domingo, 22 de dezembro de 2013

Moita Macedo (parte II)

"Curiosamente, quando transitamos para a obra pictórica de Moita Macedo, a evidência do rosto dilui-se. Fernando António Baptista Pereira, com a argúcia analítica que fez dele uma das vozes mais penetrantes sobre a arte em Portugal, abordou esta relação entre a palavra e a imagem em Moita Macedo. Contudo, importa continuar este trabalho de reflexão. Fá-lo-ei abrindo um caminho, o do aprofundamento da análise daquela que considero ser a seminal relação entre autobiografia estética e representação. Ainda antes de prosseguir importa acentuar que, em tempos que recusam a sistematização, Baptista Pereira teve a coragem de avançar com uma abordagem sistemática e tópica da obra do artista. Por seu turno, Vítor Serrão, figura cimeira da História de Arte entre nós, assinalou, com o brilhantismo que lhe é habitual, quais os seus tópicos nucleares. Numa obra que oscila entre a abstracção e a representação, e em que as fronteiras entre ambas se diluem, Baptista Pereira identifica tópicos como “Os outros Eus”, “as Tauromaquias”, “os Quixotes”, “Cristos e Calvários”, “Caravelas”, “Cidades”. É neles que o sujeito, que um rosto, uma identidade, se projectam. O rosto que se explicita na palavra, parece denegar aqui a sua presença. Um dos momentos em que essa denegação será mais evidente, é, na minha opinião, um quadro de 1976, intitulado Um quasi auto-retrato. Uma das vertentes que mais me toca na obra de Moita Macedo é aquela em que predomina a ausência de um referente - chamemos-lhe abstracta; aquela em que a pintura, claramente devedora do Modernismo, é apenas isso, pintura. Escreve a propósito o crítico de arte norte-americano, Clement Greenberg: “Onde os Velhos Mestres criaram uma ilusão do espaço que nos podemos imaginar a palmilhar, a ilusão criada por um modernista é a de um que nós podemos olhar, podemos percorrer apenas com o olhar. ... Com Manet e os impressionistas ... a questão deixou de ser definida como oposição entre cor e desenho, e tornou-se uma questão de pura experiência óptica ...” (Clement Greenberg, “Modernist Painting”, apud Fried 20) É, portanto, uma relação diferente entre pintura e observador, uma relação marcada pela opticalidade, que se impõe. Gostaria de a abordar em Moita Macedo. Gostaria de o fazer na esteira do crítico de arte que mais me inspira, o norte-americano Michael Fried, e do seu conceito de absorpção. Gostaria de meditar sobre aquela vertente não figurativa da obra de Moita Macedo, partindo da análise de Forma, enquanto estrutura pictórica, que emerge do reconhecimento dos limites do quadro. Gostaria de ver em que medida, também para ele, a forma se terá ou não tornado algo de diferente do que era na pintura convencional – um “objecto de convicção” (Fried 78). Gostaria de identificar qual a relação de continuidade entre o exterior e o interior. Ou ainda como se pode reconhecer uma sintaxe através da análise da relação entre elementos arbitrários (sem sentido)? E que tipo de experiência cognitiva se suscita? Não temei, porém, pois isso exigiria muito tempo. E ele escasseia. Deixarei, portanto, essa reflexão para outra oportunidade. Regressemos, então, a Um quasi auto-retrato. O auto-retrato constitui uma tradição pictórica particularmente relevante. Nela destacaria duas dimensões algo recorrentes, a da interpelação do espectador, através do olhar do retratado, e a dramática. Com efeito, no auto-retrato é recorrente o olhar do artista convocando aquela que o observa para a sua intimidade, ou antes, para a intimidade que ele deseja exibir. Artistas como Dürer fizeram-no amiúde em vários momentos da sua vida, revelando determinadas singularidades, sem ignorar a presença do espectador. Mesmo quando narcisicamente diluído em instantes solenes como a Natividade, em Boticelli, ei-lo que, exibindo-se num auto-retrato, nos interpela. Implícita ou explícita a dimensão dramática emerge no auto-retrato. Veja-se a ironia de Judite com a cabeça de Holofernes, de Cristofano Allori, onde, sob a narrativa bíblica, desponta a auto-biográfica: Allori auto-representa-se como Holofernes, enquanto a amante que o abandonara, é figurada como Judite, acompanhada por sua mãe, ou seja, pela sogra desejada. Nenhum destes aspectos surge em Um quasi auto-retrato. Afinal, porque ele é quasi, porque não chega a ser assumido como pertencente à convenção do género auto-retrato, a representação do artista, dos seus traços, da sua expressão, dá lugar a uma massa, transformada em índice onde o corpo, apenas delineado, sugerido, num movimento algo furtivo, se insinua. Neste quadro, o testemunho é indiciado, é indirecto. Nada aqui se evidencia da estratégia confessional. Será este, porventura, o verdadeiro auto-retrato? Aquele em que o corpo se transformou no objecto, na textura da tinta, na própria matéria que, ela sim, dá corpo, vida, ao objecto artístico. Poderá, afinal, este quadro, algo singular e excêntrico, em termos tipológicos, face ao conjunto da sua obra, ser uma espécie de arte poética sua? A figuração de uma síntese?"

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