sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Moita Macedo (parte III)

"Referi no início que faria um breve tributo. Uma personagem de Avalon, de Barry Levinson, repete ao longo do filme: “Se não recordas, esqueces”. Sem pretender entrar nos campos daquilo que os franceses designam ego-histoire, quero recordar aqui uma manhã de Agosto de 1971. Faço-o no espírito do testemunho que, como referia Tolentino Mendonça, há umas semanas, ao integrar na nossa memória os que já partiram, dá sentido à nossa própria passagem por aqui. Tinha, então, quinze anos e estava de férias com os meus pais na Costa da Caparica. Ao passearmos pela praia, o meu pai encontrou um amigo que era pai de um colega meu do liceu. Embora provavelmente sem muito rigor científico diziam que, com a mudança da idade, eu tinha “dado um pulo.” Tinha, por isso, a mesma altura que tenho hoje e foi assim que olhava para o meu pai e para o amigo, naquilo que em linguagem cinematográfica se refere como plongé. Apesar da minha altura ser superior à dos intervenientes no diálogo, assisti, num reverente silêncio, à conversa de ambos, como se esperava de um adolescente naqueles tempos. Afinal eles tinham aquilo que, para mim, na altura, eram idades vetustas, um, 45 anos e o outro, 40. Além disso, ambos eram artistas e homens de resistência. Anos mais tarde encontrei em The Black Prince, um romance de Iris Murdoch, a expressão que ilustrava o que então sentia: “Reverencio grandes artistas e homens que dizem não aos tiranos.” Voltemos a essa manhã. Mais ao longe, o irmão mais novo do meu colega brincava junto ao toldo. É estranho como certos instantes, aparentemente banais, resistem na nossa memória. Quando eles se despediram, o meu pai disse-me: “O pai do teu colega é pintor.” Confesso que não tenho memórias particularmente eufóricas do liceu. Esses não foram, para mim, os Glory Days de que fala um músico americano; ou, pegando numa imagem vicentina, uma versão do Auto da Barca da Glória. Também não foram propriamente uma versão do Auto da Barca do Inferno, uma espécie de Buffy, a caçadora de vampiros, como referiu outro músico americano, em que o liceu, pejado de vampiros, é um portal para o Inferno. Para mim, eles foram mais algo de semelhante ao Auto da Barca do Purgatório, durante o qual, como no poema de Pedro da Silveira, as horas se arrastavam como lesmas. Não por culpa de outrem, devo dizer; nem de professores, que os tive muito bons, nem dos colegas, alguns dos quais ainda me acompanham. A eles devo momentos, rostos, que guardo na memória com gratidão. Um desses rostos é o do colega a que o meu pai se referia: o vosso irmão Pedro, meu companheiro de turma no quarto ano do liceu, então ainda em Massamá. E porque o quarto ano era então fatídico para muitos de nós, de novo meu colega de turma no nosso segundo quarto ano. E ainda no quinto, já no liceu de Queluz, hoje Padre Alberto Neto. Juntos, ainda no sexto e no sétimo anos, fizemos uma dupla quase imbatível no ténis de mesa. Hoje, ao falar da obra de Moita Macedo, do vosso pai, não podia deixar de lembrar com saudade o seu filho, o meu amigo Pedro, e também o Zé Luís, o dandy que os mais jovens, como eu, tentavam emular, e a vossa irmã Ana, todos eles vivendo hoje uma plenitude que também nós esperamos um dia conhecer."

domingo, 22 de dezembro de 2013

Moita Macedo (parte II)

"Curiosamente, quando transitamos para a obra pictórica de Moita Macedo, a evidência do rosto dilui-se. Fernando António Baptista Pereira, com a argúcia analítica que fez dele uma das vozes mais penetrantes sobre a arte em Portugal, abordou esta relação entre a palavra e a imagem em Moita Macedo. Contudo, importa continuar este trabalho de reflexão. Fá-lo-ei abrindo um caminho, o do aprofundamento da análise daquela que considero ser a seminal relação entre autobiografia estética e representação. Ainda antes de prosseguir importa acentuar que, em tempos que recusam a sistematização, Baptista Pereira teve a coragem de avançar com uma abordagem sistemática e tópica da obra do artista. Por seu turno, Vítor Serrão, figura cimeira da História de Arte entre nós, assinalou, com o brilhantismo que lhe é habitual, quais os seus tópicos nucleares. Numa obra que oscila entre a abstracção e a representação, e em que as fronteiras entre ambas se diluem, Baptista Pereira identifica tópicos como “Os outros Eus”, “as Tauromaquias”, “os Quixotes”, “Cristos e Calvários”, “Caravelas”, “Cidades”. É neles que o sujeito, que um rosto, uma identidade, se projectam. O rosto que se explicita na palavra, parece denegar aqui a sua presença. Um dos momentos em que essa denegação será mais evidente, é, na minha opinião, um quadro de 1976, intitulado Um quasi auto-retrato. Uma das vertentes que mais me toca na obra de Moita Macedo é aquela em que predomina a ausência de um referente - chamemos-lhe abstracta; aquela em que a pintura, claramente devedora do Modernismo, é apenas isso, pintura. Escreve a propósito o crítico de arte norte-americano, Clement Greenberg: “Onde os Velhos Mestres criaram uma ilusão do espaço que nos podemos imaginar a palmilhar, a ilusão criada por um modernista é a de um que nós podemos olhar, podemos percorrer apenas com o olhar. ... Com Manet e os impressionistas ... a questão deixou de ser definida como oposição entre cor e desenho, e tornou-se uma questão de pura experiência óptica ...” (Clement Greenberg, “Modernist Painting”, apud Fried 20) É, portanto, uma relação diferente entre pintura e observador, uma relação marcada pela opticalidade, que se impõe. Gostaria de a abordar em Moita Macedo. Gostaria de o fazer na esteira do crítico de arte que mais me inspira, o norte-americano Michael Fried, e do seu conceito de absorpção. Gostaria de meditar sobre aquela vertente não figurativa da obra de Moita Macedo, partindo da análise de Forma, enquanto estrutura pictórica, que emerge do reconhecimento dos limites do quadro. Gostaria de ver em que medida, também para ele, a forma se terá ou não tornado algo de diferente do que era na pintura convencional – um “objecto de convicção” (Fried 78). Gostaria de identificar qual a relação de continuidade entre o exterior e o interior. Ou ainda como se pode reconhecer uma sintaxe através da análise da relação entre elementos arbitrários (sem sentido)? E que tipo de experiência cognitiva se suscita? Não temei, porém, pois isso exigiria muito tempo. E ele escasseia. Deixarei, portanto, essa reflexão para outra oportunidade. Regressemos, então, a Um quasi auto-retrato. O auto-retrato constitui uma tradição pictórica particularmente relevante. Nela destacaria duas dimensões algo recorrentes, a da interpelação do espectador, através do olhar do retratado, e a dramática. Com efeito, no auto-retrato é recorrente o olhar do artista convocando aquela que o observa para a sua intimidade, ou antes, para a intimidade que ele deseja exibir. Artistas como Dürer fizeram-no amiúde em vários momentos da sua vida, revelando determinadas singularidades, sem ignorar a presença do espectador. Mesmo quando narcisicamente diluído em instantes solenes como a Natividade, em Boticelli, ei-lo que, exibindo-se num auto-retrato, nos interpela. Implícita ou explícita a dimensão dramática emerge no auto-retrato. Veja-se a ironia de Judite com a cabeça de Holofernes, de Cristofano Allori, onde, sob a narrativa bíblica, desponta a auto-biográfica: Allori auto-representa-se como Holofernes, enquanto a amante que o abandonara, é figurada como Judite, acompanhada por sua mãe, ou seja, pela sogra desejada. Nenhum destes aspectos surge em Um quasi auto-retrato. Afinal, porque ele é quasi, porque não chega a ser assumido como pertencente à convenção do género auto-retrato, a representação do artista, dos seus traços, da sua expressão, dá lugar a uma massa, transformada em índice onde o corpo, apenas delineado, sugerido, num movimento algo furtivo, se insinua. Neste quadro, o testemunho é indiciado, é indirecto. Nada aqui se evidencia da estratégia confessional. Será este, porventura, o verdadeiro auto-retrato? Aquele em que o corpo se transformou no objecto, na textura da tinta, na própria matéria que, ela sim, dá corpo, vida, ao objecto artístico. Poderá, afinal, este quadro, algo singular e excêntrico, em termos tipológicos, face ao conjunto da sua obra, ser uma espécie de arte poética sua? A figuração de uma síntese?"

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Uma partilha

Porque este é um espaço visitado por pessoas que partilham afinidades comigo, ou com quem eu partilho afinidades, é
natural que exista uma dose simpatia. E porque me regozijo com as alegrias dos meus amigos, estou certo que também se irão regozijar quando elas me batem à porta. A notícia que vos trago hoje tem a ver com o facto de a Academia Portuguesa da História me ter concedido uma honra que muito me sensibilizou ao acolher-me no seu seio como académico honorário. Aqui fica a notícia, esperando que ela não vá alimentar, entre outros, que não entre vós, o pecaminoso sentimento que deu título ao meu romance mais recente. Até breve!

