora importante para a oração. Toda a minha vida procurei ser um companheiro de Jesus. Agora ofereço a minha lenta viagem de desapego, pedindo que os meus fragmentos de escuridão se unam à agonia de Cristo. Posso apenas oferecer o meu percurso entorpecido até à sua cruz, onde a dor é inimaginável. De Cristo aprendo como enfrentar este capítulo, o qual estou convencido que está em declínio. Estou deprimido? Possivelmente. O amor por detrás de Jesus na Cruz não estava cheio de alegria ou de luz. Era keinosis ou deslocamento, um esvaziamento do eu. Boas leituras!

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Católica ensina o espiritual nas linguagens estéticas e tensões da religião na esfera pública

«Reconhecer o espiritual nas linguagens estéticas, num contexto (pós)secular» e «compreender as dinâmicas de tensão que descrevem a religião na esfera pública» são dois dos objetivos da formação que a Universidade Católica, em Lisboa, propõe a partir de 27 de fevereiro. Ao longo do programa, os participantes ficarão igualmente a saber como «identificar os factores de mudança global na construção das identidades religiosas», bem como desenvolverão «competências argumentativas relativas à interpretação das novas paisagens religiosas e espirituais». O seminário “Uma era (pós) secular? Religião e mudança global” resulta da participação de um conjunto de investigadores num projeto internacional que visou «a exploração das dinâmicas de mudança que afetam a experiência religiosa num contexto global», lê-se na página da formação. O programa «pretende facilitar o acesso alargado aos resultados desse itinerário de investigação colaborativa. A investigação partiu da realidade portuguesa, contexto em que a erosão de uma identidade religiosa maioritária – “por defeito” –, potenciou a disseminação de referências religiosas noutras margens e em novas paisagens espirituais», acrescenta o texto de apresentação. Coordenado por Alfredo Teixeira e Alexandre Palma, o projeto apresenta-se como «uma oportunidade única de contacto com dez investigadores, no quadro de um programa formativo, ao longo de cinco sessões, num contexto de discussão que facilitará a disseminação do conhecimento». Esta primeira iniciativa do Instituto de Estudos de Religião, resultado de uma parceria que reúne quatro unidades da Universidade Católica - a Faculdade de Teologia, a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (Braga), a Faculdade de Ciências Humanas (Lisboa) e a Escola das Artes (Porto) -, é constituída por 10 horas de contacto em sala de aula, a que se acrescentam cinco horas de acompanhamento na plataforma Moodle (Internet). Cada sessão «desenvolve-se a partir do trabalho colaborativo de dois investigadores, que apresentam as suas perspetivas interpretativas e dialogam entre si. Este diálogo alarga-se, depois, aos participantes no seminário. Em cada sessão abre-se um fórum de discussão, em ambiente Moodle, disponível para a participação dos inscritos no seminário». “Era secular – O debate sobre uma ideia” (Luís Lóia, Paulo Fontes, 27 de fevereiro), “Ortodoxias e heterodoxias – Paradoxos do crer” (Steffen Dix, Alexandre Palma, 6 de março), “O todo e o resto – Uma disjunção bíblica para hoje” (Luísa Almendra, José Tolentino Mendonça, 13 de março) são os temas das primeiras sessões. O itinerário prossegue com “Crer e pertencer – Religião, ‘media’ e espaço público” (Alfredo Teixeira, Nelson Ribeiro, 20 de março) e “O espiritual e o religioso – Uma disjunção estética” (Mário Avelar, Paulo Pires do Vale, 27 de março). Estudantes de programas de ensino superior interessados em formação especializada no domínio dos “Religious Studies” e agentes ligados à educação, comunicação, cultura, mediação social, desenvolvimento humano e assistência religiosa são os principais destinatários do programa. A formação pode ser frequentada como um todo (os cinco encontros) ou por módulo, estando nestes casos disponível sem creditação. Prevê-se também a modalidade de participação em todo o seminário com creditação, que confere 2,5 unidades ECTS. As candidaturas estão abertas até 26 de fevereiro.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

