quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
Alguns versos
de Philip Dacey sobre Edward Weston, um dos maiores fotógrafos americanos do século passado:"Let neither light nor shadow impose on these things/ To give them a spurious brilliance or romance,/ Let the mystery be the thing itself revealed/ There for us to see better than we knew we could."
terça-feira, 29 de dezembro de 2015
No anoitecer da vida, entrar na luz
"O sol inclinava-se em direcção ao poente. Mas o fervor da minha irmã Macrina não decaía; quanto mais se aproximava o momento da partida, mais ela corria em direcção ao seu bem-amado. […] Já não se dirigia a nós, os que estávamos ali presentes, mas apenas Àquele de quem não desviava o olhar […]Como tinha chegado a noite, alguém colocara uma lamparina ali por cima. Macrina então abriu os olhos e dirigiu o seu olhar para aquela luz, manifestando o seu desejo de dizer a oração de acção de graças da luz. Mas faltou-lhe a voz […]; soltou um profundo suspiro e tudo cessou: tanto a oração, como a sua vida." São Gregório de Nissa (c. 335-395)
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
Deixo-vos versos
de um "dos meus grandes", Eugenio Montale, com votos de um bom fim de semana; e, caso possam, passem pelo CCB à tarde para um evento da Diana Almeida; eu, porque ainda não tenho o dom da ubiquidade, estarei por Mafra, assistindo a outro evento, desta feita um concerto. Eis, então, "La memoria": "La memoria fu un genere letterario/ quando ancora non era nata la escritura./ Divenne pio cronaca e tradizione/ ma già puzzava di cadavere./ La memoria vivente è immemoriale,/ non sorge della mente, non vi si profonda./ Si aggiunge all'esistente come un'aureola/ di nebbia al capo. È già sfumata, è dubbio/ che ritorni. Non ha sempre memoria/ di sé."
terça-feira, 1 de dezembro de 2015
Nani Moretti, "Mia Madre"
Os Cahiers dedicam uma atenção muito especial a este filme no seu número mais recente. Entre os diferentes momentos/textos, muitos dos quais particularmente intensos, que podem cruzar-se com muitas das nossas experiências, memórias, ou até vivências actuais, destaco, não as palavras do realizador, mas esta pergunta/comentário que lhe fez Stéphane Delorme; deixo-a neste espaço porque amiúde é em breves comentários, e não em extensas e rebarbativas redacções, que a inteligência do olhar se desvenda: Ce qui frappe dane le film, c'est la perméabilité entre la vie, les rêves et le tournage. L'émotion n'est jamais là où on l'attend, elle passe sous forme de fluides, comme des infiltrations." (p. 10)
segunda-feira, 30 de novembro de 2015
A suspensão de Keats?
Derradeiros versos de "Navidad según Giotto", de El arte de la fuga – Antología del autor, de Narcís Comadira (Madrid: Catedra Letras Hispánicas, 2015): "Todo está detenido/ en un momento eterno./ Lo miran nuestros ojos/ pasmados, y una lágrima/ se va formando, cálida,/ aquí, en el corazón de nuestro invierno." Boa semana!
sexta-feira, 20 de novembro de 2015
“Habitación de hotel (Edward Hopper)”, de Martín López-Vega
Uma ekphrasis em que um quadro interfere na leitura de outro:"Llegó al hotel hace unas horas./ Dejó las maletas en una esquina/ y dio un paseo por la ciudad./ Ahora está sentada en la cama,/ casi desnuda,/ y sostiene en sus manos/ una carta que no se atreve a releer...pensando/…, en que es una pena/ no haber sido Giovanna Tornabuoni,/ y tener ese mismo rostro,/ que enamora con tan solo verlo,/ que tenía em 1488,/ cuando la pinto Ghirlandaio” (Magalhães, Joaquim Manuel. Poesia Espanhola de Agora/Poesía Española de Ahora, Lisboa: Relógio d’Água, 1997, Volume II, 984)
quarta-feira, 18 de novembro de 2015
Stephan Zweig, eis um escritor que recomendo
Li-o na adolescência - a ele devemos a expressão "Deu-me um Amok!" - e tenho regressado a ele nestes últimos anos, nomeadamente as biografias. Divirto-me a (re)ler, por exemplo, a que ele escreveu sobre José Fouché. Divirto-me a (re)encontrar nessa personagem que viveu no início da modernidade, tantos colegas meus universitários (e não só). Aquele tipo de fulanos(as) que, quando chega um chefe e proclama, "Agora o importante é ensino ao longo da vida!", eles de imediato gritam "Aleluia! Vimos a luz!" Depois vem outro chefe e diz, "Agora o importante é investigação!", e eles de imediato gritam "Aleluia! Finalmente, vimos a luz!" Depois vem outro chefe e diz... Estão a ver o filme, não estão? Também José Fouché foi realista, depois jacobino, depois hiper-jacobino, depois reaccionário, depois... Bom, depois caiu de amores por uma rapariga mais nova - como às vezes, raramente, claro, sucede com os homens de meia-idade, refira-se - e caiu, literalmente, em desgraça. Bom, adiante! Deixo-vos com as palavras de José María Alvarez que, muito certeiramente, constata: "... pienso en essas fotografías/ tantas veces vistas: usted y su esposa/ como dormidos. Elegantemente vestidos. No son cadáveres. Parecen dormir./.../Sabe una coisa, Zweig? Es raro ya encontrar/ escritores como usted. La especie va extinguiéndose./ Hay - me aseguran - hasta quien divulga/ que un artista es una persona como otra."
terça-feira, 17 de novembro de 2015
One of my longtime heroes
Foi no sábado que a reencontrei, desta feita no CCB, para ver Heart of a Dog. Digamos que o roteiro já tinha sido por ela delineado quando esteve no Nimas. Talvez traga as impressões que então colhi noutra altura. Para já deixo-vos três regras de vida sugeridas por Laurie Anderson numa entrevista: 1. Don't be afraid of anyone; 2. Get a good bulshit detector and learn how to use it; Be really tender. Bom final de dia!
Evangelho segundo S. Lucas 19,1-10, o episódio de Zaqueu
Sobre ele escreveu Jean Tauler (c. 1300-1361), dominicano de Estrasburgo:
Lemos no evangelho que Zaqueu quis ver Nosso Senhor, mas era muito pequeno. Que fez ele? Subiu a uma figueira seca. Assim faz o homem: deseja ver Aquele que opera maravilhas e causa um tumulto nele; mas, como não tem estatura suficiente para isso, tem de subir a uma figueira seca. A figueira morta simboliza a morte dos sentidos e da natureza e a vida do homem interior, sobre a qual Deus é levado.
Que disse Nosso Senhor a Zaqueu? «Desce depressa.» Tens de descer, não podes reter uma única gota de consolação de todas as tuas impressões na oração, antes deves descer ao teu puro nada, à tua pobreza, à tua impotência. [...] Se te resta algum apego à natureza, é porque ainda não possuis a verdade, é porque ela ainda não se tornou um bem teu; natureza e graça trabalham ainda juntas, e não chegaste ao abandono perfeito [...]; esse estado ainda não é a pureza plena. É por isso que Deus convida esse homem a descer, quer dizer que o chama a uma renúncia plena, a um pleno desprendimento da natureza. «Hoje tenho de ficar em tua casa; hoje veio a salvação a esta casa.» Que este hoje nos aconteça para sempre!