Moita Macedo (parte I)

Começo hoje a inserir neste espaço a minha intervenção na abertura da exposição de pintura de Moita Macedo. Trata-se de uma obra que importa resgatar do esquecimento e, talvez, de um certo confinamento a um espaço político-cultural. A sala Portugal da Sociedade de Geografia, onde está a exposição, é um dos tesouros menos conhecidos de Lisboa. Por isso, de uma cajadada matam dois coelhos: vêem uma excelente exposição e conhecem um espaço lindíssimo. Aqui fica, então, a primeira parte do texto que apresentei:
"Dividi a minha intervenção em duas partes: começarei por me debruçar sobre uma questão teórica, a da relação entre palavra e imagem, sobre a qual tenho consagrado uma parte relevante da minha investigação ao longo de trinta anos, e concluirei com um breve tributo. O facto de o artista que hoje homenageamos ser também um artífice da palavra, suscita naturais interrogações face ao eventual diálogo entre essas suas vertentes criativas. Deve-se, aliás, ao próprio Moita Macedo a enunciação desse diálogo radical: “Pintei versos, escrevi quadros.” Nesta frase reconhecem-se os ecos clássicos do grego Simónides de Ceos - “A pintura é poesia silenciosa, a poesia é pintura que fala”, e do romano Horácio quando, séculos mais tarde, proclamaria na sua Arte Poética: “Ut pictura poesis”- tal como a pintura, também a poesia. Seria necessário esperar por Laocoön, o ensaio setecentista de Lessing, para que as duas tradições artísticas - as que surgem ancoradas na palavra e as que se afirmam pela imagem, conhecessem a famosa distinção: artes do tempo e artes do espaço. Coloca-se, deste modo, uma questão: ao superar a dicotomia lessinguiana, como sugere a declaração “Pintei versos, escrevi quadros”, Moita Macedo estará a exprimir uma afinidade radical entre as duas expressões artísticas por ele praticadas? Gostaria, assim, de vos propor uma brevíssima reflexão em torno deste tópico. Ao lermos os poemas de Moita Macedo emerge na nossa memória uma tradição poética que será facilmente identificável por parte daqueles que viveram ou conheceram os círculos intelectuais de resistência ao regime, em particular, na década de sessenta do século passado. São inúmeros os poetas que, de imediato, recordo; nomes hoje praticamente esquecidos como Vicente Campinas, Mário Gonçalves, Francisco Viana, Bação Leal, ou mesmo Daniel Filipe, ou não esquecidos, como Manuel Alegre e, numa geração mais recente, José Jorge Letria. Nomes habitualmente associados a um neo-realismo tardio e que, por isso mesmo, pela sua filiação política, não raro são confinados ao marxismo. No entanto, mesmo quando trazemos à mente nomes da geração anterior, como Sidónio Muralha, aquilo que me parece ser mais evidente é a dimensão confessional; a afirmação de uma sensibilidade face ao mundo que, por muito que pudesse custar a esse marxismo, e a eles próprios, está mais próximo de um certo pathos existencialista que, na nossa sensibilidade colectiva marcada pela saudade, declara a melancolia do indivíduo face a uma realidade constrangedora. Talvez estes poetas estejam, afinal, mais próximos do Santo Agostinho, das Confissões, ou de Rousseau, também o das Confissões, do que de Marx. Por isso mesmo, creio que a designação que melhor os identifica será a de confessionalistas. Curiosamente, foi nos Estados Unidos que a tradição poética confessional se celebrizou na década de 1950, não por acaso em Boston, nessa cidade onde a memória puritana ainda persistia, sob a égide da psicanálise freudiana. Sylvia Plath será porventura o nome mais conhecido, entre nós, dessa sensibilidade literária. Para ela, como para poetas como Robert Lowell, Freud desvendou o indivíduo como espaço de existência dramática. Já para os poetas portugueses antes referidos, a dimensão dramática decorre, como assinalei, das circunstâncias sócio-políticas envolventes. Daí que a dimensão confessional se exiba como melancólico testemunho do poeta. É deste modo que ela se exibe naquele que, para mim, é a voz mais forte dessa tradição, Daniel Filipe; curiosamente, aquele a quem Moita Macedo dedica “Quando morre um poeta”. Este poema de Moita Macedo denuncia uma óbvia afinidade face a Daniel Filipe; uma afinidade estética, política e, reitero, existencial, firmada numa partilha radical, em termos etimológicos, do quotidiano. No entanto, o reconhecimento dessa afinidade não nos deve constranger em termos de leitura. Embora o testemunho seja evidente nos poemas de Moita Macedo, essa exibição de um rosto, de uma sensibilidade, que o testemunho pressupõe, não funciona como derradeiro limite do texto. Não estou a denegar a existência dessa vertente, central em versos seus como os intitulados “Desejo ao poema”: Queria// Que os meus poemas fossem pedras/ Que à noite,/ Tradição arremessasse!// Queria// Que cada pedra fosse uma canção/ Que o povo cantasse! / Essa vertente é, de facto, recorrente. Mas outra, eventualmente mais indirecta e reflexiva, deve ser lembrada. Veja-se o poema significativamente intitulado “Colagens”. Nele é a estética visual ancorada na palavra, aquilo a que a tradição ecfrástica grega designava enargeia, isto é, a vivacidade de representação do objecto através da palavra, que pontifica: N`elas/ Recortados, colados, estendidos/ Esfaimados e adormecidos/ Estão arautos despertados/ De ânsia de ideal, de ânsia dos/ sentidos/ N`elas/ Estão pedaços-de-Paula/ Lançados sobre as telas./ Nestes dois exemplos define-se um rosto: o do cidadão/poeta e o da artista. "

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Moita Macedo

Amanhã, 3ª feira, pelas 18h, na Sociedade de Geografia de Lisboa, é inaugurada uma exposição de Mota Macedo. Após a abertura segue-se um conjunto de intervenções de Guilherme de Oliveira Martins, António Valdemar, Tomás Paredes e minha. Aqui fica o convite para que apareçam.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Salmo 23(22),1-3a.3b-4.5.6.

O Senhor é meu pastor: nada me faltará. / Leva-me a descansar em verdes prados,/ conduz-me às águas refrescantes,/ reconforta a minha alma,// e guia-me por caminhos rectos, por amor do seu nome./ Ainda que atravesse vales tenebrosos,/ de nenhum mal terei medo/ porque Tu estás comigo./ A tua vara e o teu cajado dão-me confiança.// Preparas a mesa para mim/ à vista dos meus inimigos;/ ungiste com óleo a minha cabeça;/ a minha taça transbordou.// Na verdade, a tua bondade e o teu amor/ hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida,/ e habitarei na casa do Senhor/ para todo o sempre.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Eis um poema meu

sobre um quadro de Charles Allston Collins, intitulado Convent Thoughts. Faz parte de uma sequência de poemas que tenho vindo a escrever sobre quadros pré-rafaelitas, e que, espero, venha a dar corpo a um livro. Este poema, juntamente com outros quatro, foi publicado na revista Suroeste, apresentada há uma semana em Lisboa. Voilà:
Bom fim de semana!

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Maquiavel

está hoje em debate na Faculdade de Direito de Lisboa. Pelas 14.30h, participarei numa mesa-redonda que, segundo me disseram, contará com a presença de José Tolentino Mendonça, Pedro Mexia e Tiago Cavaco
. Sobre Maquiavel aconselho-vos o texto de Jorge de Sena incluído em Maquiavel, Marx e outros estudos, publicado pela Cotovia. Eis um excerto: "Como ninguém antes dele, Machiavelli foi o primeiro a declarar que o bem e o mal não têm sentido na vida sócio-plítica, se forem abstratamente dissociados; foi o primeiro a denunciar que a pureza das intenções é capaz de todos os crimes, exactamente como as intenções ínvias são capazes dos mais nobres actos; o primeiro, em suma, a apontar que são a reflexão e a experiência das acções humanas que possibilitam ultrapassar a antinomia entre o pensamento e a acção. sintetizando, na transformação de que o mal é apenas o bem que não soube, ou não quis, cumprir as suas promessas."

