quinta-feira, 14 de novembro de 2013
Inesperada e excepcionalmente, pois é antes
de ter lido - algo que não é meu hábito, que recomendo A fé vive dos afetos, de José Frazão Correia. No entanto, aquilo que conheço do autor, nomeadamente intervenções e textos seus dispersos por aí, levam-me a colocar o seu livro na minha lista de leituras num curto prazo. Deixo-vos um belo texto seu que colhi no site da Pastoral da Cultura. Podereis, assim, ver que não vos defraudo. Atentem, em particular, mo passo que se inicia em "Maravilhados ou temerosos..."
Boas leituras!
Os lugares e os ritmos mais elementares da existência humana, com seus cumes e seus abismos, a sua graciosidade e o seu custo, são os mesmos ritmos e lugares em que se dá e se vive a fé em Jesus de Nazaré. Em filigrana, já condensam e desenham o dom e o custo da fé num Deus que se nos dá, expondo-se por entre as possibilidades e fragilidades da nossa existência corpórea, sempre, por isso, situada na atualidade de um presente e no concreto de um lugar. Lembremos o nascimento e a morte, a paternidade e a maternidade, o sermos filhos e irmãos, a confiança e o temor, a culpa e a reconciliação, a aliança e a traição.
Maravilhados ou temerosos pelo mistério inacessível dos inícios e do fim que nos envolve, não podemos deixar de viver entre a memória e a esperança, de estremecer diante da ingovernabilidade dos acontecimentos, de nos admirarmos diante do milagre da vida sempre, de novo, restituída. Com toda a sua complexidade e ambiguidade, é nestes lugares do nosso quotidiano que sempre se joga a existência de cada homem, de cada mulher e de cada grupo humano. Por isso, é também este o húmus da imagem que possamos ter de Deus - ajustada ou distorcida - e do ato de crer - realizado ou recusado - enquanto experiência densamente humana. Bem longe de ser um vago e cego arrepio da alma ou o resultado, claro e distinto, de uma demonstração lógica, a fé é sempre questão de vida - e de morte do medo de confiar num outro e de se lhe confiar. É disposição vital e contacto corpóreo, por vezes dramático e doloroso, com Deus, Origem e Destino, que se nos expõe, também Ele, no corpo de carne de seu Filho.
Seria muito pobre considerar a fé apenas como uma doutrina, a aceitar e a aprender cegamente. Ou, então, como um conjunto rigoroso de ritos a executar impecavelmente, ou como uma moral severa a cumprir escrupulosamente. Ou, ainda, como uma rica tradição religiosa a preservar fielmente. E seria ainda mais pobre se fosse tida como a solução instantânea para todos os problemas, mais ou menos alienada da realidade, mais ou menos ideológica, mais ou menos etérea. Garantiria tudo, a custo de quase nada, iludindo o lado fascinante, mas também tremendo, do mundo divino, e dispensando da real travessia das questões difíceis da existência e do custo que a vida sempre tem. Mas a fé, se é opção por um estilo humano de vida, grato e gracioso, que gera, por isso, individual e comunitariamente, modos concretos de ver, de pensar e de agir - não deixa, por isso, de implicar doutrina e rito, moral e tradição -, é, primeiro que tudo, disposição, dinamismo e encontro visceral com a paisagem, a palavra e o rosto de Deus revelado na história efetiva de Jesus. É encontro com a graça-do-Filho-de-Deus-que-salva, face a face (por vezes, corpo a corpo, porque o dom pode encontrar resistências), graça à qual, confiada e livremente, me abandono. Só porque a fé é questão de vida (e de morte), me poderá fazer viver, permanecendo firme.
A fé-que-salva é, portanto, o reconhecimento afetivo e ponderado, continuamente grato, e o abandono livre, continuamente renovado, ao excesso do dom divino que, na história de Jesus, se revela digno dos afetos humanos mais caros e se oferece, assim, ao discernimento e decisão da liberdade, corporal e historicamente situada. Tratando-se de um laço vital com Jesus de Nazaré e, nele, com o Pai, no Espírito, renovado continuamente ao ritmo da vida concreta, não poderá ser menos do que um ato muito humano. Sendo gesto de abandono reconhecido e deliberado, afetivo e responsável, livre e generoso, de uma biografia que se reconhece agraciada, precisamente quando se vê visceralmente tocada e assinalada (talvez ferida) pelo dom de Deus oferecido em Jesus de Nazaré, a fé não poderia implicar menos que a totalidade de uma existência bem radicada no seu lugar. Não esqueçamos como os próprios discípulos, só quando são «“tocados” pela humanidade de Cristo», se tornam «capazes de “tocar” a sua divindade». Exatamente, porque «não existe outro acesso à divindade de Deus senão através da sua própria humanidade» (Mazza, 2008: 213).
Bastaria abrir uma qualquer página da Sagrada Escritura, com seus contos e parábolas, mandamentos e orações, sabedoria e profecias, para testemunhar como é por entre os avanços e os recuos de um povo e as particularidades de tantas biografias que o Deus bíblico se expõe, lentamente, à difícil e admirável história humana. Nenhum nome o fixa. Nenhum lugar o aprisiona. Nenhuma narração o esgota. Porém, dá-se na contingência dos olhares que o entreveem, nas vozes que o invocam, nas biografias que lhe dão corpo, nos lugares de vida e de celebração que assinalam a sua passagem, nos silêncios que preservam a sua diferença. Por isso, temos a Escritura como testemunha lenta e plural do impacte corpóreo e do difícil pacto do divino com o humano - bênção já admiravelmente realizada e ainda promessa de um dom frágil a cumprir, até que Deus, em Jesus Cristo, chegue a ser toda a vida na vida de todos.
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