Os jesuítas do site Pray as you go colocam, todavia, uma questão algo perturbante: sendo Zaqueu uma figura pouco popular - cobrador de impostos -, por que razão foi ele escolhido? Se estivéssemos entre a multidão, o que pensaríamos nós por ter sido escolhido aquele fulano e não eu, que até tenho uma profissão mais simpática; pelo menos não chateio os outros por causa dos impostos! Afinal, what stops me from seeing beyond the obvious?
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
Breve tópico sobre um diálogo
Em “Winter Landscape”, de John Berryman, ecoa a suspensão de Keats em “Ode on a Grecian Urn”: “The three men coming down the winter hill/…/ Returning cold and silent to their town,//… to the older men,/ The long companions they can never reach” . Refira-se, porém, que na expressão final do primeiro verso, “winter hill”, se sente uma ressonância de outro quadro de Brueghel, “Winter landscape".
Quando Jesus pergunta:
"O que queres que eu te faça?" O que lhe respondes?
Eis esta mesma pergunta feita na radicalidade do excesso, como há uns dias, com o seu brilhantismo e lucidez habituais, o Padre Alexandre Palma designou este gesto, em Evangelho segundo S. Lucas 18,35-43:
Naquele tempo, quando Jesus Se aproximava de Jericó, estava um cego a pedir esmola, sentado à beira do caminho.
Quando ele ouviu passar a multidão, perguntou o que era aquilo.
Disseram-lhe que era Jesus Nazareno que passava.
Então ele começou a gritar: «Jesus, filho de David, tem piedade de mim».
Os que vinham à frente repreendiam-no, para que se calasse, mas ele gritava ainda mais: «Filho de David, tem piedade de mim».
Jesus parou e mandou que Lho trouxessem. Quando ele se aproximou, perguntou-lhe:
«Que queres que Eu te faça?». Ele respondeu-Lhe: «Senhor, que eu veja».
Disse-lhe Jesus: «Vê. A tua fé te salvou».
No mesmo instante ele recuperou a vista e seguiu Jesus, glorificando a Deus. Ao ver o sucedido, todo o povo deu louvores a Deus.
Em Relatos de um peregrino russo ao seu pai espiritual, de autoria provável de um monge de Atos,o protagonista parte em viagem na busca do encontro com a forma (fórmula ?) de dialogar com Deus. A resposta possível surge numa assunção/revisão deste passo. Ei-la como ele no-la veicula: "... imagina assim o teu coração. ... Adapta cada batimento às palavras da oração. É a isso que os Santos Padres chamam 'levar a mente ao coração'. Assim, ao primeiro batimento, diz ou pensa: 'Senhor'; ao segundo, 'Jesus'; ao terceiro, 'Cristo'; ao quarto, 'tende'; ao quinto, 'piedade'; e ao sexto, ' de mim!' Repete isso muitas vezes. ... Quando estiveres mais habituado, começa a introduzir no teu coração a oração de Jesus e a retirá-la juntamente com a respiração, como ensinam os Padres, isto é, quando aspirares o ar, diz e imagina: 'Senhor Jesus Cristo,' e ao expirares, diz: 'tende piedade de mim!' Faz este exercício tantas vezes quantas puderes, e, em breve, sentirás no coração uma dor suave e agradável, e, mais tarde, um calor reconfortante. Com a ajuda de Deus, atinges a automatização e o prazer da oração interior do coração." (Paulinas, pp. 135-136)
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
L'homme qui aimait les femmes
O título deste filme de François Truffaut poderá aplicar-se a Dante Gabriel Rossetti. O pintor/poeta tomou Alexa Wilding como modelo e sobre o quadro escreveu o soneto homónimo "Venus Verticordia", "turner of hearts"... E basta olhar para o modelo para lhe dar razão... Eis os primeiros versos: "She hath the apple in her hand for thee,/ Yet almost in her heart would hold it back". Bom fim de semana!
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
Em tempos de tantas cesuras...
convido à leitura deste passo do Evangelho segundo S. Lucas 17,11-19. Talvez a meditação que ele suscita nos conduza à procura de uma vida marcada pelo agradecimento das pequenas coisas que - no trabalho, na relação com os amigos, com a família - marcam o nosso quotidiano:
Naquele tempo, indo Jesus a caminho de Jerusalém, passava entre a Samaria e a Galileia.
Ao entrar numa povoação, vieram ao seu encontro dez leprosos. Conservando-se a distância,
disseram em alta voz: «Jesus, Mestre, tem compaixão de nós».
Ao vê-los, Jesus disse-lhes: «Ide mostrar-vos aos sacerdotes». E sucedeu que no caminho ficaram limpos da lepra.
Um deles, ao ver-se curado, voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz,
e prostrou-se de rosto por terra aos pés de Jesus para Lhe agradecer. Era um samaritano.
Jesus, tomando a palavra, disse: «Não foram dez os que ficaram curados? Onde estão os outros nove?
Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro?».
E disse ao homem: «Levanta-te e segue o teu caminho; a tua fé te salvou».
terça-feira, 10 de novembro de 2015
O cerco à Assembleia da República vivido pelo protagonista de "Pentâmetros Jâmbicos"
CAPÍTULO 21 de Pentâmetros Jâmbicos, intitulado "Cercos e scones "
O Senhor estava lá!
Chá preto e scones, eis uma prova de que Deus existe, pensou o Carlos. Para logo dizer para si, perdoai-me, Senhor, ‘tava a brincar. Depois pegou no porta-moedas e deitou contas à vida. O Vítor emprestou-me o Manual de Mineralogia do Dana, versão de Klein e Hurlbert que eu precisava de comprar. Se m’ atirar a umas noitadas a fazer fichas não só poupo o dinheiro do livro como das fotocópias. Além disso, já são duas horas. Se não me lembrar do almoço, sempre ficam mais uns trocos.
Moral da história, posso muito bem assentar arraiais nas Vicentinas, beber um chazinho e comer uns scones.
Como ainda era cedo, decidiu ir até ao jardim do Princípe Real, sentar-se a fazer horas e aproveitar para dar uma vista d’olhos pelo livro. No entanto, logo após a leitura do índice, a perspectiva dos scones com manteiguinha a derreter, acompanhadinhos com um chazinho quentinho, assentou arreiais na sua imaginação.
Em breve começou a salivar.
Tenho que combater esta gula, pensou. Exercício físico! O que eu preciso mesmo é de exercício físico. Vamos lá dar um passeio a pé para distrair. Levantou-se e começou a descer, ao acaso, em direcção a S. Bento. Veio-lhe à ideia o Eclesiastes, seu momento predilecto do Livro, e uma melodia que diria mais ou menos assim: Eu não sei se hei-de fugir / ou morder o anzol / Já não há nada de novo / aqui debaixo do sol. Aliás, já os Byrds se tinham lembrado disso: for everything there is a season / and a time for every purpose under the heaven.