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Inesperada e excepcionalmente, pois é antes

de ter lido - algo que não é meu hábito, que recomendo A fé vive dos afetos, de José Frazão Correia. No entanto, aquilo que conheço do autor, nomeadamente intervenções e textos seus dispersos por aí, levam-me a colocar o seu livro na minha lista de leituras num curto prazo. Deixo-vos um belo texto seu que colhi no site da Pastoral da Cultura. Podereis, assim, ver que não vos defraudo. Atentem, em particular, mo passo que se inicia em "Maravilhados ou temerosos..."
Boas leituras! Os lugares e os ritmos mais elementares da existência humana, com seus cumes e seus abismos, a sua graciosidade e o seu custo, são os mesmos ritmos e lugares em que se dá e se vive a fé em Jesus de Nazaré. Em filigrana, já condensam e desenham o dom e o custo da fé num Deus que se nos dá, expondo-se por entre as possibilidades e fragilidades da nossa existência corpórea, sempre, por isso, situada na atualidade de um presente e no concreto de um lugar. Lembremos o nascimento e a morte, a paternidade e a maternidade, o sermos filhos e irmãos, a confiança e o temor, a culpa e a reconciliação, a aliança e a traição. Maravilhados ou temerosos pelo mistério inacessível dos inícios e do fim que nos envolve, não podemos deixar de viver entre a memória e a esperança, de estremecer diante da ingovernabilidade dos acontecimentos, de nos admirarmos diante do milagre da vida sempre, de novo, restituída. Com toda a sua complexidade e ambiguidade, é nestes lugares do nosso quotidiano que sempre se joga a existência de cada homem, de cada mulher e de cada grupo humano. Por isso, é também este o húmus da imagem que possamos ter de Deus - ajustada ou distorcida - e do ato de crer - realizado ou recusado - enquanto experiência densamente humana. Bem longe de ser um vago e cego arrepio da alma ou o resultado, claro e distinto, de uma demonstração lógica, a fé é sempre questão de vida - e de morte do medo de confiar
num outro e de se lhe confiar. É disposição vital e contacto corpóreo, por vezes dramático e doloroso, com Deus, Origem e Destino, que se nos expõe, também Ele, no corpo de carne de seu Filho. Seria muito pobre considerar a fé apenas como uma doutrina, a aceitar e a aprender cegamente. Ou, então, como um conjunto rigoroso de ritos a executar impecavelmente, ou como uma moral severa a cumprir escrupulosamente. Ou, ainda, como uma rica tradição religiosa a preservar fielmente. E seria ainda mais pobre se fosse tida como a solução instantânea para todos os problemas, mais ou menos alienada da realidade, mais ou menos ideológica, mais ou menos etérea. Garantiria tudo, a custo de quase nada, iludindo o lado fascinante, mas também tremendo, do mundo divino, e dispensando da real travessia das questões difíceis da existência e do custo que a vida sempre tem. Mas a fé, se é opção por um estilo humano de vida, grato e gracioso, que gera, por isso, individual e comunitariamente, modos concretos de ver, de pensar e de agir - não deixa, por isso, de implicar doutrina e rito, moral e tradição -, é, primeiro que tudo, disposição, dinamismo e encontro visceral com a paisagem, a palavra e o rosto de Deus revelado na história efetiva de Jesus. É encontro com a graça-do-Filho-de-Deus-que-salva, face a face (por vezes, corpo a corpo, porque o dom pode encontrar resistências), graça à qual, confiada e livremente, me abandono. Só porque a fé é questão de vida (e de morte), me poderá fazer viver, permanecendo firme. A fé-que-salva é, portanto, o reconhecimento afetivo e ponderado, continuamente grato, e o abandono livre, continuamente renovado, ao excesso do dom divino que, na história de Jesus, se revela digno dos afetos humanos mais caros e se oferece, assim, ao discernimento e decisão da liberdade, corporal e historicamente situada. Tratando-se de um laço vital com Jesus de Nazaré e, nele, com o Pai, no Espírito, renovado continuamente ao ritmo da vida concreta, não poderá ser menos do que um ato muito humano. Sendo gesto de abandono reconhecido e deliberado, afetivo e responsável, livre e generoso, de uma biografia que se reconhece agraciada, precisamente quando se vê visceralmente tocada e assinalada (talvez ferida) pelo dom de Deus oferecido em Jesus de Nazaré, a fé não poderia implicar menos que a totalidade de uma existência bem radicada no seu lugar. Não esqueçamos como os próprios discípulos, só quando são «“tocados” pela humanidade de Cristo», se tornam «capazes de “tocar” a sua divindade». Exatamente, porque «não existe outro acesso à divindade de Deus senão através da sua própria humanidade» (Mazza, 2008: 213). Bastaria abrir uma qualquer página da Sagrada Escritura, com seus contos e parábolas, mandamentos e orações, sabedoria e profecias, para testemunhar como é por entre os avanços e os recuos de um povo e as particularidades de tantas biografias que o Deus bíblico se expõe, lentamente, à difícil e admirável história humana. Nenhum nome o fixa. Nenhum lugar o aprisiona. Nenhuma narração o esgota. Porém, dá-se na contingência dos olhares que o entreveem, nas vozes que o invocam, nas biografias que lhe dão corpo, nos lugares de vida e de celebração que assinalam a sua passagem, nos silêncios que preservam a sua diferença. Por isso, temos a Escritura como testemunha lenta e plural do impacte corpóreo e do difícil pacto do divino com o humano - bênção já admiravelmente realizada e ainda promessa de um dom frágil a cumprir, até que Deus, em Jesus Cristo, chegue a ser toda a vida na vida de todos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

The untold history of the US

A série concebida por Oliver Stone será exibida durantes três sessões, no Sábado e no Domingo, no Monumental. A não perder. Estarei nas sessões das 14h e das 14.30h, de Domingo, para apresentar os episódios referentes aos tempos de Eisenhower, Kennedy (e Vietnam, claro), e Reagan. Aqui fica a informação. Bons filmes!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Camus em Nova Iorque

A percepção da grande urbe, por parte de Camus, através dos registos no seu Diário, eis o tópico da minha conferência que encerra o colóquio que decorrerá em Évora nos próximos dias 7 e 8. Com a memória de Crèvecoeur e de Tocqueville bem presente, claro. E o cinema, também! Aliás, como proclamou Jean Baudrillard em Amérique: «Ce n'est pas le moindre charme de l'Amérique qu'en dehors même des salles de cinéma, tout le pays est cinématographique.» (Baudrillard 111) Bom fim de semana!

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Sob o signo de Lou Reed,

mais propriamente de Halloween Parade, escrevi um minúsculo poema, intitulado Após a festa do
prazer
, que faz parte de Cidades de Refúgio, publicado em Outubro de 1991; faz, portanto, vinte e dois anos. São só cinco breves versos, mas com um fervilhar de tensões, da epidemia que então grassava (e que ecoava no texto de Lou Reed), à tensão irónica do título, colhido num poema de Melville, passando por uma boutade que encontrei num qualquer texto em prosa de Frank O'Hara. Porque os meus conhecimentos informáticos são medíocres, e eu sou incapaz de fazer mudança de linha neste novo template do blog, assinalo a mudança verso com a barra. O título, como referi, é Após a festa do prazer, e Halloween Parade surge como epígrafe. Voilà: "Amamos a vida, não/ a arte, dizia e/ uma ave/ rasgava o horizonte no/ limiar do seu olhar." Lou Reed, RIP! Boa semana!

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

«Eu vim lançar fogo sobre a terra»

Frase retirada de Lucas 12,49-53: "Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Eu vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado!" Ora, a propósito da minha intervenção, amanhã, nas Jornadas de Teologia na Católica, uma amiga fazia os seguintes votos: "Que o Espírito Santo o inspire, pois, com as suas línguas de fogo." É, deste modo, pertinente reproduzir este passo colhido no Evangelho Quotidiano:
"Os símbolos do Espírito Santo: o fogo. Enquanto a água significava o nascimento e a fecundidade da vida dada no Espírito Santo, o fogo simboliza a energia transformadora dos actos do Espírito Santo. O profeta Elias, que «apareceu como um fogo e cuja palavra queimava como um facho ardente» (Ecli 48,1), pela sua oração faz descer o fogo do céu sobre o sacrifício do monte Carmelo, figura do fogo do Espírito Santo, que transforma aquilo em que toca. João Baptista, que «irá à frente do Senhor com o espírito e a força de Elias» (Lc 1,17), anuncia Cristo como Aquele que «há-de baptizar no Espírito Santo e no fogo» (Lc 3,16), aquele Espírito do qual Jesus dirá: «Eu vim lançar fogo sobre a terra e só quero que ele se tenha ateado!» (Lc 12,49) É sob a forma de línguas, «uma espécie de línguas de fogo», que o Espírito Santo repousa sobre os discípulos na manhã de Pentecostes e os enche de Si (Act 2,3-4). A tradição espiritual reterá este simbolismo do fogo como um dos mais expressivos da acção do Espírito Santo: «Não apagueis o Espírito!» (1Tes 5,19)."

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Jornadas de Teologia

Aqui fica o programa, com o convite para quem possa estar interessado:
10.00 – Abertura ALFREDO TEIXEIRA (Diretor do IUCR-FT) JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (Diretor do CERC-FT, Vice-Reitor da UCP) 10.10 – Performance «O balão», Nuno Tovar de Lemos DANIELA VIEITAS 10.30 – Navegamos sem mapa? O testemunho cristão num mundo incerto D. MANUEL CLEMENTE , Patriarca de Lisboa Moderador: João Lourenço (Diretor da Faculdade de Teologia) 11.30 – O apelo da fé nos lugares de vulnerabilidade HENRIQUE JOAQUIM (FCH-UCP) ISABEL GALRIÇA NETO (Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital da Luz) JOSÉ MANUEL PEREIRA DE ALMEIDA (FT-UCP) Moderador: Clara Melo (ICS-UCP) 13.00 - Pausa 14.30 – O corpo: lugar (i)limitado? INÊS GIL (ULHT) ANTÓNIO MARTINS (FT-UCP) Moderador: Américo Pereira (FCH-UCP) 15.30 – Dizer Deus na precaridade das linguagens MÁRIO AVELAR (UA, CERC) ALFREDO TEIXEIRA (FT-UCP) Moderador: Guilherme Almeida e Brito (FCEE –UCP) 16.30 – Pausa 16.45 – Uma casa para Deus? A arte de habitar o provisório BORGES DE PINHO (FT-UCP) BERNARDO MIRANDA (ISCTE-IUL) Moderador: Luís Barreto Xavier (FD – UCP) 17.45 – O Evangelho da fragilidade: des-cobrindo a teologia de Paulo JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (Diretor do CERC-FT, Vice-Reitor da UCP) Moderador: Alfredo Teixeira (Diretor do Instituto Universitário de Ciências Religiosas - UCP)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

"Deu-lhe um amok!"

