segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A propósito de Cézanne




Discursos vários, no domínio da epistemologia e, em particular, do influente jornalismo cultural, evocam a modernidade que vivemos através de recorrências semânticas como mudança de paradigma, continuidade ou ruptura, ansiedade ou euforia, utopia ou distopia. Com maior ou menor intensidade, o seu eco repercute em diferentes esferas do social, nomeadamente na educação e no ensino. O ensino a distância revela-se um actante privilegiado desses ecos, pelo que será pertinente analisar a legitimidade desse léxico. Para uma breve reflexão em torno deste tópico, começo por vos convidar a um olhar sobre Cerejas e Pêssegos, um quadro pintado por Cézanne entre 1883 e 1887.
Todo aquele que se debruça minimamente sobre a cultura e o universo artístico do século que findou, é confrontado com a inevitável presença de Cézanne, e deste quadro em particular. De tal modo que, a par de Ceci n’ est pas une pipe, de Matisse, ele funciona como um ícone desses tempos. Justifica-se esta designação – ícone - através de um, entre aspas, “erro” mimético. Onde reside esse “erro”? Este quadro ignora, mais correcto seria dizer, sabota, a noção de perspectiva, a ilusão de profundidade, e de consequente tridimensionalidade, herdadas da Renascença. “N[est]a natureza-morta ... , o prato de cerejas está de tal modo inclinado para a frente que se tem a impressão de a estar a ver de cima. Passa-se a mesma coisa com a parte traseira da mesa, ao passo que a parte da frente está pintada de tal maneira que se julga estar à mesma altura. O prato de pêssegos e o pichel estão igualmente representados numa perspectiva mais chã.” (Becks-Malorny, 2001: 55) Porquê, perguntar-se-á. Porque Cézanne não reproduz a realidade, ele compõe uma realidade. Para Cézanne, “Não são os objectos próprios que devem atrair a atenção, mas a disposição das colorações e das formas segundo a concepção do pintor. Mediante esta maneira de ver subjectiva,..., Cézanne cria uma nova realidade.” (Ibidem, 56) Com efeito, é toda uma tradição de representação, radicada na Antiguidade clássica e prolongada na história da cultura ocidental, que Auerbach analisa no seu clássico Mimesis, aquela que, neste icone, é superada.
Registe-se outro aspecto, a banalidade, que designaria “democrática,” do referente. Para criar “um novo plano da realidade,” Cézanne “não tem necessidade nem de objectos artísticos nem de decorações sumptuosas: as coisas mais simples são aquelas que melhor o ajudam a concretizar as suas concepções sobre a profundidade, a consistência e o peso numa estrutura plana.” (Ibidem) Ora, sensivelmente na mesma altura, do outro lado do oceano, numa pequena cidade da Nova Inglaterra, um músico americano, Charles Ives, antecipava as rupturas que Schonberg iria formalizar no início do século XX. Não é, todavia, isso que interessa para esta reflexão. Interessa, sim, aquilo que ele realiza no segundo movimento da peça Três Lugares na Nova Inglaterra, intitulado “Putnam’s Camp, Redding, Connecticut.” Trata-se de uma fantasia composta a partir de uma reminiscência da infância de Ives. Durante uma celebração do 4 de Julho, este observou duas bandas que se encontravam em extremidades opostas do parque. Cada uma seguia o seu percurso em direcção ao local onde Ives se encontrava, criando, no momento em que ambas se cruzaram, uma impressionante dissonância. O compositor retoma este episódio na peça, representando o intimismo do jovem através de instrumentos de sopro, e daquilo que, convencionalmente, se considera o registo da música erudita. Gradualmente, o tecido musical erudito é invadido por um registo popular; num determinado instante, quando as bandas se cruzam na mente do sujeito, dá-se uma fusão entre registos distintos, o erudito e o popular; aspecto fundamental: cria-se, então, uma nova dimensão estética. Coloca-se, assim, a questão: como definir este novo registo artístico, já que ele não se enquadra nos cânones, na convenção?
Também sensivelmente nesta altura, Oscar Wilde escreve um ensaio, que devia, aliás, ser objecto de leitura compulsiva nos cursos de comunicação social, intitulado “A Alma do Homem sob o Socialismo.” Neste ensaio, Wilde detém-se sobre aquele que considera ser não já “o quarto poder”, mas, como ele próprio afirma, “o único poder:” o jornalismo. A acção e o predomínio do jornalismo na configuração de um ethos, são aqui identificados através da interacção específica que o jornalismo estabelece com um novo conceito: a “opinião pública.” De imediato se entende que este novo espaço e discurso de poder decorre de uma, também ela, nova realidade social, a massificação emergente e participando do paradigma que as revoluções setecentistas, em particular a americana, configuraram. Refiro-me, naturalmente, ao liberalismo, na sua acepção radical; ao liberalismo que delineou o quadro institucional que hoje norteia o ethos ocidental, e que outros horizontes, ainda arcaicos, a ele alheios, com dificuldade mimetizam.
Por outro lado, o discurso massivamente veiculado pelo jornalismo assenta a sua acção numa ênfase no presente. Recorde-se que o conceito operatório, a nível do tempo, resultante das mencionadas revoluções setecentistas, é o presente, o qual deve também ser entendido no âmbito de um declínio, o das metanarrativas, e de uma ausência, a do centro único irradiador da norma, como, por exemplo, o das denominações religiosas, das igrejas. Este aspecto é particularmente relevante pelo facto de estas veicularem, igualmente, uma memória e uma tradição, as quais, por seu turno, conferiam coesão social e justificavam uma identidade; eram, portanto, factores de equilíbrio. A tendencial ausência do passado significa, deste modo, uma diluição da memória e uma crise identitária; assim se gera a ansiedade, a angústia, o receio face ao futuro. Estudos sobre a imprensa, a biografia, a diarística e o registo epistolar britânicos oitocentistas, registam a sistemática reiteração de um estado de espírito marcado pela ansiedade face à mudança.
O paradigma, então, emergente (liberal, democrático e moderno) exigiu, portanto, aquilo que Piaget designou como reequilibração, necessariamente colectiva. Este paradigma, nascendo, como referi, no século XVIII, percorre todo o século XIX, e consolida-se já em finais do século XX, com a diluição dos discursos políticos, na acepção foucauldiana, que pretenderam regressar a um passado em que um centro único, configurava, irradiava e preservava, com notável e eficiente zelo, o poder. Ora, a reequilibração passará, entre outros aspectos, pela reformulação da noção de poder e pela diversificação dos centros irradiadores. Daí também que o século XIX, onde o paradigma emergente se expande, seja uma época marcada por um sentimento de crise, ao qual acrescem sentimentos antitéticos, de ansiedade e motivação, de angústia e esperança, de perplexidade e de confiança. Curiosamente, uma obra colectiva lançada há uns dias atrás na Reitoria da Universidade de Lisboa, intitula-se Crises em Portugal nos Séculos XIX e XX. No ensaio “A Noção de Crise e a sua Aplicação em História Moderna,” Maria do Rosário Themudo Barata recorda que a “noção de crise é aplicada ao século XVII por Paul Hazard ..., n[um ensaio] ... que ele intitulou ‘Crise da Consciência Europeia, ...’ e em que abordou as grandes transformações psicológicas; os racionais contra as crenças tradicionais; as tentativas de reconstrução para um modelo novo de humanidade; os valores imaginativos e sensíveis.” (Barata, 2002: 16) Trata-se, portanto, de um processo vasto e complexo de reequilibração face aos requisitos de uma nova realidade.

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