sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Legado de Bento XVI

Aqui vos deixo o depoimento que prestei à Pastoral da Cultura: a) Como avalia o papel de Bento XVI no que diz respeito à relação que procurou manter com o mundo do pensamento e das artes, nomeadamente com artistas e tendências que se situam fora da Igreja Católica? A minha avaliação não pretende fazer uma súmula do seu magistério neste âmbito; outros estarão muito mais habilitados para o fazer. A minha avaliação, melhor seria dizer, a minha percepção confina-se à forma como, enquanto universitário e, também, criador, esse seu magistério me impressionou. Daí a escolha, profundamente subjectiva, de instantes ou aspectos que correspondem a um processo de descoberta pessoal do seu perfil: as suas palavras durante a visita ao campo da morte de Auschwitz, em Maio de 2006; o encontro com os artistas na Capela Sistina, em Novembro de 2009; o seu discurso no CCB durante a visita a Lisboa no ano seguinte. Porque se pode objectar que o primeiro destes aspectos não aparenta estar directamente relacionado com o mundo do pensamento e das artes, começo pelo seu discurso no CCB para melhor me explicar. Num tempo em que, segundo as palavras de um artista contemporâneo, Rui Chafes [Entre o céu e a terra], a arte cede à “frivolidade” de uma “linguagem apenas de efeitos”, Bento XVI defendeu a experiência estética enquanto busca do belo e da verdade; enquanto solo, indissociável de “uma 'sabedoria', isto é, um sentido da vida e da história”. Esta declaração, fundada no exercício da razão, surgia na linha do apelo feito no encontro com os artistas na capela Sistina: “... não tenhais medo de vos confrontar com a fonte primeira e última da beleza, de dialogar com os crentes, com quem, como vós, se sente peregrino no mundo e na história rumo à Beleza infinita...” A estética e a ética encontravam-se, portanto. Esta abertura à alteridade significou uma disponibilidade para entender e acolher os discursos estéticos que têm emergido noutros horizontes culturais, ideológicos mesmo, e de neles identificar inquietações e sintomas que são passíveis de funcionar como, ainda que ténues e pouco perceptíveis, pontes de diálogo e compreensão mútua. Escusado será lembrar a forma como esta postura tem ecoado entre nós, desde a experiência do Átrio dos Gentios, aos encontros entre crentes e não-crentes na Capela do Rato, por exemplo. Face a estes diferentes momentos, qual então o lugar das palavras de Bento XVI em Auschwitz? A um homem de uma inteligência superior, como ele, não seria obviamente difícil articular meia-dúzia de clichés sobre a intensidade daquela experiência. No entanto, e podereis estranhar a analogia, a sua reacção trouxe-me de imediato à mente a do Presidente Lincoln após ter visitado o campo de batalha de Gettysburg. Também Lincoln poderia ter verbalizado meia-dúzia de lugares comuns; no entanto, perante aquela experiência esmagadora, não receou afirmar que lhe faltavam as palavras. Igualmente perante o peso esmagador do campo da morte, Bento XVI teve a coragem de declarar: “Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto?” É impossível não lembrar o Diário de Etty Hillesum. Ora, a experiência contemplativa e meditativa do silêncio perante o inesperado e o que nos transcende em absoluto, pode constituir uma parte do processo de aprendizagem e da própria fruição estética. Pense-se no olhar perante as telas de Rothko. Concluindo, os caminhos por ele abertos desbravaram novas dimensões de diálogo estético e, ético, e, também, de entendimento de quão relevante pode ser, hoje em dia, a arte na nossa relação com Deus. b) Quais devem ser as orientações e prioridades que, no seu entender, o próximo Papa deve assumir nesse mesmo campo do pensamento e das artes? Sendo tão positiva a apreciação que faço da acção de Bento XVI a este nível, não será de estranhar que ache que as orientações e prioridades do novo papa deverão ser no sentido de prosseguir o seu legado. No entanto, independentemente de eventuais acções que venham a ser desencadeadas pelo futuro papa, é importante não esquecer uma dinâmica própria da Igreja que, entre nós, tem vindo a ser objecto de crescente atenção por parte das autoridades eclesiásticas. Penso, em particular, no Átrio dos Gentios e na Pastoral da Cultura. O átrio dos gentios deverá prosseguir na sua promoção do diálogo entre crentes e não-crentes, e entre crentes de diferentes confissões. Por seu turno, a Pastoral da Cultura, que tem revelado um imenso dinamismo, deverá chegar ao maior número possível de pessoas. Mas isso é algo que cabe, também, a cada um de nós. Afinal, importa que o novo papa tenha uma percepção lúcida dos chamados sinais dos tempos. Quando refiro sinais dos tempos não estou a pensar nos sound bytes, nas modas, em síntomas efémeros, ainda que ruidosos, mas sim naquilo que de mais profundo se insinua nas nossas sociedades. Algo a que o pensamento e a cultura não são, obviamente, alheios. Afinal, como defendia Bento XVI, urge prosseguir o concílio, pois aí “a Igreja acolhia e recriava por si mesma, o melhor das instâncias da modernidade, por um lado, superando-as e, por outro, evitando os seus erros e becos sem saída. O evento conciliar colocou as premissas de uma autêntica renovação católica e de uma nova civilização – a 'civilização do amor' - como serviço evangélico ao homem e à sociedade.”

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