segunda-feira, 19 de outubro de 2009
Intimidade(s)
Como mudam as noções de intimidade e como o diálogo com os textos sagrados podem delas participar!
Numa altura em que Saramago proclama mais um sonoro e bilioso disparate, e em que, por isso mesmo, urge reflectir com ponderação, conhecimento e bom senso sobre o papel dos textos sagrados cristãos (e não só, obviamente) na nossa História, na nossa cultura e no nosso quotidiano, deixo-vos este excerto do meu livro "O Nascimento de uma Nação - Nas origens da literatura americana", sobre a relação entre a Bíblia e a intimidade.
Porque para reflectir é necessário atentar às subtilezas, escolhi, hoje, um exemplo protestante, numa modulação puritana.
Isto é, deixo-vos o exemplo de Edward Taylor, " aquele que é por muitos considerado o maior poeta puritano da época colonial. Trinta anos mais novo do que Bradstreet, Taylor (c. 1642-1729) cresceu durante a ascensão do puritanismo ao poder em Inglaterra, a qual abandonaria por se recusar a aceitar o Act of Uniformity, imposto com a subida ao trono de Carlos II. Em 1668 partiu para o Novo Mundo levando consigo cartas de recomendação para uma acima referida proeminente figura do puritanismo colonial, Increase Mather. Após algum tempo de estudo em Harvard, aceitou um lugar como pastor em Westfield, uma comunidade no Massachusetts, a cerca de cento e cinquenta quilómetros a sudoeste de Boston.
Em 1671, após oito dias de viagem a cavalo, Taylor chegou à sua nova morada, onde ficaria até à data da sua morte. As contingências históricas (a Guerra do Rei Filipe), as circunstâncias geográficas (uma comunidade de fronteira) e a sua formação académica levaram-no a desempenhar ali funções destacadas, de estratega militar a lavrador, de guia espiritual a professor, e médico, até.
Ao longo dos anos Taylor seria responsável pelo Lord’s Supper. Na teologia puritana esta cerimónia desempenhava uma função de destaque, a par do baptismo, enquanto manifestação da Aliança da Graça (Covenant of Grace) entre Deus e os Homem.
A preparação dos sermões por parte de Taylor exigia, naturalmente, uma leitura atenta dos passos bíblicos, os quais funcionavam como leitmotif, independentemente das várias horas de estudo diárias às quais os pastores puritanos estavam obrigados (Meserole 119-23).
Semelhante leitura atenta exigia uma meditação em torno do eventual efeito especular desse passo na sua própria experiência; o tal escrutínio de si próprio acima referido. Seriam essas meditações regulares que dariam origem a um conjunto de poemas significativamente intitulados Preparatory Meditations que Taylor foi compondo durante esses anos.
Antes de morrer, deu instruções para que esses textos fossem destruídos. Apesar de essas instruções não terem sido respeitadas, os seus poemas (quatrocentas páginas manuscritas) só seriam identificados em 1937, na Biblioteca da Universidade de Yale. Não deixa de ser irónico que o maior poeta puritano só tenha vindo a ser conhecido mais de duzentos anos após a sua morte.
Por que razão terá Taylor determinado que estes poemas deveriam ser destruídos? Creio que o motivo fundamental reside no facto de eles revelarem uma excessiva intimidade.
Esta afirmação pode ser motivo de perplexidade perante uma primeira leitura desses poemas, nomeadamente devido ao ser carácter alusivo e barroco. Com efeito, em tempos como os nossos, em que a comunicação simula um radical literalismo e a tentativa de rasura da mais banal ressonância metafórica e em que os media exibem os, outrora, mais resguardados aspectos do quotidiano de políticos, artistas, será particularmente difícil compreender onde reside a intimidade das Meditações?
Para melhor a desvendar, proponho-lhe a leitura deste excerto de Meditation 2. 4. Gal 4. 24. Which things are an Allegorie
My Gracious Lord, I would thee gIory doe
But finde my Garden over grown with weeds:
My Soile is sandy; brambles o're it grow;
My Stock is stunted; branch no good Fruits breeds.
My Garden weed: Fatten my Soile, and prune
My Stock, and make it with thy gIory bloome.
Though I desire so much. I can't o're doe.
AlI that my Can contains, to nothing comes
When summed up, it onely Cyphers grows
Unless thou set thy Figures to my Sums.
Lord set thy Figure 'fore them, greate, or small.
... a revelação dos medos, das inseguranças do sujeito ... ocup[a]m [aqui] um lugar destacado. Recorde-se que o puritano vive sob a tensão inerente à dúvida de ter ou não sido tocado pela Graça divina (o tal Covenant of Grace). Acresce a este aspecto, no caso de Taylor, o facto de ele ser um membro destacado da comunidade, alguém que tem a seu cargo a condução do seu rebanho, tanto no óbvio plano espiritual, como nos aspectos práticos do dia-a-dia (a gestão dos assuntos da comunidade, as estratégias e funcionalidades inerentes à defesa, os cuidados com a saúde, a escola). O autor sente, assim, sobre si o peso de uma dupla responsabilidade.
No plano privado, íntimo, sente-se inseguro, mas, em público, perante a comunidade, durante o Lord Supper, ele surge como dirigente, e deverá estar confiante de si, para que os outros se reconheçam nessa sua segurança.
O sermão baseado na Epístola aos Gálatas 4. 24. deverá projectá-la. Mas e se Deus não o escolheu? E se na sua voz for Satanás quem se manifesta? Então, ele será uma fraude ética. Significa isso que, para além de estar destinado à Queda, poderá provocar a Queda dos membros da comunidade.
É esta tensão, esta dúvida interior, ausente do Sermão, que ele expressa nesta meditação (neste poema/oração)"
Boas leituras!
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Pois é!
ResponderEliminarIsto de ser "Nobel" dá direito a dizer disparates com efeito de enorme «sound-bite» mediático. A venda de "Caim" subiu vertiginosamente, após as declarações do autor.
Sou suspeita porque não gosto nem nunca gostei de Saramago.
ResponderEliminarVindo dele, e seja o que for, sinceramente, nada me espanta. O homem pensa (aliás, creio que sempre pensou) que é o maior em termos intelectuais, etc., etc. Só que, nem isto justifica as barbaridades que diz, quero acreditar que conscientemente. Será?!