quarta-feira, 21 de março de 2018

Hoje à noite

no Centro Cultural de Cascais, o dia da poesia é assinalado com a leitura de poemas de Carlos de Oliveira feita por Susana Borges. Aqui fica um dos seus poemas que muito me tocou na juventude; seu título é "Bolor": "Os versos/ que te digam/ a pobreza que somos,/ o bolor nas paredes/ deste quarto deserto,/ o orvalho da amargura/ na flor/ de cada sonho/ e o leito desmanchado/ o peito aberto/ a que chamaste/ amor."

terça-feira, 20 de março de 2018

Refere Filoxeno de Mabug (?-c. 523)

bispo da Síria, num Carta sobre a vida monástica: Aprende e vê, meu irmão [...], que há no deserto muitas serpentes que mordem a multidão dos teus pensamentos, e que são: injúrias, difamações, angústias, murmúrios, disputas, calúnias que são lançadas contra ti. E talvez no princípio esteja a... inveja.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Ruy Belo: Aventura espiritual intensa

Importa tomar Ruy Belo (27.2.1933-8.8.1978) como um dos escritores espirituais do séc. XX português. E sem pretender contornar as veementes e sucessivas afirmações do poeta, que nos orientariam num sentido diferente. Por exemplo, em 1970, no prefácio a “Homem de palavra(s)”: «O clima do livro já não é o da fé, aliás perdida» ou, em 1972, na reedição de “Aquele grande rio Eufrates”: «todo este livro foi escrito num clima a que não só já não tenho acesso hoje em dia como espero não o voltar a ter». Só que o novo “clima” em que o poeta se move, no começo da década de setenta, é de resistência àquilo que o catolicismo, na sua opinião, simbolizava enquanto servidor do ordenamento político e cultural vigente. Talvez fosse agora tempo de começar a olhar esta poética naquilo que ela também é: aventura espiritual intensa como poucas, colóquio interior, despojado mesmo quando a voz tinha a energia sagrada das falas ininterruptas, ponte estendida no território de chamas que é essa quase circularidade entre presença e silêncio, entre dúvida e crença, dialética que aproxima a aridez trágica da passagem do tempo desse «no sé qué», de que João da Cruz falava e que nos romances de Bernanos e Graham Green, que Ruy Belo leu, recebia o nome de Graça. Um dos seus poemas, “Nós os vencidos do catolicismo”, deu o nome a uma geração que, tendo-se distinguido por um grande empenhamento eclesial, se afastou em desilusão e rutura. Vale a pena, à distância de alguns anos, tornar a esse poema surpreendente: «Nós os vencidos do catolicismo que não sabemos já donde a luz mana haurimos o perdido misticismo nos acordes dos carmina burana Nós que perdemos na luta da fé não é que no mais fundo não creiamos mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos Já nenhum garizim nos chega agora depois de ouvir como a samaritana que em espírito e verdade é que se adora Deixem-me ouvir os carmina burana Nesta vida é que nós acreditamos e no homem que dizem que criaste se temos o que temos o jogamos ”Meu deus meu deus porque me abandonaste?”» O primeiro verso retoma a formulação, também ela geracional, «vencidos da vida», numa equivalência que sublinha a importância da experiência aqui em jogo. Experiência descrita como derrota e perda. De um saber («não sabemos já»); de uma condição («o perdido misticismo», «perdemos na luta da fé»); de uma estruturante certeza («não lutamos já firmes», «duvidamos»). Como se diz, a crença não deixou de existir, mas recuou para o território íntimo, «mais fundo», pois «nenhum garizim nos chega agora». Pelo poema irrompe, inesperado, o capítulo quarto do Evangelho segundo João. Aí Jesus, na ausência dos discípulos, dialoga com uma mulher samaritana, transgredindo o código judeu de conduta. À samaritana, Jesus anuncia que não é no Templo de Jerusalém ou no Santuário samaritano do Monte Garizim que se deve adorar a Deus: «os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade». Ora, esta irrupção evangélica, é tanto mais espantosa quanto ela conta a construção da fé, em Jesus, não a sua perda, por parte de um sujeito social e religiosamente incorreto (a mulher samaritana). Outra referência são os «carmina burana», a monumental coleção de líricas e cantos medievais, de origem vária, que deve o seu nome à Abadia Beneditina de Beuron (Alemanha). Este repositório responde ao gosto do “vagare”, próprio dos estudantes, laicos ou eclesiásticos, dos “studia” conventuais. É uma mistura fascinante de cristianismo e paganismo, de espírito e matéria, de finura e vulgaridade, de filosofia e puro passional. Lado a lado, convivem o canto gregoriano, a melodia trovadoresca e a sátira popular. Alvo do burlesco, porém, não é a experiência espiritual autêntica, mas os fingimentos, as falsas contrições, a mera representação da devoção ou da virtude. Os “carmina burana” não são, afinal, figuras de substituição do «perdido misticismo», mas de purificação pelo abalo que o seu riso traz a uma religiosidade institucional, socialmente instalada, donde a aventura interior está ausente. Estamos, de novo, à procura do espírito e da verdade. E a parte final do poema, guarda-nos a maior surpresa. O poema que até aqui parecia apenas uma declaração, revela ter um destinatário. O mesmo do Salmo 22, que Jesus grita na hora da cruz: o próprio Deus, aqui invocado repetidamente, «meu deus, meu deus». E aludindo ao «abandono» de Deus, o poeta faz a composição transfigurar-se, pois o que parecia ser uma perda do sujeito é agora atribuído a esse escândalo teológico, por excelência, que é o silêncio de Deus. José Tolentino Mendonça [à semelhança de textos anteriores, partilho do site da Pastoral da Cultura]