Esta era uma expressão que dizíamos, na minha adolescência,quando alguém (como se diria hoje) "se passava dos carretos". A sua origem está, como a rapaziada da minha idade sabe, no célebre livro de Stephan Zweig. Porque o meu pai tinha uma grande paixão por este autor, abundavam os livros dele, devidamente encadernados, na biblioteca familiar. Foi, por isso, um dos meus autores de adolescência (o que poderá explicar algumas disfunções...). Reli o Amok há algum tempo, assim como, entre outros, a biografia de José Fouché. Fi-lo
porque acho que a literatura, além de outras coisas, nos ensina a olhar melhor para a vida. De facto, ao ver o percurso de vida deste homem que, antes da revolução francesa foi um reaccionário assumido, com a revolução, foi o mais fervoroso dos revolucionários, e que, durante o resto da vida, andou sempre à tona de água, acolhendo as diferentes e contraditórias marés com notável capacidade de resistência, não pude deixar de pensar nos "Josés Fouchés" que pairam por aí, nomeadamente... no meu local de trabalho. Penso (lá vou eu consolidar pequenos ódios!) naqueles e naquelas que, ainda não há muito tempo, apoiavam quem queria transformar-nos numa espécie de novas oportunidades universitárias e que hoje são... adeptos da mudança de rumo a favor da investigação. Resta-me a consolação de que o Fouché acabou ostracizado por todos. Será que isto sucede aos "Fouchés" que por aí andam? Não necessariamente! Enfim, resta a lição de que a literatura tem virtudes pedagógicas... ainda que inesperadas. Aqui fica, portanto, a sugestão de leitura!

terça-feira, 15 de outubro de 2013

"Blue Jasmine", um apontamento

dos Cahiers a propósito de... (um pausa em busca de adjectivos, mas ela é tão singularmente bela que o melhor é ficar pelas reticências...) Cate Blanchett no mais recente Woody Allen: "Peut-être Allen est-il devenu moins drôle que misanthrope. Mais il faut redire à quel point
l'amour d'un acteur peut parfois emporter un film. La prestation de Cate Blanchett, ahurissante, en vient même à disputer au cinéaste la 'paternité' de cette belle créature brisée qu'est Jasmine. Non contente d'atteindre un débit vocal à la Katharine Hepburn, Blanchett nous offre un véritable précis de vexation, alternant l'onctuosité de toute sa personne avec de subites crispations du corps et du regard, dans un grand déraillement progressif qui dit, sans jamais tomber dans l'hystérie, toute l'horreur et l'aveuglement consenti de son personnage face aux salissures du réel. L'art de la nunace et de l'altération, la blue note des jazzmen qui donne à Jasmine sa teinte, c'est bien elle qui les tient." Bons filmes!

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A importância de uma matriz hoje

quando prevalece a indiferença da Europa e das suas instituições face a uma tragédia reincidente, o naufrágio em Lampedusa. Lembre-se este passo de Evangelho segundo S. Lucas 10,25-37: "Naquele tempo, levantou-se um doutor da Lei e perguntou a Jesus para O experimentar: «Mestre, que hei-de fazer para possuir a vida eterna?» Disse-lhe Jesus: «Que está escrito na Lei? Como lês?»
O outro respondeu: «Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.» Disse-lhe Jesus: «Respondeste bem; faz isso e viverás.» Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: «E quem é o meu próximo?» Tomando a palavra, Jesus respondeu: «Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: 'Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar.' Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?» Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu também o mesmo.»" E veja-se o comentário de Bento XVI nesse belo texto que é Deus caritas est: A parábola do bom Samaritano (cf Lc 10,25-37) leva a dois esclarecimentos importantes. Enquanto o conceito de «próximo», até então, se referia essencialmente aos concidadãos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de Israel, ou seja, à comunidade solidária de um país e de um povo, agora este limite é abolido. Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é o meu próximo. O conceito de próximo fica universalizado, sem deixar todavia de ser concreto. Apesar da sua extensão a todos os homens, não se reduz à expressão de um amor genérico e abstracto, em si mesmo pouco comprometedor, mas requer o meu empenho prático aqui e agora. Continua a ser tarefa da Igreja interpretar sempre de novo esta ligação entre distante e próximo na vida prática dos seus membros. É preciso, enfim, recordar de modo particular a grande parábola do Juízo final (cf Mt 25,31-46), onde o amor se torna o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade de uma vida humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40). Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Ciberteologia

foi o tema da conferência de Antonio Spadaro proferida ontem à tarde. Hélas deixei em casa o meu caderno de notas, pelo que assisti à conferência com um misto de revolta (pelo esquecimento) e de impotência (pela manifesta incapacidade de guardar na memória todas as suas reflexões pertinentes). Em contrapartida, mal ela terminou desci a comprar o livro. E foi assim que passei o resto da tarde e o serão, sem interrupções (excepto para ver o episódio sete da 2ª temporada de Newsroom) a lê-lo; algo que concluí pouco depois da meia-noite. Deixo-vos um breve passo que, obviamente, tem a ver com a literatura; ou não fosse Spadaro, também, um estudioso da literatura anglo-americana:
"Foi o poeta Gerald Manley Hopkins que me ajudou a entender o papel da inovação tecnológica; o jazz fez-me entender o papel das redes sociais; os teólogos - de Tomás de Aquino a Teilhard de Cahrdin - esclareceram-me em relação às forças que tornam o homem actuante no mundo, participando da Criação, e que o elevam a uma meta que o supera, bem além de qualquer excesso cognitivo. É a pesquisa inesgotável de sentido que me fez entender o valor do cabo usb que tenho nas mãos. E sei que o meu iPad tem a ver com o meu desejo inextinguível de conhecer o mundo, enquanto o meu Galaxy Note me diz (mesmo quando está silencioso) que eu não sou feito para ficar sozinho. Mas é a poesia de Whitman que me dá o prazer do progresso. E é Eliot que me faz estar atento, para não cair nas suas armadilhas. Mas é também Flannery O'Connor que me faz entender que 'a graça habita mesmo no território do diabo' e, pouco a pouco, o invade. E, portanto, entendo que, mesmo vendo tanto mal na Rede, não posso parar e descansar sobre os louros de um juízo negativo, se..." Bom, fico por aqui, com os points de suspension, para vos aguçar o apetite. Boas leituras!

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

"De que lado estás?

Dos que só querem saber, como Heródes, ou dos que querem seguir e imitar, como Zaqueu?" Perguntava-se, hoje, no comentário a Lucas, 9/7-9. Esta pergunta levou-me a reler o prefácio de Alexandre Palma a Paciência com Deus, de Tomás Halík. Escreve ele sobre o que pode significar "ser Zaqueu" hoje, e, consequentemente, sobre o gesto "do pequeno Zaqueu, o cobrador de impostos que procurava ver Jesus"; sobre "a sua discreta curiosidade, aquela esperança muda, a timidez que o traz à distância":
"Na voragem da comunicação moderna, onde o (ab)uso da imagem e da palavra vai ao limite da sua própria corrupção; na contemporânea necessidade de aparecer para sobreviver, facilmente se empurram para as franjas os tímidos, os inseguros, os discretos, os calados. Ora Halík faz destas franjas, faz do que nelas se escondem, os protagonistas. (...) Fá-lo sobretudo para que se aprenda a lição destes Zaqueus: a inquietude interior, o espírito de busca não são um opcional do itinerário da fé." É, pois, pertinente a epígrafe colhida em Santo Ambrósio que Alexandre Palma escolheu para prólogo do seu texto: "Zaqueu no sicómoro é o fruto novo da nova estação".

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

"Definir o tempo pela sua qualidade"

No termo das férias importa reflectir sobre a noção de tempo. A propósito, transcrevo o excerto do texto que li no site da Pastoral da Cultura
. "«O tempo alcançou plenitude» (peplerotai o kairòs) - lê-se na proclamação inaugural de Jesus, segundo o relato de São Marcos (Mc 1,15). Olhando para a forma verbal empregue (a forma do perfeito, peplerôtai - alcançou plenitude, completou-se), vemos um tempo onde o cumprimento começou, mas que prossegue em efeitos que o presente e o futuro prolongam. Não se trata, portanto, de um tempo meramente pontual, para ser deglutido na vertigem do que passa. Nem é, de modo algum, um mero passar. A utilização que se faz aqui do lexema kairòs revela-se iluminante. Porque se usa, para designar este tempo aberto por Jesus, o substantivo kairòs em vez de chrónos? Há uma diferença entre ambos: o kairòs exprime uma qualidade do tempo; enquanto que chrónos designa a quantidade. O significado fundamental de kairòs é o de uma expressão decisiva do tempo, o seu ponto essencial, fugindo a um entendimento estritamente cronológico. Em autores antigos tão diversos como Sófocles ou Aristóteles, ou já na tradução grega da Bíblia hebraica, kairòs ganha, não raro, um sentido religioso, a ponto de coincidir com a revelação do próprio Deus. Essa é a perspetiva do Novo Testamento, que interpreta o tempo como lugar do irromper de Deus, propício e determinante. De facto, não é o tempo quantificado que dará alma ao mundo, mas o tempo qualificado pela decisão e pela experiência da graça e do dom."