Ai Cesário, pensou, que melancolia nesta luminosidade. E reconfortado com a pena que sentia de si próprio, lá seguiu a cantarolar os pássaros com y.
Um estranho e intenso rumor, em breve começou a chegar aos seus ouvidos. Quanto mais descia e se aproximava de São Bento, mais nítido era o rumor. Gritos, palavras de ordem, canções revolucionárias, toldavam os céus de Lisboa nessa tarde cheia de sol. Mais uma manif, pensou. Será que estes fulanos não se cansam com manif atrás de manif, prosseguiu nos seus devaneios, com os scones em mente.
E, tal como ele amiúde poderia constatar ao longo da vida, porque a perspicácia não era, de facto, uma das suas mais evidentes virtudes, o Carlos, mais uma vez, enganou-se.
Aquela não era uma manif qualquer, ou, pelo menos, não estava destinada a ser referenciada, historicamente, como uma manif qualquer. Esta não era também aquilo que, tecnicamente, poderia ser considerado uma manif, mas sim um cerco, um cerco à, vá-se lá ver, Assembleia em São Bento. Lá dentro estavam os deputados, nos seus assentos, amarrotados, sonolentos, suados e cheiros de fomeca, e cá fora estavam os operários da construção civil... em festa.
E, mais uma vez, sem saber muito bem como, o Carlos despertou no centro da História.
Deambulando, sem rumo certo, e já sem se lembrar dos scones, lá se foi aproximando das escadarias da Assembleia. Por todo o lado, havia barreiras, maralhal, perdão, compagnons a comer sardinha assada - ao ver as sardinhas, vieram-lhe à ideia os scones-, e a beber vinho tinto. Grupos e mais grupos discursando, apresentando argumentos por entre acesas discussões...
E o Carlos lá foi andando, com a naturalidade e o ar pachorrento que lhe eram característicos.
Até que... até que alguns operários repararam que ele destoava no meio daquela festa.
As calças eram de ganga, como as de tantos que ali estavam, mas Levis todas bem engomadinhas, sem sinais de tinta de esmalte. Tinta, só se fosse da china, de alguma Mont Blanc de família mais traiçoeira. A camisa, imaculada e vincada, não enganava ninguém. As mãos não apresentavam sinais de vez alguma terem tocado numa pá que não fosse de plástico... e nas areias das praias da linha. A cara era de bebé Nestlé. E aquela trunfa, nada proletária, à Marquês de Pombal, ora bem!
E foi assim que o Carlos começou a sentir-se rodeado pelo calor humano do proletariado. Senhor! Ajudai-me, Senhor porqu’ eu não sei com’ é que fiz isto, pensou.
E logo, parecendo cair dos céus, se fez ouvir uma voz forte, firme, imponente e determinada:
-«Não há problema, pessoal,» sentenciou aquela voz que, como referi, apesar de forte, firme, imponente e determinada, não era a do Senhor. E quanto a sarça ardente, nada. O que mais dela se assemelharia seriam as fogueiras das sardinhadas. «O rapaz é cá dos nossos,» exclamou, surgindo por entre a multidão, o Onassis. Não leitor, não era propriamente o fantasma do famoso milionário, mas sim um compagnon, amigo do Carlos.
O Onassis não se chamava, obviamente, Onassis, mas sim Crespo. Aliás, era frequente, em pequenas localidades, marcadas por uma cultura predominantemente rural, que as pessoas conhecessem outras graças; maralha de um determinado estrato social, entenda-se, já que as elites preservavam as graças de baptismo e os títulos, herdados ou adquiridos. Quanto a outros epítetos, esses só surgiam, jocosamente, nas suas ausências, pela voz dos que se encontravam no estrato mais a baixo.
As alcunhas eram, na sua essência, depreciativas, ou como anos mais tarde outras elites, também elas, saudosistas, diriam, politicamente incorrectas, já que exploravam determinados aspectos físicos ou características sociais ou psicológicas, não muito simpáticas para os seus destinatários.
Para cúmulo dos cúmulos, passavam frequentemente de pais para filhos, de geração em geração, acompanhadas das narrativas que haviam estado nas suas origens.
E se o leitor esboça neste momento um sorriso, é porque desconhece as delícias e as virtudes quotidianas da vida rural.
Se calhar até compra Cds de grupos revivalistas com meninas da cidade a dançar o vira; se calhar até se saracoteia ao som dos grupos etnológicos de compagnons professores de trabalhos manuais do segundo ciclo do ensino básico com coletes pretos e cavaquinhos que rebuscam as verdadeiras raízes culturais e etnológicas do nosso povo; se calhar até simpatiza com o chique da romaria com banda no coreto.
Sossegue leitor, sossegue, leitora, pois O Senhor, na Sua infinita misericórdia, perdoar-lhe-á, já que o meu amigo e a minha amiga, tal como os da parábola, não sabe o que faz, ou tem graves problemas de paladar.
Só para ter um vago sabor das delícias da vida no campo, e se não entende a crueldade desta tradição, imagine-se a ser tratado por Texugo, até ao fim dos seus dias, só por causa de um tio-avô que você provavelmente nem sequer conheceu mas que, na sua juventude, tinha problemas de meteorismo. Imagine-se numa reunião do conselho de administração onde, por acaso, está presente um patrício que, em vez de o tratar pelos deferentes Sr. Dr. ou Sr. Administrador, exclama eufórico:
-«Olha o Texugo!» Para logo explicar aos seus pares do órgão. «Desde a escola primária que não via o meu velho amigo Texugo. Por acaso sabem por que é que ele era conhecido pelo Texugo? O avô dele era famoso por estar sempre a dar uns tra...»
Ou então, no caso da leitora, pense no gozo que teria ao ser conhecida, ao longo da vida, por Mata-Hari, devido a uma bisavó coscuvilheira. Imagine-se a ser tratada assim em todas as circunstâncias da sua vida. Recorra à sua imaginação, pois não há circunstância que escape; não há, não!
O Crespo recebera, naturalmente, o cognome de Onassis porque alguém nele descortinara semelhanças físicas com o milionário. Outra ilustre personagem histórica era o Xärxíl, neste caso devido ao seu aspecto bonacheirão e à sua imponência física que fazia lembrar o estadista inglês Winston Churchill. Havia ainda, entre muitos mais, o Vietcong, assim agraciado porque, certo dia, fizera um imenso escabeche no parque de campismo para montar a barraca - as tendas foram inventadas mais tarde, quando a solenidade democrática as consagrou para retirar do limbo social as remediadas férias do popolo minuto. Corria a guerra do Vietname, e alguém exclamara:
-«Porra, a barulheira que estes gajos fazem, até parece que vêm aí os vietcongs!»
Escusado será dizer que o filho dele também se chama vietcong, e que o netinho, ainda com alguns meses, já herdou um carinhoso vietconguezinho, nome com o qual entrará para o jardim de infância, e que o acompanhará até à casa de repouso. Excepto se fugir para a cidade, e não regressar às origens; e mesmo assim há que rezar para que nunca haja a tal reunião do conselho de administração, onde alguém se lembre do vietconguezinho.