Este mundo não é a conclusão

«Este mundo não é a conclusão./ Há um seguimento para além -/ invisível, como a música -/ mas forte, como o som -/ acena, e por isso escapa -/ a filosofia ignora-o -/ é a intuição -/ que deve finalmente penetrar o enigma.» Deixou-nos 1775 poesias de extraordinária intensidade e fragrância. É Emily Dickinson, uma das poetisas que mais admiro, nascida em 1830 numa cidadezinha do Massachusetts: lá vive quase sempre, num cenário intacto de céus luminosos e florestas silenciosas, e lá morre, em 1856. Dela escolhi alguns versos sobre a morte, um tema “forte” que mereceria algum espaço durante estes dias quaresmais de reflexão. A sua fé era íntima, profunda e lacerante. Com efeito, escrevia: «É muito mais grave perder a fé/ que um património -/ porque este pode ser renovado,/ a fé não». Emily olha para além do horizonte da morte, esse «seguimento» da vida semelhante a uma música que aprecias, sentes viva e palpitante, mas que também te escapa. A filosofia, por si só, apesar do esforço de titãs do pensamento como Platão, não consegue dar-te evidências definitivas. É a «intuição» da fé que consegue resolver o enigma. Dickinson vai mais longe e confia-se a Cristo: «Eu vos digo - assim disse Jesus -/ que existe aqui na Terra uma espécie/ que não conhecerá o gosto da morte -/ se Jesus disse a verdade/ não preciso de outras garantias -/ porque a afirmação do Senhor/ não se pode contradizer./ Disse-me Ele que a morte estava morta». Um desafio árduo e corajoso que nos faz avançar dia após dia no caminho da vida, agarrados ao fio da esperança, até ao momento em que Cristo dirá, a nós e à “pequena” Emily: «Sabei que o mais pequeno/ é reputado o maior no céu./ Habita a minha casa!». P. (Card.) Gianfranco Ravasi In Avvenire Trad.: SNPC