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Lembrando Urbano...

"(...) há um aspecto que importa pôr em evidência neste momento e só os que o conheceram podem testemunhar a esse respeito: a sua generosidade infalível, o acolhimento que sempre soube dar aos mais novos, a abertura com que encarava novas propostas estéticas, o trato amabilíssimo, a tolerância e o bom gosto que o distinguiam nas relações humanas.
Personalidades da cultura como a dele fazem-nos cada vez mais falta." Escreveu Vasco Graça Moura na sua crónica no DN. De facto, entre as memórias que dele guardo, tem um lugar especial aquela manhã algures entre Abril e Maio de 1978, quando, após eu ter apresentado um trabalho sobre L'espoir, de André Malraux, na sua aula de Literatura Francesa I, numa sala do "Pavilhão Novo" da Faculdade de Letras, ele me disse: "O Mário tem de ser professor!" Importa referir que, tal como o país naqueles tempos, também eu andava à deriva. Creio que essas palavras me ajudaram a reencontrar o rumo perdido... Um outro aspecto ainda, confirmando um dos tópicos abordados por Graça Moura. Urbano ensinava o cânone (lemos Breton e Sartre, por exemplo), e também outras vozes situadas mais nas margens. Nunca esquecerei a leitura de La Motocylette, de Mandiargues. Ou não fosse esta uma narrativa profundamente... erótica. Até sempre!

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

"O que é a vida?"

Responde Abbé Pierre (podem ver o contexto no site da Pastoral da Cultura [http://www.snpcultura.org/abbe_pierre_em_lisboa.html], onde colhi esta bela imagem):
'Uma vez participei num programa de televisão em que tinha como interlocutor um homem muito violento, muito agressivo, que me perguntou: «O que é a vida?». Respondi: «A vida é um bocado de tempo dado a liberdades para termos a capacidade de amar. Nós, formiguinhas, somos os únicos com uma pequena parte de liberdade, de capacidade de amar e de responder com amor ao amor. Mas porquê tantas crueldades, tantas atrocidades? Deus é bom, é amor, apesar dessas infelicidades. A vida ganha sentido se, com a minha liberdade, eu quiser aprender a amar para o encontro com o Amor eterno». Quando acabei estas palavras pouco usuais, o meu interlocutor, homem ateu, conhecido pela blasfémia, gritou: «Porque não me disseram isso quando eu era pequeno?».'

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O que nos olha de frente?

No fim de semana, duas conferências no Brasil, na quarta-feira de manhã, a presidir a um júri de doutoramento na Católica, à tarde, a dirigir com serenidade (lembrando que as férias são necessárias para recarregar baterias e viver aquilo que esquecemos na voragem dos dias) e eficiência a reunião da direcção do Centro de Estudos de Religiões e Cultura, e entretanto (quando...?) produzindo textos como este... Tolentino é uma fonte de ennergia e inspiração para todos! Aqui fica o texto que publicou no Diário de Notícias da Madeira e que eu colhi no site da Pastoral da Cultura. A questão que lhe dá o mote toca-nos a todos: "O que é que nos olha de frente? A escuta, a vigilância, a atenção são ferramentas para uma viagem humana fecunda. Os Padres do deserto diziam: «O maior dos pecados é a distração». Vivemos num mundo que nos atropela continuamente, pela quantidade e velocidade da informação. As imagens que vemos também nos obsidiam, aprisionam e devoram. Na sobreposição de discursos e factos, nem sempre somos capazes de contrariar a alienação. E depois: quantos dos nossos gestos não se tornaram, entretanto, meros automatismos! Quantas das nossas escolhas não se esvaziaram de conteúdo, cabendo-nos administrar apenas a forma! É assim que acontece que numa cultura marcada por um excesso de signos, vivamos mergulhados numa inesperada e dramática pobreza simbólica. De certa maneira, enfraqueceu-se a nossa capacidade de ver, e com isso perdemos o acesso a dimensões necessárias de profundidade. O verbo mais importante é o ver, diziam os gregos. E para ver não basta olhar, não basta deslocar a visão para o outro lado da janela. É preciso, como avisa Fernando Pessoa, «não ter filosofia nenhuma». Só uma atitude de desprendimento nos permite aceder à vigilância autêntica. E não esqueçamos: só um coração pobre vigia. Só um peregrino descobre. Só o olhar do que não tem defesas consegue colher, no instante, a verdadeira presença.
Escreve o místico Silesius:: «a rosa é sem porquê, floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos». Quando se diz ‘a rosa é sem porquê’, ou ‘a rosa é de ninguém’, propomo-nos investir num modo de construir o real que já não passa por sermos predadores e o real ser uma presa que vamos dominar ou domesticar. Entramos num espaço não já de predadores e presas, mas de vigilantes, de contemplativos, de operadores do assombro. Vigiar é colocar-se na disponibilidade para a surpresa, para aquilo que vem, tendo consciência que o fundamental da vida não é o que adquirimos, o que fizemos, o que de alguma maneira dominámos, mas sim a incessante prática da hospitalidade. Toda a música que ouvimos, nos preparou, no fundo, para o ato da escuta. Todos os textos que estudamos, toda a poesia que lemos nos prepararam melhor para o ato da leitura. Toda a relação em que investimos, todo o afeto que partilhámos, todo o amor com que amámos, preparam-nos para o ato simples de amar. A vigilância é isso. Não está no apego ao mapa, mas no amor pela viagem. Temos mesmo de deixar a zona de conforto dos mapas para nos tornarmos viajantes, enamorados, vigilantes, sentinelas. Dir-se-ia que a vida nos pede uma escuta que atravesse o tempo, que perfure os séculos, que transcenda a paisagem, sintonizando com aquilo que verdadeiramente temos diante de nós. E, por isso, temo-nos de perguntar muitas vezes, pela vida fora: Qual é a nossa fronteira? O que é que nos olha de frente? O que trazemos diante de nós?" Bom fim de semana.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

"Tabu", de Miguel Gomes

Dos códigos (memórias) visuais aos códigos (memórias) de representação, um excerto do texto colectivo publicado no último número dos Cahiers du Cinéma, sob o título "L'amour des acteurs":
"Dans Tabou, la partie contemporaine et la partie 'muette avec voix off' jouent sur l'inversion. Le hiératisme des personnages de la première partie ramène l'aura de certaines figures du muet (le vieux Ventura transi de chagrin, à la sortie du cimetière, évoque Nosferatu), tandis que les comédiens jouent avec les codes d'aujourd'hui, même sans dialogues, dans la partie africaine. Ce qui n'empêche pas Miguel Gomes de s'amuser clairement avec les codes archétypaux du cinéma muet (gestuelle, saccadée, oeillades) dans la séquence où Aurora reçoit en cadeau un bébé crocodile et s'effraie de l'animal. Le film installe une infusion harmonieuse entre toutes ces dissonances de jeu."" Bom fim de semana, e bons filmes!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Perto de concluir a leitura do monumental

Sources of the Self, de Charles Taylor (a sua Era Secular está traduzida para português), quero deixar-vos um excerto que talvez vos interesse: "There are strong continuities from the Romantic period, through the Symbolists and many strands of what was loosely called 'modernism', right up to the present day. What remains central is the
notion of the work of art as issuing from or realizing an 'epiphany'... there are tow different ways in which a work can bring about ... an epiphany ... In the first, dominated by the Romantics, the work does portray something ... in such a way as to show some greater spiritual reality or significance shining through it. The poetry of Wordsworth or the paintings of Constable and Friedrich exemplify this pattern. In the second, which is dominant in the twentieth century ... the locus of epiphany has shifted to within the work itself." (p. 419)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

"Entre o céu e a terra"