Trata-se, como pode constatar, de uma espécie de versão rural da anamnsesis grega.
Além disso, as alcunhas podiam ser mesmo particularmente cruéis e ... divertidas, caso não fossemos nós os destinatários.
Atentai, caro leitor, cara leitora, nos seguintes exemplos escolhidos ao acaso: o Lâmpada Fundida, assim nomeado porque tinha um olho de vidro; o Pintas, um infeliz que ficara todo marcado pela varicela; o corno de vaca, assim apelidado porque, segundo se dizia, a mulher tinha um caso com outra mulher; ou, para encerrar este breve e sumário catálogo, o Tuiste, um carteiro que tinha uma perna ligeiramente mais curta do que a outra.
Ser-me-á perdoada a digressão mas ela impõe-se pela sua pertinência histórica, visto o nosso frágil herói ter estado presente no instante do baptismo do Tuiste. A cerimónia teve lugar numa manhã ainda o Dezembro de 1973 acabara de dar os primeiros passos, quando o tímido sol de Outono convidava os frequentadores do café do Presidente da Junta de Freguesia a vir até à esplanada para observar as derradeiras tansumâncias femininas em direcção à praça. O padrinho fora o Jorge Caldeira, um aristocrata genuíno. Como qualquer aristocrata genuíno, o Jorge nunca conhecera os apertos de um relógio de ponto, e vivia dos rendimentos familiares com a mãe num palacete à saída da vila. O ócio era, também ele, genuinamente cultivado. Nesse dia, tal como nos outros dias, o Jorge levantara-se a meio da manhã, tomara o seu duche, escanhuara-se, vestira-se, tal como sempre, em tons castanhos e bejes, com o seu colete, em cujo bolso se insinuava um relógio, preso pela corrente de prata ao segundo botão a contar de cima, o seu laço com o nó feito par lui-même, e fora até ao café saborear a bica, acompanhada do inevitável Monserrate e de uns triviais dedos de conversa.
Hélas, restava-lhe apenas um par de anos de vida, já que um dos seus hobbies do ócio lhe minava, em silêncio, o fígado.
Contemplavam o Carlos e o Jorge o rame-rame habitual, quando este interrompeu o silêncio:
-«Já reparou no fulano?»
-«O Nelo da Albertina?» Inquiriu o Carlos.
-«Sim,» anuiu o Jorge. «O Carlos não notou que o pobre de Cristo, anda sempre a subir e a descer, a subir e a descer, até parece que está sempre a dançar o twist.» A boca espalhou-se e o Nelo da Albertina deu lugar ao Tuiste.
Regressando ao que importa.
Naquela tarde junto à Assembleia, graças ao Onassis, o Carlos não comeu... uma doze de porrada dos compagnons da construção civil, nem provou scones com manteiguinha, mas, em contrapartida, petiscou umas deliciosas sardinhas assadas acabadinhas de fazer. Não bebeu chazinho preto, mas, em contrapartida, deu uns goles de uma excelente pomada. Não se sentou confortavelmente numa cadeira nas Vicentinas, mas, em contrapartida, empoleirou-se, às gargalhadas, nos muros da Assembleia. Não andou a deambular, ao acaso e melancólico, pelas ruas de Lisboa, recitando mental e atabalhoadamente Cesário Verde, mas, em contrapartida, teve direito a uma divertida visita guiada ao centro da História pelo meio dos sitiantes.
Enquanto se passeava com o amigo, veio-lhe à ideia a mensagem que enviara para outro Assento mais bem colocado, e concluíra que, naquela tarde, também Ele estivera ali, em São Bento, no cerco dos operários da construção civil.
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
Uma manhã de trabalho na CPLP
Reunião da Comissão Temática de Educação, Ensino Superior, Ciência & Tecnologia, dos Observadores Consultivos da CPLP, que coordeno em representação da Sociedade de Geografia de Lisboa. Várias medidas relevantes aqui adoptadas: a da divulgação de notícias envolvendo a comissão temática através da plataforma informática, a criação de um grupo que irá operacionalizar o Instituto Paulo Freire (uma ideia de Ana Benavente que ela irá implementar através do grupo que envolve representantes, não só dos observadores consultivos, mas também das entidades convidadas), e a criação de um grupo que irá levar a cabo uma conferência, em Março, sobre a mobilidade académica no âmbito da CPLP. Há quem considere que faz política e intervenção social através de posts no Facebook, eu, à velha maneira clássica, prefiro trabalhar. E, como se pode ver pelo elevado número de pessoas presentes na sala, muitos mais subscrevem estes hábitos tradicionais.
terça-feira, 6 de outubro de 2015
Coincidências, ou o que é essencial?
Começando o dia com a habitual azáfama de mails, plataformas, impressos para preencher, reuniões a agendar, quando sou surpreendido por este passo de Lucas 10,38-42:
Naquele tempo, Jesus entrou em certa povoação e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa.
Ela tinha uma irmã chamada Maria, que, sentada aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra.
Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço. Interveio então e disse: «Senhor, não Te importas que minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe que venha ajudar-me».
O Senhor respondeu-lhe: «Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada».
Aqui fica o modo como Velásquez viu este episódio sobre a importância "de não perder o Norte, de saber o que é essencial." E o que é essencial para ti?
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Can I recognize God in this place
and in the ordinary people around me? Can I become aware of God’s presence here now? Interpela a voz de hoje em Pray as you go. Sim, em timbres de voz, em certa forma de sorrir, nesses "instantes límpidos, incomparáveis, de que não conhecemos as regras, [que] são portadores da possibilidade de sentido e redenção para a vida," de que fala Tolentino; nas memórias desses instantes partilhados com estes dois amigos que partiram demasiado cedo neste Verão, Stephen van Loo (1950-2015) e Fátima Araújo (1955-2015).
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
Acabou de chegar...
Lembram-se dos Communards? Do teclista, Richard Coles? Pois hoje, a designação correcta será Reverendo Richard Coles. Estas são as primeiras linhas do recentemente publicado Fathomless Riches, or how I went from pop to pulpit:"In a plain little room out of the sun, religious zealots in robes and beards meet to study the teachings of the founder of their sect. In the hum of their discourse and the rhythm of their prayer summaries of his teaching emerge, are worked up, recorded and broadcast to the communities he founded, fractious and disobedient, in the cities and towns of that hot volatile region.
The teacher we know as St. Paul. He lived in the first century in Palestine, and those summaries we know as his epistles, or letters, to the communities he founded. Paul was born a Jew and became a brilliant scholar, so devout and so rigorous he was charged with putting down a weird little sect that had sprung up and around an itinerant rabbi from the north, Jesus of Nazareth, whose teaching was so scandalous, so threatening, that he had been handed over to the Romans and executed.
And then something extraordinary happened. Paul, who had never seen Jesus or heard him teach, encountered him in a way that was so dazzling he was first blinded by it. When he recovered his vision he saw something never seen before: the God who created the universes fully realized in a man, the expectation of the Jewish people not only fulfilled but surpassed, and the offer of salvation to all."
