sábado, 10 de outubro de 2009
Como Bianchi me ajudou a ler Obama
No artigo sobre o Nobel que escrevi para o DN, fui obviamente constrangido pelo número de caracteres exigidos. Um aspecto que apenas indiciei, e que foi nuclear na estruturação do meu discurso, é o argumento de Enzo Bianchi.
Passo a transcrever o texto que escrevi, tal como ele saiu no DN, e depois explico-me. Vampirizando a estratégia visual da minha amiga austeriana, vou recorrer a uma cor diferente para identificar o texto:
Ao regressar a casa à hora do almoço recebo a notícia: “Obama ganhou o prémio Nobel da Paz!” “Porquê?” Interrogo.
Ao tentar racionalizar esta atribuição, recordei as palavras do Professor Adriano Moreira que, sábio e lúcido como sempre, destacara algures o “Discurso do Cairo”, assinalando que ele seria uma peça retórica passível de figurar entre os momentos mais singulares da prosa política contemporânea, à semelhança do discurso de Kennedy em Berlim. Trata-se, com efeito, de um texto em que o diagnóstico das tensões mundiais contribui para a superação da dicotomia civilizacional, e de outras dicotomias dela decorrentes que marcaram as relações da América com o mundo nos últimos anos. Importante a este nível o seu reconhecimento do papel do islão na sociedade e na História americanas.
Com efeito, Obama recusa aí a dicotomia civilizacional, colocando, em contrapartida, a ética no centro dos conflitos com que o mundo hoje se confronta. Ao fazê-lo, pode ter aberto uma porta para uma ordem mundial na qual predomine o exercício da razão.
Estamos, portanto, perante a afirmação de um desejo de viragem na política externa americana.
É evidente que a Europa sempre acolheu Obama com uma empatia muito superior àquela que ele, mesmo em momentos de maior euforia, gozou no seu próprio país.
Quero, no entanto, acreditar que este prémio, embora tenha no passado pouco de visível para consagrar, como afirmou Lech Walesa, alguém que bem mereceu esta distinção; quero acreditar, dizia, que ele poderá ajudar a fomentar a tão urgente ética partilhada de que nos fala Enzo Bianchi.
Se o Prémio Nobel da Paz contribuir para um maior envolvimento da política externa americana na busca de entendimentos e soluções para os conflitos que a todos afectam, então poderemos concluir que a Academia Sueca não se deixou seduzir pela obama-mania europeia e que, pelo contrário, soube interpretar correctamente os sinais existentes nos discursos e na vontade do Presidente. Esperemos que a Academia tenha sido presciente como em tempos o foi ao premiar os esforços de paz de Willy Brandt.
Na conferência que proferiu na Universidade Católica, e que eu, na altura, evoquei, Bianchi fez referência a um artigo que escreveu para um jornal italiano no início dos anos 90, a propósito do choque das civilizações de Huntington.
Esta perspectiva retomava, afinal, aquela que décadas antes Malraux profetizara, a do século XXI como o do conflito entre o Ocidente cristão e o mundo islâmico.
Eu próprio retomei esta ideia de Malraux numa Oração de Sapiência que, há uns anos atrás, proferi no dia da minha Universidade.
Ora, a inovação que o argumento de Bianchi nos traz é a de introduzir a ética no seio do conflito. Deste modo, o que estaria em causa não seria um confronto civilizacional, mas sim de éticas, ou melhor, entre a ética e a sua ausência.
Consequentemente, não estaríamos perante duas civilizações que se degladiariam entre si, já que no seio do Outro civilizacional poderíamos reconhecer o Mesmo ético.
Quando Obama, no Discurso do Cairo, reconhece o islão como espaço do Mesmo e da construção da identidade americana, ele está, à semelhança do que protagonizara Bianchi, a introduzir a ética como núcleo de uma nova ordem e de um novo argumento.
Além disso, ele contribui para que a América se descentre, o que, conhecendo a História americana, sabemos que não é fácil.
Se com esta nova abordagem, uma pequena porta se abrir para as relações entre os povos, tanto melhor. Afinal, como escreve Leonard Dohen, "there is a crack in everything/ That's how the light gets in".
Bianchi estava correcto e resta-nos esperar que essa luz indiciada por Obama ilumine, de facto, novos caminhos.
Um bom fim de semana!
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Excelente post.
ResponderEliminarDo meu ponto de vista,se ainda existiam dúvidas quanto às capacidades estratégicas de Obama, o discurso do Cairo eliminou-as. O efeito surpresa no reconhecimento e valorização do islão, as citações "escolhidas a dedo",... inteligentíssimo.
Acresce que Obama consegue aliar empatia, sensibilidade a uma veia salobra (quando lhe pisam os "calos")que nos fazem acreditar em mudanças certeiras.
O Nobel foi bem merecido.