é o título de um belíssimo livro de Rui Chafes, sobre o qual saiu uma recensão minha no último número da Colóquio Letras. Dela deixo-vos aqui um breve apontamento: "A frase inicial de Entre o céu e a terra não pode deixar de causar perplexidade: “Nasci em 1266 numa pequena aldeia, que já não existe, na Francónia, na Baviera.” (p. 11) Sabendo nós que Rui Chafes é um artista contemporâneo, como se justifica esta declaração na primeira secção do livro intitulada “História da minha vida”? E, todavia, esta é, de facto, uma narrativa autobiográfica de aprendizagem e formação estética; um bildungsroman, afinal.
Enquanto Eliot convocou a solenidade decorosa do ensaio em “Tradição e talento individual”, para, subliminarmente, justificar o seu percurso criativo através da sua afinidade com vozes que, ao longo do tempo, teriam definido, não uma tradição, mas sim a tradição, Rui Chafes optou por um registo claramente subjectivo, o da autobiografia, para delinear, não apenas uma estética na qual se revê, mas também um percurso formativo, um percurso de aprendizagem “[d]esse difícil mister de formar o espaço, de o interrogar, de o inverter, de substituir um objecto pela sua sombra.” (p. 12) Daí que esta primeira secção de Entre o céu e a terra participe do subgénero bildungsroman; mais correcto seria dizer que o revê e amplia. Com efeito, o percurso aqui exposto revela ser, desde logo, um solo de tensões estéticas próprias - mesmo quando não enunciadas - dos tempos em que emergem os momentos mais significativos da narrativa; por exemplo, as tensões entre luz e sombra. Importa recordar que, em torno do conceito de luz, se edificou uma influente tradição do pensamento que percorre a Idade Média, dos neoplatónicos a Santo Agostinho, de João Escoto Erígena a São Tomás de Aquino. Esta tradição atribuiu à luz um estatuto privilegiado enquanto teofania entre os elementos materiais1. Por seu turno, a sombra2 participa de um estatuto ontológico medievo que persiste ainda em Giotto, o qual terá nascido em 1266, ou seja, no mesmo ano que o autor desta história. Ora, enquanto no período medievo a sombra persistia nas margens do registo pictórico, com Giotto ela afirma a sua presença. É com essa afirmação que se inicia o percurso de aprendizagem do artista. Assim emerge também uma filiação e uma estética."

quinta-feira, 11 de julho de 2013

"Continuamente vemos novidades..."

E esta colhi-a no site da Pastoral da Cultura. Tem ela a ver com um novo percurso no pensamento teológico contemporâneo que, segundo creio, ecoa, entre nós, na obra de José Frazão Correia. Se não for, o José que me perdoe. Aqui fica o passo inicial do texto que podem ler na íntegra naquele site: "Há uma nova teologia que floresce no interior da cultura contemporânea dita pós-moderna. Dá-la a conhecer é um acto cultural. O que é a cultura senão a interacção de saberes, de circularidade de correntes e perspectivas, que de algum modo produzem pequenos mundos de vida, de imaginação, de uma nova realidade pensada e vivida? Uma entre muitas, é a perspectiva fecunda e inteligente do teólogo milanês Pierangelo Sequeri. Personagem singular que se move em diversas áreas desde a teologia, a estética, a psicanálise à composição musical, sobretudo para crianças com paralisia cerebral. Até aqui se abre um possível trabalho fecundo entre a neurociência damasiana e a teologia/ontologia da afeição sequeriana.
Sequeri é o teólogo da “ordem dos afectos” que reflecte a inteligência da fé a partir da experiência pática/prática e não apenas académica. A palavra “ordem” indica já de si uma não-arbitrariedade dos afectos mas de uma disposição criteriosa da zona mais interior do humano (disposição proafectiva da consciência crente segundo uma justiça dos afectos). Este modo de revelação cuja «fenomenalidade específica é a carne de um pathos, uma matéria afectiva pura, da qual se encontram radicalmente excluídas toda a cissão e separação […]. É esta substância fenomenológica pática (pathétique) a definir e conter toda a “realidade concebível”» (M. Henry). A via da interioridade imanente na sua manifestação afectiva evoca a possibilidade crente, a fé originária, concentrada no universal concreto pessoal Jesus de Nazaré. Sequeri faz entrar a ordem dos afectos na consciência originária (crente-estética) tão presente na grande tradição patrística e escolástica eclesial (circularidade entre o intellectus e o affectus fidei)." Boas descobertas!

Antecipando as férias que tardam,

deixo-vos esta meditação de José Tolentino Mendonça, retirada de O Hipopótamo de Deus, a propósito deste tópico adiado: "Entendemos bem aquele verso de Ruy Belo que diz: «Espero pelo verão como quem espera por uma outra vida». Na verdade, não é por uma vida estranha e fantasiosa que esperamos, mas por uma vida que
realmente nos pertença. Por isso é tão decisivo que as férias, tempo aberto às múltiplas errâncias, não se torne um período errático e vago; tempo plástico e criativo e não se enrede nas derivas consumistas; tempo propício à humanização não se perca na fuga a si mesmo e no ruído do mundo. Em toda a tradição bíblica o repouso é uma oportunidade privilegiada para mergulhar mais fundo, mais dentro, mais alto. É aceitar o risco de sentir a vida integralmente e de maravilhar-se com ela: na escassez e na plenitude, na imprevisibilidade dolorosa e na sabedoria confiante." A reprodução é de um quadro de Renoir, significativamente intitulado Piquenique.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Para que servem a economia e a política?

A perspectiva do Papa Francisco: "A finalidade da economia e da política é servir a humanidade, a começar pelos mais pobres e mais vulneráveis, onde quer que se encontrem, mesmo que seja no ventre da própria mãe. Cada teoria ou decisão económica e política deve procurar oferecer a cada habitante da Terra aquele bem-estar mínimo que lhe permita viver dignamente, na liberdade, com a possibilidade de sustentar uma família, de educar os seus filhos, de louvar a Deus e de desenvolver as próprias capacidades humanas. Isto é fundamental! Sem esta visão, nenhuma actividade económica tem significado.
Neste sentido, os vários e graves desafios económicos e políticos que o mundo contemporâneo enfrenta exigem uma corajosa mudança de atitudes, que restitua ao fim (a pessoa humana) e aos meios (a economia e a política), o lugar que lhes é próprio. O dinheiro e os outros instrumentos políticos e económicos devem servir, e não governar, tendo presente que a solidariedade gratuita e abnegada é, de maneira aparentemente paradoxal, a chave do bom funcionamento económico global. Pude compartilhar estes pensamentos com o Senhor Primeiro-Ministro [David Cameron], com o desejo de contribuir para ressaltar quanto está implícito em todas as instâncias políticas, mas que por vezes podemos esquecer: a importância primordial de colocar o homem, cada homem e cada mulher, no centro de todas as decisões políticas e económicas nacionais e internacionais, uma vez que o homem é o recurso mais autêntico e profundo da política e da economia e, ao mesmo tempo, a sua finalidade última."

segunda-feira, 24 de junho de 2013

"Without looking out of my window

I can see all the things of heaven," cantou George Harrison. Eis uma meditação que com aquela se cruza. Pertence a São Rafael Arnaiz Baron (1911-1938), monge trapista espanhol:
"Também eu, quando estava no mundo, corria muitas vezes pelas estradas de Espanha, encantado por ver o velocímetro do meu carro marcar 90 Km à hora! Que disparate! Quando me apercebi de que não tinha mais horizontes, sofri a decepção típica daquele que tem a liberdade deste mundo, pois a terra é pequena e depressa lhe damos a volta. O homem está rodeado de horizontes pequenos e limitados. Para quem tem a alma sedenta de horizontes infinitos, os da terra não bastam: abafam-no, não há mundo que lhe chegue e só encontra o que procura na grandeza e imensidão de Deus."

A propósito do problemático tópico do perdão

aqui fica a reflexão de Santo Isaac, o Sírio (século VII), monge em Nínive, perto de Mossul. Os excertos da sua reflexão são retirados de Discurso ascético, 1 ª Série, n º 60:
"Não desprezes o pecador, porque todos nós somos culpados. Se por amor a Deus te insurges com ele, em vez disso chora por ele. Por que o desprezas? Despreza os seus pecados, e reza por ele, para fazeres como Cristo, que não Se irritou contra os pecadores, mas rezou por eles (cf. Lc 23,34). Não viste como Ele chorou sobre Jerusalém? Porque também nós, mais do que uma vez, fomos joguetes do demónio. Por quê desprezar alguém que foi, como nós, joguete do diabo que troça de todos nós? Porque desprezas o pecador, tu, que não passas de um homem? Será porque ele não é justo como tu? Mas onde está a tua justiça, uma vez que não tens amor? Por que não choraste por ele? Em vez disso, persegue-lo. É por ignorância que alguns se irritam contra os outros, eles que acreditam ter o discernimento das obras dos pecadores."

sexta-feira, 7 de junho de 2013

"Do mito à criação"

é o título da exposição de Mário Rita inaugurada há dois dias no Museu da Ciência, na Rua da escola Politécnica. Um conjunto de desenhos feitos há cerca de vinte anos. Um traço vigoroso e firme. Uma representação minimalista que, todavia, não é indissociável do volume (tri-dimensionalidade?). Uma brilhante relação com o espaço agreste da Sala do Veado. No convite surgem estas palavras de Fernando Martin Galán: "Rita tem uma característica muito peculiar que é combinar o exagero com a moderação, o dramatismo com a tranquilidade, o movimento com a inércia, a extroversão com a introversão, a sociedade com a solidão (...) Em relação ao corpóreo e material - a técnica - trata-se de uma mistura magistral de desenho e cor, massa e forma, preenchimento de espaço e vácuo, gesto e não gesto, unidade e pluralidade de composição (...)" Uma breve nota pessoal: a Mário Rita devo a capa do meu romance Inveja - uma novela académica. Bom fim de semana!