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Erbarme dich, mein Gott
Erbarme dich from Bach’s St Matthew Passion. Erbarme dich, mein Gott, um meiner Zähren willen ‘Have mercy, my God, for the sake of my tears.’ As you sit here now, what are the sorrows and pains you are carrying?
Today’s reading is from the Gospel of Matthew 18:21-35.19:1:
Peter approached Jesus and asked him, "Lord, if my brother sins against me, how often must I forgive him? As many as seven times?"
Jesus answered, "I say to you, not seven times but seventy-seven times.
That is why the kingdom of heaven may be likened to a king who decided to settle accounts with his servants.
When he began the accounting, a debtor was brought before him who owed him a huge amount.
Since he had no way of paying it back, his master ordered him to be sold, along with his wife, his children, and all his property, in payment of the debt.
At that, the servant fell down, did him homage, and said, 'Be patient with me, and I will pay you back in full.'
Moved with compassion the master of that servant let him go and forgave him the loan.
When that servant had left, he found one of his fellow servants who owed him a much smaller amount. He seized him and started to choke him, demanding, 'Pay back what you owe.'
Falling to his knees, his fellow servant begged him, 'Be patient with me, and I will pay you back.'
But he refused. Instead, he had him put in prison until he paid back the debt.
Now when his fellow servants saw what had happened, they were deeply disturbed, and went to their master and reported the whole affair.
His master summoned him and said to him, 'You wicked servant! I forgave you your entire debt because you begged me to.
Should you not have had pity on your fellow servant, as I had pity on you?'
Then in anger his master handed him over to the torturers until he should pay back the whole debt.
So will my heavenly Father do to you, unless each of you forgives his brother from his heart."
When Jesus finished these words, he left Galilee and went to the district of Judea across the Jordan.
Jesus speaks bluntly in this passage of the pain of being unforgiven, and even of punishment, in a way that might seem threatening. But the underlying message here is about forgiveness, about the need for forgiveness. For a few moments, can you call to mind what un-forgiveness there is in your life? - hurts you have suffered from other people that you haven't got over, or lingering guilt you might feel about things you've done to others that you wish you hadn't?
Now think of those first words Jesus utters in this passage, that Peter should forgive "not seven times, but seventy-seven times", and for a moment, imagine him saying this to you. When you apply this to your situation, how does it make you feel? More at ease? ... or perhaps inadequate? ... or does it stir in you some desire for a change of heart?
Read again to the first part of the reading, noticing how you feel at the moment when the king has pity and forgives.
Unforgiven pains and resentments hurt the person who won't forgive as much as the person who is not forgiven. Speak to the Lord now about any guilt or resentment you need to be liberated from. Sometimes you can only honestly say, "I would like to forgive, but I can't at the moment." That desire may be enough for now.
segunda-feira, 20 de julho de 2015
"The days that we have seen."
Ao rever, uma vez mais, ainda uma vez mais, os planos iniciais de Badaladas da Meia-Noite, e ao ouvir de novo as palavras de Master Shallow - "The days that we have seen" - para Falstaff, e a réplica deste - "We've heard the chimes at midnight", veio-me à ideia um dia, algures na segunda metade da década de 70, em que eu e um colega de Filosofia, o Marcello, nos sentámos na relva (na altura ainda se lhe podia chamar relva), encostados a uma árvore, junto ao ironicamente chamado Pavilhão Novo, na Faculdade de Letras, cada um com a sua cerveja na mão, e o Marcello me disse: "um dia, quando formos velhos, hei-de lembrar-me de estar aqui sentado consigo [o tratamento por "você" não era snobismo, devia-se, sim, ao facto de o Marcello ser brasileiro], a beber uma cerveja, e a dizer como o Pablo Neruda, 'confesso que vivi'." É verdade, Marcello, "the days that we have seen..."
quinta-feira, 16 de julho de 2015
Quando há uns vinte e tal anos escrevi estes versos
que encerram a "Meditação I" de Seduções do infante foi sob o impulso e a memória deste plano no início de Citizen Kane: "O halo dilui-se em torno do Senhor/ da Serra, a neve dança sobre a casa/ na campânula, presa nas mãos do infante."
Ainda a propósito de Citizen Kane, e destes planos iniciais, escreveu André Bazin: "essa inclinação recorrente pele neve, característica de uma fantasia infantil (as bolas de neve em Les enfants terribles, de Jean-Pierre Melville). A nostalgia da neve está associada às nossas primeiras brincadeiras (a que provavelmente deveríamos acrescentar um simbolismo específico da neve, cuja alvura ameaçada, promessa de lama, convém particularmente à inocência culpada da infância)". [negrito meu, e acrescento: Touché!]
quarta-feira, 15 de julho de 2015
Um "Twin Peaks" à francesa?
De qualquer modo, um filme hilariante, considerado pela redacção dos Cahiers du Cinéma o melhor filme do ano. Tem vindo a ser exibido num canal por cabo. Aqui fica o que,a propósito dele, escreveu Stéphane Delorme, director dos Cahiers:"Parfois, devant un film, les seuls mots qui viennent à l’esprit sont : « c’est pas possible ». La dernière fois c’était devant Holy Motors de Leos Carax. Maintenant il y a P’tit Quinquin. Non, ce n’est pas possible qu’un cinéaste aussi sérieux que Bruno Dumont réalise le film le plus drôle depuis des années. Pas possible qu’un cinéaste accomplisse son œuvre en changeant totalement de registre, comme s’il suffisait de ce pas de côté pour que tout passe à un niveau supérieur – on rêve soudain de voir un film comique de Bergman, d’Antonioni, de Dreyer, de Tarkovski. Pas possible de faire rire à ce point de personnages ancrés dans la France profonde sans que cela passe pour une moquerie mal placée – mais le cinéaste l’a dit à Cannes, où le film était montré à la Quinzaine : « Riez de bon cœur ! » Pas possible que ce cinéma souvent mutique engendre un texte si fou et surréaliste qu’on s’en souvient par cœur. Pas possible que le meilleur acteur comique jamais vu sur cette planète soit un inconnu du nom de Bernard Pruvost, encore jardinier il y a quelques mois, qui multiplie les instants de jeu de son plein gré ou à son corps défendant, sans qu’on puisse départager l’un de l’autre. C’est n’importe quoi, ce n’est pas possible, et c’est tout ce qu’on veut.
P’tit Quinquin est une bombe, pas seulement par son comique explosif, irrésistible, mais parce qu’il dynamite toute posture d’auteur, ridiculise tous les roitelets gérant leur fonds de commerce, toutes les fausses audaces et les timidités feintes que l’on s’empresse de porter aux nues. P’tit Quinquin est un geste radical, définitif, par un cinéaste qui sait qu’il n’a plus rien à prouver. Quelle confiance en soi il faut pour s’aventurer dans pareil projet ! Bravo à Arte d’avoir suivi le cinéaste dans un pari si excentrique. P’tit Quinquin est une série de 3 h 20 à découvrir en quatre épisodes à la télévision, mais, bémol, on aurait aimé que la version cinéma (seule différence : le format Cinémascope) sorte dans la foulée, tant l’expérience de le voir d’une traite, au milieu des rires du public, a été le plus beau souvenir du dernier Festival de Cannes. Il y a un an tout juste, les Cahiers faisaient la couverture sur une autre série audacieuse, Platane d’Éric Judor, portée cette fois par Canal + : pourvu que la télévision continue à donner naissance à des projets aussi farfelus. Plus encore, on voit à quel point le cinéma français dans son ensemble, souvent enclin à l’académisme, est aussi le terreau des projets les plus invraisemblables. Il est probable que pour la troisième année de suite le meilleur film de l’année pour la rédaction soit un film français, après Holy Motors et L’Inconnu du lac. On voit mal qui pourrait détrôner c’t hallucinant P’tit Quinquin.