Entre filosofia e teologia, o desafio da alteridade

Na história do pensamento ocidental, teologia e filosofia coexistem tão profundamente que se podem descrever como «inseparáveis, nunca unidos». Para mais, elas descobrem uma nova solidariedade perante os desafios do nosso tempo. O que torna hoje filósofos e teólogos particularmente próximos é a experiência de uma pobreza comum diante da perceção difusa na cultura contemporânea de uma radical ausência de pátria, da ausência de um horizonte partilhado em relação ao qual se concebe o etos [conjunto de costumes e práticas de um povo], não só como práticas e costumes, mas também como enraizamento e morada, fundamento do viver, agir e morrer humanos. Este sentido de adeus, esta fragilidade e fraqueza, são o lugar em que filósofos e teólogos já não se podem confrontar ou combater-se movidos por certezas fáceis, quase como se cada qual possuísse o bastão da verdade com o qual julga o outro. A lâmina da dor do tempo, o desafio deste elusivo estado líquido (cf. Zygmunt Bauman), que tudo parece pervadir, não pode deixar de nos interrogar sobre a mutação epocal que estamos a viver. Teologia e filosofia mais pobres, menos ideológicas, são precisamente por isso mais abertas à procura, e assim acomunadas na experiência e na necessidade de pensar, ambas, na alteridade que as causa, tal como a modernidade as tinha provocado com a sua ambição de compreender a totalidade do real no exercício da razão adulta e emancipada. O desafio da alteridade parece oferecer-se, sobretudo, em três formas, como o lugar onde filósofos e teólogos podem hoje encontrar-se: o maravilhamento, a agonia e a ética. No primeiro a alteridade apresenta-se de maneira pura e forte: ela nasce do impacto com o Outro, com a sua presença indedutível e não programável, com a sua ausência inquietante. O maravilhamento, que é ao mesmo tempo assombro e temor, é, como observa Platão, a paixão do filósofo, mas é também – como sublinha Karl Barth na sua “Introdução à teologia evangélica” – a condição do teólogo. O maravilhamento nasce do saber de não se possuir o Outro a partir de um pensamento, que sabe ser por natureza transcendente em relação ao Outro: «Denken heißt überschreiten», afirmava com razão Ernst Bloch, pensar é transgredir, não se deter na tranquila posse, mas deixar-se alcançar e provocar pelo novo e pelo diferente. Escrevia Friedrich W.J. Schelling: «É uma sentença conhecida de Platão: a paixão do filósofo é o maravilhamento. Se essa sentença é verdadeira e profunda, então a filosofia, em vez de se limitar ao que deve ser entendido como necessário, preferirá sentir a tendência de passar do que se deve considerar como necessário, o que, portanto, não provoca nenhum maravilhamento, àquilo que está fora e acima de todo o exame e conhecimento necessários; não encontrará qualquer paz antes de chegar a algo que seja digno de um maravilhamento absoluto». Quem vive a dificuldade do conceito sabe que está a lidar com a alteridade pura e forte do Outro. Este Outro o teólogo experimenta-o não apenas na forma de uma escuta intelectual, mas também na densa e provocatória experiência do divino Outro, que é a oração. Não menos pode o filósofo abrir-se à radical alteridade do Outro no assombro do seu interrogar-se sobre o abismo do início, onde se experimenta o maravilhamento consciencializado do pensar (o assombro da razão). A agonia é igualmente um rosto da experiência da alteridade: a relação com o Outro é luta. A agonia é experimentar em si a fronteira a atravessar, apercebida na forma da interrogação, que incessantemente provoca o pensamento a transcender-se. É esta a razão especulativa mais profunda da copresença da fé e da não crença em cada um de nós, porque todos, no momento em que somos não negligentes no pensar e nos abrimos até ao fundo à alteridade do Outro e ao seu incessante colocar-nos em questão, vivemos a inquietude da sua elusiva alteridade. Não se dá apenas um existir perante o Outro, que vem a nós e nos perturba, seja ele entendido como indiferença do Início ou como Deus que vem, mas também um existir com o Outro na luta, o viver o pensamento como fadiga e paixão. O cristianismo, enquanto experiência do divino Outro que vem a nós, é por natureza agonia, como sustenta Miguel de Unamuno. A teologia será, portanto, levar ao conceito a agonia do viver cristão, e filosofia pensar a agonia do próprio pensamento. Nesta condição agónica, filósofo e teólogo encontram-se: o pensamento nasce da dor, e sem a interrupção provocada pela ferida do mal e da morte não se daria o pensamento. «Da morte, do temor da morte, toma início e eleva-se todo o conhecimento acerca do Tudo», escreve Franz Rosenzweig na abertura de “A estrela da redenção”. É também por esta razão que não se pode fazer pensamento sem ética: esta não é apenas o compromisso de existir diante do Outro e de resistir na luta com o Outro, mas também a consciência de existir para os outros. A ética é, portanto, o campo do terceiro grande desafio da alteridade, dirigido aos filósofos e teólogos na dor do tempo presente, na ausência da pátria: o desafio no plano do agir moral. Os outros não devem ser entendidos apenas como uma produção do nosso pensamento, como limite ou desafio da nossa liberdade e das nossas escolhas, mas também e acima de tudo como pergunta radical, fundamento do existir eticamente responsável, da vida como correspondência. Está aqui em jogo o outro invocado por Emmanuel Lévinas como crise da metafísica a favor de uma sua superação na ética. É ainda mais radicalmente o outro da “caritas” evangélica, do mandamento "semelhante" ao primeiro, participativo e realizador dele, que é o mandamento do amor. Os outros desafiam filósofos e teólogos a superar a falsa separação entre teorética e ética: a dimensão moral investe hoje a teorética de maneira forte, como questão de existir e pensar a existência não só em si mesma, mas para os outros. Portanto, nestas frentes do maravilhamento, da agonia e da ética estamos hoje todos mais pobres: a condição de perda, debilidade, fragilidade que daí deriva pode ser acolhida como desafio a escapar, a cair e, portanto, a não pensar, ou pode ser vivido como uma provocação para um pensamento não negligente, que tenha a coragem da solidão na qual se dê espaço para o maravilhamento e que aceite viver a responsabilidade pelos outros no primado do amor. D. Bruno Forte Arcebispo de Chieti-Vasto, Itália In L'Osservatore Romano Trad.: SNPC