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Alguns comentários a propósito da velhice (chamemos "a coisa" pelo seu nome)

feitos pelo poeta americano Charles Simic. Podem ler o texto na íntegra no site do New York Review of Books. Ei-los... e boa disposição: "On certain days I feel like a car with too many miles on its speedometer. There’s a knock in the engine, the radiator overheats, the oil leaks, the body is rusty, the upholstery is ripped and stained, one windshield wiper doesn’t work, and the muffler is full of holes. “Don’t worry about it,” my Doc says. He insists that I’m in terrific shape despite high blood pressure, old-age diabetes, and growing deafness in both ears. He sounds like a used car salesman to me, trying to get rid of a car that’s ready for the junk yard, but I lap up his words all the same, and speed away after the checkup singing at the top of my voice and trailing a cloud of black smoke from the exhaust. At four o’clock in the morning, after a night of tossing and turning, I’m not so cocky. I go and squint at my face in the bathroom mirror and don’t like what I see. Even Peter Lorre playing a child murderer in that 1931 German movie was more wholesome to behold. Recently a reviewer complained that my new book of poems is much too preoccupied with death. He appeared to suggest that I ought to be more upbeat, dispensing serene wisdom in the autumn of my life, instead of reminding readers every chance I get of their mortality. Just you wait, I said to myself, till you reach my age and start going to funerals of your friends. Nobody warns us about that when we are young, and even if they ever did, it goes in one ear and out the other. "

sexta-feira, 24 de maio de 2013

"Um amigo fiel é um bálsamo de vida"

Com um abraço ao Alexandre Palma, aqui fica a minha resposta às suas gentis palavras, ontem, na Sociedade de Geografia de Lisboa. Estas palavras não são minhas. Colho-as de Livro de Eclesiástico 6,5-17. Ei-las, então: "Palavras amáveis multiplicam os amigos, a linguagem afável atrai muitas respostas agradáveis. Procura estar de bem com muitos, mas escolhe para conselheiro um entre mil. Se queres ter um amigo, põe-no primeiro à prova, não confies nele muito depressa. Com efeito, há amigos de ocasião, que não são fiéis no dia da tribulação. Há amigo que se torna inimigo, que desvendará as tuas fraquezas, para tua vergonha. Há amigo que só o é para a mesa, e que deixará de o ser no dia da desgraça; na tua prosperidade mostra-se igual a ti, dirigindo-se com à vontade aos teus servos; mas, se te colhe o infortúnio, volta-se contra ti, e oculta-se da tua presença. Afasta-te daqueles que são teus inimigos, e está alerta com os teus amigos. Um amigo fiel é uma poderosa protecção; quem o encontrou, descobriu um tesouro. Nada se pode comparar a um amigo fiel, e nada se iguala ao seu valor. Um amigo fiel é um bálsamo de vida; os que temem o Senhor acharão tal amigo. O que teme o Senhor terá também boas amizades, porque o seu amigo será semelhante a ele." Em tempos da fugacidade e da superficialidade das redes sociais, eis algo para meditar. Bom fim de semana!

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Diálogos entre a literatura e as artes

Será amanhã o segundo dia das Jornadas dedicadas ao diálogo entre a Literatura e as Artes. Uma boa oportunidade para visitar e conhecer a Sociedade de Geografia de Lisboa. Aqui fica o programa: 14.00h - 14.45 h Conferência de Abertura Mário Avelar (UAb) “Anacronia e Transmemória, dois conceitos no diálogo interartes” 14.45h - 16.15h Painel Diálogos Literatura e Outras Artes III Gerald Bär (UAb) - “Double Trouble na Internet”, Jeffrey Scott Childs (UAb) - "Inflecting History, Infecting Rhetoric: Images of Influence in Apocalypse Now", Maria do Céu Marques (UAb) - "Compreender o cinema, pensar The Ghost Writer ", Maria do Rosário Lupi Belo (UAb) - "Singularidades da adaptação: da ironia de Eça à provocação de Oliveira" 16.15h -17h Conferência Marília Futre Pinheiro (UL) “Iconotextualidade: A "Linguagem" da Écfrase no Romance Grego Antigo" 17h -18h Painel Questões de Estética II Alexandre Palma (UCP) - «Estética: última oportunidade para a transcendência?», Maria de Jesus Relvas (UAb) - “O belo horrível — The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde”, Maria Paula Coelho (UAb) - “As minhas 'Ofélias'” 18.15h -19h Conferência de Encerramento Isabel Capeloa Gil (UCP) - “'O Arquivo em Chamas’. Sobre a Visualidade da Memória na Arte Portuguesa Contemporânea." 19h Marília Futre Pinheiro (UL) – Balanço das Jornadas

terça-feira, 14 de maio de 2013

Diálogos inter-artes

Amanhã, entre as 14 e as 19h, decorre, na Sociedade de Geografia de Lisboa, a primeira parte de umas Jornadas sobre as relações inter-artes em que tenho estado empenhado. A conferência de abertura será de João Almeida Flor. A não perder! Até amanhã!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Uma imagem insólita

Sobre a foto: Solidéu do papa Francisco na cabeça de uma jovem. Praça de S. Pedro. Vaticano, 8.5.2013. Fotos: AP Photo/Alessandra Tarantino, REUTERS/Stefano Rellandini«Sabei sempre exercitar a autoridade acompanhando, compreendendo, ajudando, amando; abraçando todos e todas, sobretudo as pessoas que se sentem sós, excluídas, áridas, as periferias existenciais do coração humano. Tenhamos o olhar orientado para a Cruz. Ali se coloca toda e qualquer autoridade na Igreja, onde aquele que é o Senhor se faz servo até ao dom total de si mesmo». Palavras do Papa Francisco.

domingo, 21 de abril de 2013

A cor em Fausto

Não, não irei dissertar longamente sobre este tópico. Quero, todavia, dar-vos a conhecer estas imagens do "story-board" que Sokurov criou para o seu filme. Nestas aguarelas, o realizador concebe a atmosfera (subtil, líquida) que desejava imprimir em cada cena. Refiro, parenteticamente, subtil e líquida, pois as nuances da cor são, amiúde, quase imperceptíveis. Portanto, para além da obra de Goethe que serve de impulso para este Fausto, importa ter presente outra obra do escritor alemão. Sim o Tratado das Cores. E, por favor, não percam o filme! A ele voltarei quando tiver mais tempo. Bom domingo! E bons filmes!

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Fausto, de Sokurov

Estreia amanhã em Lisboa, no Nimas, Fausto, a versão do texto de Goethe concebida por Alexandre Sokurov. Acompanhá-lo-á uma exposição de Ilda David' a propósito da tradução de João Barrento. Já vi o filme há algum tempo em Dvd (blue ray, para ser mais preciso) e, apesar dos pesadelos que tive durante a noite, recomendo vivamente. Sobre este realizador deixo-vos um breve excerto de um comentário publicado no The Independent: "Over the years, Sokurov has proved a very disconcerting interviewee. He talks a lot about the Russian soul. Ask him about his influences and he'll discuss Chekhov and Dostoevsky before he even mentions anything to do with film. In preparation for his film Mother and Son (1996), about a mother dying as her devoted son tends her, he and his cinematographer went to Berlin and spent hours together sitting in front of Caspar David Friedrich's painting The Monk By the Sea. Before shooting his film Father and Son (2003), he studied JMW Turner's watercolours. He calls many of his films "elegies," as if he is a composer or a poet, not a director. Although he reveres Ingmar Bergman and Alexander Dovzhenko, he is contemptuous about 3D and James Cameron. In short, he takes an utterly uncompromising and sacral approach to his art." Bons filmes!

segunda-feira, 8 de abril de 2013

A ouvir

Começo por uma reflexão que nada tem de científica... que não tem, aliás, qualquer base sociológica ou histórica, e todavia... Porque é que o jazz não podia ter nascido em Portugal? Já repararam na alegria que todo o músico de jazz experimenta quando outro membro do grupo "divaga" no seu solo? Ora, nós, que temos uma épica nacional que culmina na palavra inveja, jamais poderíamos experimentar esse prazer da "vitória" de um parceiro nosso. O mais provável seria fazer um esgar como quem interroga: "So what?" Já passaram dois anos que neste espaço fiz alusão ao cd de Mário Laginha, Mongrel. Com uma festa do jazz no São Luís de permeio, e depois de ter assistido a um belo concerto deste mesmo Mário Laginha com a notável Maria João, acompanhados de músicos de talento reconhecido, quero deixar-vos hoje nota de um músico de que já ouvira falar mas que não ouvira ainda. Chama-se ele Massimo Cavalli e foi ontem uma agradável surpresa enquanto o Benfica derrotava o Olhanense sem que eu (mea culpa) disso me apercebesse. O seu cd (não percam!) tem por título Varandas do Chiado. Sobre ele escreveu Laurent Filipe: So here is Massimo's personal story, from the "Intro" to "Marce Blues". A story that speaks of lyrical italian imbued emotions in "Sogno 37" to a strong cinematic feel in "Il lungo viaggio" to the somewhat odd bolero of the album title piece "Varandas do Chiado". The melodic and harmonic lines are often windy and unpredictable, the way a bass player likes them to be, taking you to unexpected places. Não percam!