Quant à Bruno Dumont, après avoir tenté et réussi l’an passé son premier film « avec star », Camille Claudel 1915, il semble avoir découvert un nouveau continent, et son prochain film sera encore une comédie. Dans P’tit Quinquin il garde son sens inouï du cadre, du paysage, ces raccords regard à tomber par terre, et son attention merveilleuse aux comédiens. Et il s’est débarrassé d’un certain volontarisme qui pouvait plomber ses films en appuyant ou soulignant trop : il avait besoin de légèreté. Mais au fond rien n’a changé : comme ses autres films la série se dirige vers un tragique (de plus en plus apaisé) qui replace l’humanité dans le monde et affronte l’absurdité du mal. Il est aujourd’hui notre seul cinéaste métaphysique. Même Brisseau ou Guiraudie replient leurs récits vers les rapports humains. Chez Dumont il y a toujours un moment où le visage est ouvert : il est une promesse de paysage. Et l’homme ne peut faire signe que vers la terre. D’où cette figure désarmante, la plus belle de son cinéma, où un personnage regarde le monde devant lui. La caméra montre ensuite ce qu’il voit dans un point de vue subjectif qui dit la beauté du monde, le mystère du monde, mais aussi la beauté et le mystère de ce regard. Dans les trois derniers plans de P’tit Quinquin, deux visages regardent tour à tour dans la même direction et on ne sait plus qui des deux regarde ce que l’on voit. Peu importe ils regardent ensemble, et nous avec eux. Ce n’est pas possible, on y est, on le voit, on est « au cœur du mal », c’est-à-dire nulle part, et n’importe où sur la Terre."
terça-feira, 30 de junho de 2015
«Quem é este homem, que até o vento e o mar Lhe obedecem?».
Comentário de São Cirilo de Jerusalém (313-350), bispo de Jerusalém, a este passo de Mateus 8,27: "«Ele é chamado Cristo» (Mt 1,16), que quer dizer ungido, um Cristo que não recebeu a sua unção de mãos humanas, mas que foi ungido desde toda a eternidade pelo Pai, para exercer em favor dos homens o sacerdócio supremo. [...] É chamado «Filho do Homem», não porque tenha a sua origem na terra, como nós, mas porque há-de vir sobre as nuvens para julgar os vivos e os mortos (Mt 24,30). É chamado «Senhor», não abusivamente como os senhores humanos, mas porque o senhorio Lhe pertence por natureza desde toda a eternidade. É chamado, muito correctamente, «Jesus», que quer dizer «o Senhor salva» (Mt 1,21), pois Ele salva curando. É chamado «Filho», não porque uma adopção O tenha elevado a esse título, mas porque foi gerado segundo a sua natureza.
Há ainda muitas outras denominações do nosso Salvador. [...] No interesse de cada um, Cristo mostra-Se sob diversos aspectos. Para os que precisam de alegria, faz-Se «videira» (Jo 15,1), para os que precisam de entrar, é «a porta» (Jo 10,7); e, para os que querem apresentar as suas orações, aí está Ele, «Sumo Sacerdote» (Heb 7,26) e «Mediador» (1Tim 2,5). Para os pecadores, fez-Se também «cordeiro» (Act 8,32), para ser imolado por eles. Faz-se «tudo para todos» (1Cor 9,22), permanecendo Ele mesmo aquilo que é por natureza."
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Today’s reading is from the Gospel of Matthew.
“And when you pray, do not heap up empty phrases as the Gentiles do, for they think that they will be heard for their many words. Do not be like them, for your Father knows what you need before you ask him. This, then, is how you should pray:
‘Our Father in heaven,
hallowed be your name,
10 your kingdom come,
your will be done,
on earth as it is in heaven.
11 Give us today our daily bread.
12 And forgive us our debts,
as we also have forgiven our debtors.
13 And lead us not into temptation,
but deliver us from the evil one.’”
'Do not heap up empty phrases'--are there ever times when religious language just seems empty to you?
Where do you think God is in that sort of experience?
Now listen again to the familiar prayer (even if the words are slightly altered). Notice how it starts with God: with praise, with longing for the Kingdom, and with an acceptance of what God desires. Only secondly does it focus on our needs for food, for forgiveness and for protection.
Luke's Gospel tells us that the Our Father is Jesus’ answer to the disciples' request: 'Lord, teach us to pray'. Perhaps you might spend a few minutes now making that same request--'teach me to pray'- and try to listen in case the Lord is inviting you to make a shift.
(retirado de http://pray-as-you-go.org/home/)
terça-feira, 2 de junho de 2015
"O lado português dos espanhóis"
Num dossier a que lhe consagrou os Cahiers du Cinéma, no seu mais recente número, encontramos algumas pérolas de e sobre Manoel de Oliveira. Apreciei, em particular, a entrevista que o Mestre concedeu a Serge Daney e Raymond Bellour em 1991. Dela deixo-vos este excerto que, não tendo a ver directamente com o cinema, afinal acaba por nos reenviar para ele, visto ser a nossa identidade um dos núcleos da sua obra. Lede: "Nous sommes complètement différents des Espagnols: masi nous avons aussi des choses qui se rejoignent... Regardez le Christ de Vélasquez... Vélasquez a un côté portugais. Les Christ espagnols sont crispés, sanglants, tandis que celui de Vèlasquez est doux. C'est un Christ portugais, souriant, attentif, patient." Nova pergunta/comentário de Daney e segue-se a resposta: "Quelquefois je pense que le Portugal est comme le Christ doux, patient et résigné dont je viens de parler. Il a cet air de bouc émissaire. Il n'est par révolté vraiment. Les Portugais sont soumis à leur destin, au désespoir. Le Portugal est un pays ou l'on n'a pas trop d'illusions; le peuple se méfie de tous les grands personnages qui prometent de grandes choses."
quinta-feira, 21 de maio de 2015
A propósito de um detalhe de The Way to Calvary,
de Pieter Brueghel, diga-se que o duque de Alba deixou tão boas recordações na Flandres que, ainda no início do século XX, às crianças irrequietas era dito: "Se não te portas bem, o duque de Alba vem aí e leva-te." Informação colhida no notável livro de Michael Francis Gibson, The Mill and the Cross.