3.ª meditação do P. Tolentino Mendonça ao papa

A sede de Deus e a capacidade de a reconhecer estiveram no centro da segunda meditação de hoje do P. José Tolentino Mendonça, pregador dos Exercícios Espirituais para o papa e a Cúria Romana que decorre até sexta-feira em Ariccia, próximo do Vaticano. O poeta e teólogo português apontou, sob o título «dei-me conta de estar com sede», a predisposição de alma e os instrumentos necessários para interpretar o desejo de Deus que está em nós, a contemplá-lo e a educá-lo para valorizar a espiritualidade da sede. Neste contexto, o biblista sublinhou que «entrar em contacto com a própria sede não é uma operação fácil, mas se não o fazemos a vida espiritual perde adesão à nossa realidade». "Tomar consciência da nossa sede Temos por isso de perder o medo de reconhecer a nossa sede e a nossa secura. Como primeira ação, o P. Tolentino exortou a não se intelectualizar demasiadamente a fé: «Construímos um fenomenal castelo de abstrações. Não é por acaso que a teologia dos últimos séculos se deteve tanto tempo a debater as questões levantadas pelo Iluminismo e se tenha afastado das colocadas, por exemplo, pelo Romantismo, como as da identidade, coletiva e pessoal, do emergir do sujeito ou do mal de viver. Estamos mais preocupados com a credibilidade racional da experiência da fé do que com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva. Ocupamo-nos mais da razão do que do sentimento. Deixamos para trás das costas a riqueza do nosso mundo emocional». O ser humano é uma «mistura de muitas componentes emocionais, psicológicas e espirituais, e de todas devemos ganhar consciência». Assim como a vida espiritual não é prefabricada mas está «envolvida na radical singularidade de cada sujeito». Falar da sede é falar da existência real, e não da ficção de nós mesmos à que tantas vezes nos adaptamos, é iluminar uma experiência, mais do que um conceito. Por isso é preciso sacudir o torpor quotidiano porque «pode acontecer que tenhamos a maior dificuldade até mesmo de admitir que estamos com sede». Um dos requisitos para receber a água da vida é reconhecermo-nos com sede. Interpretar a sede Depois de tomar consciência da própria sede, é preciso interpretar esta necessidade que existe em nós. O P. Tolentino evidenciou que nesta fase deve distinguir-se o desejo de uma mera necessidade, que se aplaca e se satisfaz com a posse de um objeto: «Não confundamos o desejo com as necessidades. O desejo é uma falta nunca completamente satisfeita, é uma tensão, uma ferida sempre aberta, uma interminável exposição à alteridade. O desejo é uma aspiração que nos transcende e que não determina, como a necessidade, um termo e um fim. A necessidade é uma carência contingente do sujeito. O infinito do desejo é desejo de infinito». «O desejo humano diferencia-se do desejo dos animais», e ser humano significa «sentir que a existência depende deste reconhecimento mais do que qualquer outra coisa». Este anseio é mortificado nas sociedades capitalistas, que exploram avidamente as conpulsões de satisfação de necessidade induzida, removendo a sede e o desejo tipicamente humanos. Na prática, o discurso capitalista promete libertar o desejo das inibições da lei e da moral em nome de uma satisfação ilimitada. E quando isto se verifica, «o prazer, a paixão, a alegria a esgotarem-se num consumismo desenfreado, tanto de objetos como de pessoas», chega-se à extinção da sede, à agonia do desejo. A vida perde o seu horizonte. A sede de Deus «Como o veado anseia pela água.» O P. Tolentino referiu-se ao Salmo 42 para realçar a busca para saciar a sede de Deus. Se se contempla o mundo com amor, descobre-se que «é todo o Criado a ser atravessado por este desejo visceral». O primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura apelou à valorização da espiritualidade da sede, mais que as estruturas: «Talvez precisemos de redescobrir o desejo, a sua itinerância e abertura, em vez das codificações em que tudo está previsto, estabelecido, garantido. A experiência do desejo não é um título de propriedade ou forma de possessão; é antes uma condição de mendicidade. O crente é um mendigo de misericórdia». A concluir, o P. Tolentino dirigiu-se em particular aos pastores, chamando-os à reconciliação com a sua vulnerabilidade, e recordou a advertência do papa Francisco: «Uma das piores tentações é a auto-suficiência e a auto-referencialidade». Ao contrário, abraçar a própria vulnerabilidade e aceder ao desejo de ser reconhecido e tocado como o leproso que foi ter com Jesus (cf. Mateus 8, 3), como a sogra de Pedro na cama com a febre (cf. Mateus 8, 15), como a mulher que há 12 anos sofria de hemorragias (cf. Mateus 9, 20), como aqueles que gritavam «Filho de David, tem piedade de nós!» (Mateus 8, 27)." Fonte, Marco Guerra, in Vatican News, Trad. / edição: SNPC