quinta-feira, 21 de março de 2013

Looking for Richard

Como enquadrar este objecto num género fílmico? Eis algumas sugestões possíveis: Documentary, Mockumentary, Docufiction ou Docudrama. Tomo um exemplo apenas para sabotar a primeira possibilidade, o da presença de um actor simulando Shakespeare no início e no final do filme. O facto de o filme não ser ancorado numa estratégia de simulacro, inviabiliza a segunda. O facto de não criar uma ficção paralela ou mesmo uma meta-ficção, inviabiliza a terceira. Ficamos, por isso, pela quarta hipótese, docudrama, enunciada, aliás, pelo próprio Al Pacino. Subscrevo esta porque, na minha opinião, ela implica um registo autobiográfico, justificado pela obsessão (no bom sentido) do actor - representar Shakespeare para uma audiência americana - e pelas citações visuais e textuais de O Padrinho. Recomendo vivamente que vejam ou revejam este filme. No caso de serem professores, então devereis dá-lo a conhecer aos vossos alunos. Até breve!

sexta-feira, 15 de março de 2013

terça-feira, 12 de março de 2013

A propósito do soneto de Rossetti

sobre "Our Lady of the Rocks", de Leonardo. Estas notas esclarecem alguns aspectos relevantes, nomeadamente o facto de Rossetti ter escrito este poema a propósito do quadro da National Gallery e não do do Louvre. Aqui ficam as notas: "Behind this sonnet stands the famous Pauline text ( 1 Corinthians 13:12): “For now we see through a glass, darkly, but then face to face”. DGR uses this text to construct a statement about art as a “glass” through which one may attempt to represent, and view, the “occult” order of things that are the ground of a religious experience. In DGR's reading, the picture is an occult construction, all of its representational forms “dark” and “difficult”. It is important to see how obliquely DGR represents the Virgin's face, which focuses the energies of Leonardo's painting. Not that she is scanted by DGR, but his poem concentrates its attention on the other elements. The paradoxical result is to heighten our sense of the Virgin's importance, as if to draw out our imaginations to an effort to understand her place in this ominous scene. ... Textual History: Composition In 1869 DGR said that he wrote the sonnet “in front of the picture in Brit: Inst: many years ago” (Fredeman, Correspondence 69.139 ); WMR dates the work 1848 (1911). Pictorial The picture is not the one in the Louvre, but in the National Gallery in London, as DGR's reference to “that outer sea” makes clear (in the Louvre version that compelling moment in the London painting is hardly discernible). Needless to say, DGR's interpretation of the work is highly idiosyncratic, but quite in line with his general inclination, especially in the years 1848-1850, to give a programmatic turn to much of what he wrote and painted. Subjective as is DGR's response, however, it follows Vasari more closely than one might expect: in the Lives of the Painters Vasari comments that Leonardo's genius culminated in paintings “so dark, that [...] his pictures had rather the character of things made to represent an effect of night, than the clear quality of daylight” (Vasari, Lives [1996], vol. I, p. 630 ). That Leonardesque gloom is recaptured as DGR's “darkness of the end” and given an explicit symbolic resonance. DGR's reading of Leonardo also has much in common with Pater's famous essay in The Renaissance. This connection underscores the importance of Pater's seminal essay on DGR's work (Pater, "DGR," Appreciations )."

terça-feira, 5 de março de 2013

Podiam ser sobre estes tempos,

estes versos de Leonard Cohen: "I'm sentimental, if you know what I mean / I love the country but I can't stand the scene./ And I'm neither left or right/ I'm just staying home tonight,/ getting lost in that hopeless little screen./ But I'm stubborn as those garbage bags/ that Time cannot decay,/ I'm junk but I'm still holding up/ this little wild bouquet..." Boa semana!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Legado de Bento XVI

Aqui vos deixo o depoimento que prestei à Pastoral da Cultura: a) Como avalia o papel de Bento XVI no que diz respeito à relação que procurou manter com o mundo do pensamento e das artes, nomeadamente com artistas e tendências que se situam fora da Igreja Católica? A minha avaliação não pretende fazer uma súmula do seu magistério neste âmbito; outros estarão muito mais habilitados para o fazer. A minha avaliação, melhor seria dizer, a minha percepção confina-se à forma como, enquanto universitário e, também, criador, esse seu magistério me impressionou. Daí a escolha, profundamente subjectiva, de instantes ou aspectos que correspondem a um processo de descoberta pessoal do seu perfil: as suas palavras durante a visita ao campo da morte de Auschwitz, em Maio de 2006; o encontro com os artistas na Capela Sistina, em Novembro de 2009; o seu discurso no CCB durante a visita a Lisboa no ano seguinte. Porque se pode objectar que o primeiro destes aspectos não aparenta estar directamente relacionado com o mundo do pensamento e das artes, começo pelo seu discurso no CCB para melhor me explicar. Num tempo em que, segundo as palavras de um artista contemporâneo, Rui Chafes [Entre o céu e a terra], a arte cede à “frivolidade” de uma “linguagem apenas de efeitos”, Bento XVI defendeu a experiência estética enquanto busca do belo e da verdade; enquanto solo, indissociável de “uma 'sabedoria', isto é, um sentido da vida e da história”. Esta declaração, fundada no exercício da razão, surgia na linha do apelo feito no encontro com os artistas na capela Sistina: “... não tenhais medo de vos confrontar com a fonte primeira e última da beleza, de dialogar com os crentes, com quem, como vós, se sente peregrino no mundo e na história rumo à Beleza infinita...” A estética e a ética encontravam-se, portanto. Esta abertura à alteridade significou uma disponibilidade para entender e acolher os discursos estéticos que têm emergido noutros horizontes culturais, ideológicos mesmo, e de neles identificar inquietações e sintomas que são passíveis de funcionar como, ainda que ténues e pouco perceptíveis, pontes de diálogo e compreensão mútua. Escusado será lembrar a forma como esta postura tem ecoado entre nós, desde a experiência do Átrio dos Gentios, aos encontros entre crentes e não-crentes na Capela do Rato, por exemplo. Face a estes diferentes momentos, qual então o lugar das palavras de Bento XVI em Auschwitz? A um homem de uma inteligência superior, como ele, não seria obviamente difícil articular meia-dúzia de clichés sobre a intensidade daquela experiência. No entanto, e podereis estranhar a analogia, a sua reacção trouxe-me de imediato à mente a do Presidente Lincoln após ter visitado o campo de batalha de Gettysburg. Também Lincoln poderia ter verbalizado meia-dúzia de lugares comuns; no entanto, perante aquela experiência esmagadora, não receou afirmar que lhe faltavam as palavras. Igualmente perante o peso esmagador do campo da morte, Bento XVI teve a coragem de declarar: “Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto?” É impossível não lembrar o Diário de Etty Hillesum. Ora, a experiência contemplativa e meditativa do silêncio perante o inesperado e o que nos transcende em absoluto, pode constituir uma parte do processo de aprendizagem e da própria fruição estética. Pense-se no olhar perante as telas de Rothko. Concluindo, os caminhos por ele abertos desbravaram novas dimensões de diálogo estético e, ético, e, também, de entendimento de quão relevante pode ser, hoje em dia, a arte na nossa relação com Deus. b) Quais devem ser as orientações e prioridades que, no seu entender, o próximo Papa deve assumir nesse mesmo campo do pensamento e das artes? Sendo tão positiva a apreciação que faço da acção de Bento XVI a este nível, não será de estranhar que ache que as orientações e prioridades do novo papa deverão ser no sentido de prosseguir o seu legado. No entanto, independentemente de eventuais acções que venham a ser desencadeadas pelo futuro papa, é importante não esquecer uma dinâmica própria da Igreja que, entre nós, tem vindo a ser objecto de crescente atenção por parte das autoridades eclesiásticas. Penso, em particular, no Átrio dos Gentios e na Pastoral da Cultura. O átrio dos gentios deverá prosseguir na sua promoção do diálogo entre crentes e não-crentes, e entre crentes de diferentes confissões. Por seu turno, a Pastoral da Cultura, que tem revelado um imenso dinamismo, deverá chegar ao maior número possível de pessoas. Mas isso é algo que cabe, também, a cada um de nós. Afinal, importa que o novo papa tenha uma percepção lúcida dos chamados sinais dos tempos. Quando refiro sinais dos tempos não estou a pensar nos sound bytes, nas modas, em síntomas efémeros, ainda que ruidosos, mas sim naquilo que de mais profundo se insinua nas nossas sociedades. Algo a que o pensamento e a cultura não são, obviamente, alheios. Afinal, como defendia Bento XVI, urge prosseguir o concílio, pois aí “a Igreja acolhia e recriava por si mesma, o melhor das instâncias da modernidade, por um lado, superando-as e, por outro, evitando os seus erros e becos sem saída. O evento conciliar colocou as premissas de uma autêntica renovação católica e de uma nova civilização – a 'civilização do amor' - como serviço evangélico ao homem e à sociedade.”