De "Roteiro dos Navegantes",
de Gianfranco Ravasi, pensando, em particular, nos amigos que não crêem na procura, eis um excerto para meditar sobre o que podem (devem) significar os (in)esperados encontros com a alteridade: "... em cada rosto humano oculta-se o enigma daquele Rosto último, invisível mas representável, às vezes também entrevisto mesmo por aqueles que não o procuram, porque inconscientemente levam em si mesmos o seu reflexo. Precisamente por esta 'semelhança' de fundo entre o humano e o divino é que a frágil embarcação da nossa busca deverá apontar antes de mais para a 'cidade do homem', uma cidade não apenas fascinante e cintilante de luzes, constelada de sinais e de 'caminhos de beleza', mas também arruinada nalguns dos seus bairros onde aparecem 'caminhos de fealdade'. Seja como for, nela está plantado um sinal que indica uma outra cidade mais admirável e perfeita, a 'cidade de Deus'." (p. 39)
sexta-feira, 10 de abril de 2015
Maldição da memória III
Disse ele um dia numa aula que o Professor Moser tinha uma memória onde tudo cabia. Porque neste espaço vou revelando o que de bom a minha memória vai conservando, devo reservar hoje umas linhas ao Salvato. A ele devo ter-me levado a descobrir aquele que, desde 1979, é o meu livro de cabeceira, Moby-Dick. E também Hawthorne, Dashiell Hammett, Herberto Helder e Carlos de Oliveira. Aquando da conferência sobre Shakespeare em Cascais, o António Feijó (outro amigo) disse – com toda a justeza - que o Salvato se distinguia dos outros pela sua generosidade. Ora, eu, que então ainda estudante e depois jovem assistente-estagiário, fui objecto dessa mesma generosidade (graças a ele pude estar perto – seria excessivo dizer “conviver”- com alguns dos nossos grandes escritores), estarei sempre grato a este amigo, Salvato Telles de Menezes.
Maldição da Memória II
Falei do Manuel Frias Martins como uma das pessoas que mais me influenciou no meu percurso universitário. Num plano diferente, já doutorado, por dois momentos tive a fortuna de acolher a experiência, a inteligência e a sabedoria do Barata Moura. A primeira, ainda na Faculdade, quando ele foi presidente do conselho científico e eu era coordenador da formação inicial de professores. Foi um processo de descoberta que durou dois anos e que me marcou enquanto dirigente. A segunda vez foi no início de 2006 – quando esta foto foi tirada – e eu me preparava para, a contragosto e sob pressões várias, assumir um determinado rumo profissional. A abordagem que então fez dos cenários que se me colocavam, apesar de breve, era ancorada na sua experiência enquanto investigador e enquanto reitor (cujas funções estavam prestes a terminar depois de ter lançado as bases para transformações profundas na minha alma mater). Graças a essa sua leitura pude tomar a opção que ainda hoje considero mais correcta e que me permitiu levar mais longe uma faceta que ele lamentava não ter podido desenvolvido tanto quanto desejava. Por isso, o meu reconhecimento a este amigo.
Maldição da Memória I
Nos outros meios não sei, mas no universitário, uma memória de elefante, como a minha, que retém pequenos episódios, breves conversas, e etc., pode ser uma maldição. Por isso, agora, quando somos inundados por toda uma plêiade de exegetas sobre HH, não posso deixar de recordar este livro de alguém que me marcou profundamente, Manuel Frias Martins. Não me esqueço de duas coisas ligadas à publicação, em 1983, deste seu ensaio sobre HH: 1) que o próprio poeta o elogiou, e que, neste venerável meio académico (lá vem a inveja), 2) assim se começou a balcanizar um dos melhores professores que tive na Faculdade. Abraço, Manuel.
sexta-feira, 27 de março de 2015
Luís Guerreiro (1958-2015)
Fomos “unha com carne” naquele tempo em que a Morte, mesmo quando próxima de nós, é ainda algo de distante no tempo; uma coisa destinada, na pior das hipóteses, aos velhotes de cinquenta anos. Foram os anos da vitória da lista que nós designávamos unitária, na Associação de Estudantes em Letras, e partilhámos (literalmente) o quotidiano algures em 1977-1978; dormíamos ora no apartamento que os pais lhe tinham arranjado para a estadia em Lisboa durante o curso, ora em minha casa, onde o Luís tinha um interlocutor constante com o meu pai (e já fazem trinta anos que também ele partiu, ainda na casa dos cinquenta). Entre nós surgiu aquilo que é raro ao longo da vida, pois fomos confidentes mútuos das nossas paixões, medos, idiossincrasias. Vivemos, afinal, as loucuras da juventude como elas devem ser vividas; mesmo sendo o Luís sempre tão sensato. Não sei se por acaso, e através daquelas associações de ideias que o tio Segismundo nos ensinou a desvendar a nossa intimidade não revelada, lembrara-me ontem de um episódio que ele me contara ao regressar da antiga União Soviética. Fora a da despedida de uma paixão (mais uma das idiossincrasias comuns!), já não me recordo se russa- perdão, soviética, que ele então tivera. Dizia o Luís que tinha ocorrido numa gare e que, segundo ele, era digna de um filme com o Bogart; resumia-se nisto: ele corria gare fora enquanto o comboio acelerava e as mãos de ambos se afastavam. Depois do curso só voltei a vê-lo há uns cinco, seis anos num “restaurante mexicano” (que já não existe) no Colombo. Hoje a notícia chegou, brutal e inesperada, no Facebook. E eu estou naturalmente muito, muito triste. É também uma parte da minha juventude, das minhas memórias, que morre, que parte com ele. E aquilo que vos deixo são algumas imagens de como o recordo, naquele tempo em que, no meio de tantos problemas, a Morte, afinal, ainda não o era. Estou certo de que Deus o acolhe agora junto de Si.
terça-feira, 24 de março de 2015
Afinidades
Filho único e amiúde seduzido pelas margens da solidão, desde cedo me tocaram estas palavras iniciais de Nick Carraway, o narrador de The Great Gatsby:In my younger and more vulnerable years my father gave me some advice that I’ve been turning over in my mind ever since.
‘Whenever you feel like criticizing any one,’ he told me, ‘just remember that all the people in this world haven’t had the advantages that you’ve had.’
He didn’t say any more but we’ve always been unusually communicative in a reserved way, and I understood that he meant a great deal more than that. In consequence I’m inclined to reserve all judgments, a habit that has opened up many curious natures to me and also made me the victim of not a few veteran bores. The abnormal mind is quick to detect and attach itself to this quality when it appears in a normal person, and so it came about that in college I was unjustly accused of being a politician, because I was privy to the secret griefs of wild, unknown men. Most of the confidences were unsought — frequently I have feigned sleep, preoccupation, or a hostile levity when I realized by some unmistakable sign that an intimate revelation was quivering on the horizon — for the intimate revelations of young men or at least the terms in which they express them are usually plagiaristic and marred by obvious suppressions. Reserving judgments is a matter of infinite hope.
sexta-feira, 20 de março de 2015
Renewing the Church in a Secular Age
foi o tópico da conferência que teve lugar em Roma no início deste mês e na qual participei. Deixo-vos duas imagens do evento, uma das quais, perdoai o narcisismo, certificando a minha presença. Para que tenham uma ideia do que foi abordado, transcrevo parte do relatório descritivo final.