Estamos «tão próximos da fonte e andamos tão longe»

Segunda meditação do P. Tolentino Mendonça ao papa (síntese), tendo como fonte Gabriella Ceraso, in Vatican News Trad . / edição: SNPC A segunda meditação proposta pelo P. José Tolentino Mendonça para os exercícios espirituais da Quaresma do papa Francisco e da Cúria Romana, apresentada na manhã de hoje em Ariccio, próximo do Vaticano, centrou-se no tema “A ciência da sede”. A promessa de Deus diante da escassez humana A última frase pronunciada por Jesus no livro do Apocalipse é um convite: «Quem tem sede, venha». Foi desta passagem que o vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa desenvolveu a sua reflexão para guiar os participantes a compreender os contornos da «abundância» e «gratuidade» de vida que o filho de Deus oferece ao ser humano e a valorizar hoje a sua resposta. Jesus promete-nos saciar a sede quando reconhecemos que somos «incompletos e em construção». Ele sabe quantos são os obstáculos que nos travam e quantas são as «derivas que nos retardam». Estamos «tão próximos da fonte e andamos tão longe». No desejo e na sede estão dois sentimentos em contraste: a atracão e a distância, o ardor e a vigilância. Por isso a pergunta a colocar é: desejamos Deus? Sabemos reconhecer a nossa sede? Damo-nos tempo para a decifrar? Não é fácil reconhecer a sede de Deus A partir destes questionamentos o poeta e biblista percorreu um trajeto que foi da Bíblia aos textos do dramaturgo romeno Ionesco, passando pelas páginas do “O principezinho”, de Saint-Exupéry, para evidenciar os contornos efetivos da sede como necessidade física, como reconhecimento dos nossos limites, da nossa vulnerabilidade extrema. «A sede priva-nos de respirar, esgota-nos, desgasta-nos. Deixa-nos sitiados e sem forças para reagir», afirmou, «leva-nos ao limite extremo.» «Percebe-se como não é fácil expor-se à sede.» Se tivéssemos de contar a parábola da nossa sede, prosseguiu, talvez emergissem os traços de Jean, o protagonista masculino de “A sede e a fome”, de Ionesco. É uma figura devorada por um «infinito vazio», por uma inquietação que nada parece poder aplacar e que o torna num «homem sem raízes, nem casa, incapaz de criar laços, perdido no vazio do labirinto em que escuta apenas o rumor solitário dos próprios passos». A sede insatisfeita do homem de hoje Eis a sede do homem de hoje. Uma sede que, explicou o P. Tolentino, «se transmuta numa enorme insatisfação, na desafeção em relação àquilo que é essencial, numa incapacidade de discernimento». O consumismo, hoje, não é apenas material, é também espiritual, e o que se diz de um ajuda a compreender o outro. O facto é que as nossas sociedades, que «impõem o consumo como critério de felicidade, transformam o desejo numa armadilha»: de cada vez que pensamos apagar a nossa sede numa «montra», numa «aquisição», num «objeto», a posse comporta a sua desvalorização, e isso faz crescer em nós o vazio. O objeto do nosso desejo é um «ente ausente», é um «objeto sempre em falta». Por isso, «o Senhor não cessa de nos dizer: “Quem tem sede, venha; quem deseja, beba gratuitamente a água da vida”». Recoloquemos em Deus a nossa sede Há muitas «maneiras de enganar as necessidades e adotar uma atitude de evasão espiritual sem nunca tomar consciência de que estamos em fuga», apontou o P. Tolentino, que aludiu às «sofisticadas razões de rentabilidade e de eficácia» que substituem a «auscultação profunda do nosso espaço interior e o discernimento da nossa sede». E continuam a não existir «comprimidos capazes de resolver mecanicamente os nossos problemas». Daqui partiu o convite conclusivo da primeira meditação do segundo dia do retiro quaresmal do papa Francisco e dos seus colaboradores: abrandemos o «nosso passo», «tomemos consciência das nossas necessidades», sentemo-nos à mesa da fé, não por motivos materiais ou económicos, mas «por razões de vida». A sede «de relações, de aceitação e de amor» está presente em cada ser humano, é um património «biográfico» que somos chamados a reconhecer e do qual dar graças. Não é uma coisa banal, e por isso «recoloquemos em Deus a nossa sede».