The two-day International conference entitled "Renewing the Church in a Secular Age: Holistic Dialogue and Kenotic Vision" was held at the Pontifical Gregorian University, Rome, Italy, on March 4-5, 2015, and generated new interest and enthusiasm among the over 300 participants.
This was a joint effort of The Council for Research in Values and Philosophy (RVP) and The Pontifical Gregorian University (PUG), with the High Patronage of the Pontifical Council for Culture of the Holy See under Cardinal Gianfranco RAVASI.
This joint International Conference was the result of an effort which began with the identification by Professors Charles TAYLOR, author of A Secular Age, and José Casanova of four disjunctions between Church and People these related to: (a) seekers who have left ecclesial practice in search of the Spirit, and (b) the magisterium charged with pastoral responsibilities; and (c) its contemporary moral guidance, (d) in a world of plural spiritualities. Presently the project has advanced to articulate four emerging conjunctions of the Church as (a) not only listening to the experience of the laity (b) but discerning the path ahead, and hence (c) welcoming the seekers and (d) serving their broad religious needs in a context deeply marked by pluralism and diversity.
Scholars around the world, but particularly in the West, were invited to join the effort of Church renewal which this conference represents, based on the work of more than a dozen research teams in different parts of Europe and North America. The conference was intended to engage the intellectual mind and so better contribute to the universal Church as it faces the many present challenges. As such, the conference was intended also to function as a launching pad for similar initiatives to follow on the impact of secularization across Asia, Africa and Latin America and so contribute to the worldwide renewal of the Church as a communion of Dialogue in search of Truth, Beauty and the Good as the emergence of God’s Kingdom in human history.
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As a cumulative effort by these research teams mainly from Universities in North America and across Europe, the conference drew on those who have been reflecting on the challenges and opportunities of secularity faced by the various cultural traditions in the West under the project “Faith in a Secular Age”. This project, initiated and carried out by the RVP, began in 2009 with a dialogue between Cardinal Francis GEORGE from Chicago and Charles TAYLOR, and moderated by José CASANOVA. Since then, the representatives of the research teams met annually either in Washington or in Vienna, Austria (see the reports of those annual meetings www.crvp.org). These research teams planned with their members personal research, reflection, and writing. This gave founded hope that light would be shed on the crucial issues of our secular age. The teams consisted of leading religious scholars, philosophers, sociologists, etc.
Rather than beginning with the long and rich history of the project on "Faith in a Secular Age" with its multiple facets, times of promise, crisis and renewal, it seems more effective to begin from the recent period of Pope Francis. He seems to be putting things right by simple gestures in accord with both the life of the people and the gospel message. But rather than resting with these, it is our task to ask what is missing where a project of scholars might be of help.
Upon reflection one notes that Pope Frances is not going deeply into the secular culture in which all are raised. This is inescapable in daily life, and provides the terms of which present events are interpreted and the future is projected.
Hence, the goal of this project has been to support Pope Francis in this regard with professional insight drawn by such various competencies as can be provided by the humanities and the social sciences, by philosophy and theology under the light of faith.
What then is the secularity of which we speak? Charles TAYLOR in his now classical work A Secular Age, spoke of three senses of the term in order to focus on the third: (a) separation of Church and state, (b) decline in Church practice, and (c) the cultural conditions which today often make unbelief seem more easy, more natural and more viable than belief.
This has been exacerbated by sexual and financial scandals. Though these can be seen as tragic chances of timing, in fact they may be rather the inevitable results of structures which overstayed their age till finally they became unsustainable and all seemed to be collapsing.
In view of all this what then are the goals and objectives of this project; namely, what kind of vision is needed in order to contribute to the life of faith in the new cultural conditions which have come to constitute this secular age? Two stand out, namely, an wholistic vision achieved through dialogue and a kenotic vision in the image of Christ and indeed of the entire Trinity.
sexta-feira, 13 de março de 2015
Lembram-se dos Creedence Clearwater Revival?
Pois o (anti)herói dos Pentâmetros Jâmbicos também. Como mostraram interesse pelo modo como ele viveu, de uma forma intensamente revolucionária, o 11 de Março, vejam agora como o John Fogerty entrou na vida dele. Eis o CAPÍTULO 6, intitulado, "O umbigo, a pera e a perinha", onde se anunciam os seguintes tópicos: mais um jogo de rugby - o convite do notável - apertões, safanões e hérnias - a clínica - a bela enfermeira - o contributo do Fogerty - as desventuras de um jovem sedutor – a traição do parceiro - a pera e a perinha.
Vamos, então, às memórias do Carlos:
"Quando o Carlos estava no balneário a dar os derradeiros nós nas botas, o treinador voltou-se para ele, comunicando-lhe que iria substituir o pilar esquerdo que não aparecera. O Carlos não era aquilo que se poderia chamar um trambolho; no entanto, também era evidente que não se aplicava a cem por cento, nem nos treinos nem nos jogos. Certo dia aplicou-se e fez um bom jogo. No final, para espanto seu, o treinador do Cdul que estivera a assistir, aproximou-se dele à entrada dos balneários e perguntou-lhe:
-«O jovem não quer vir jogar para o Cdul?» e o Carlos anotou orgulhoso esta pergunta no seu Diário. Ora aí estava um dia a não esquecer. No entanto, com o seu tradicional jeito para deixar passar ao lado as grandes oportunidades, agradeceu mas declinou, pois sentia-se muito bem naquela equipa.
E assim registou para a sua biografia mais um momento em que deixara “o Carlos espontâneo” dar resposta, tendo assim tomado uma decisão da qual se lamentaria até ao fim dos seus dias. Talvez tivesse então pensado que “o Carlos pachorrento,” habituado a deixar correr as coisas para, com o mínimo esforço possível, obter o resultado, nos limites da decência, satisfatório, estaria destinado a prevalecer.
Por isso, o Carlos aplicava-se quanto baste.
E por isso mesmo era um daqueles jogadores que facilmente podiam ser prescindíveis nas suas posições habituais, para serem utilizados em situações de recurso para apagar eventuais fogos. A ideia não lhe agradou particularmente, pois nunca treinara naquela posição, e tinha apenas uma vaga ideia daquilo que lhe era solicitado em momentos cruciais. Mas, acima de tudo, sentia que o seu físico ficava bastante aquém do desejável. E não se enganou, tantas foram as cabeçadas no nariz por se atrasar a encaixar nas mêlées , pois não conseguia aguentar o ímpeto do pilar opositor, e tantas foram as vezes que ficou entalado pelos segundas-linhas que o erguiam todo curvado no ar. Além disso, os calções não eram suficientemente fortes para aguentar os puxões do segunda-linha, tendo este chegado a apertar um sector inesperado, deixando-o imóvel, a uivar, no meio do campo, enquanto o jogo prosseguia noutro local.
No final do jogo, tal como ele, também os calções estavam feitos em farrapos.
Para além de umas nódoas negras, umas dores no pescoço, nos rins, e, obviamente, no nariz, restara um derradeiro resquício, uma hérnia no umbigo. Por causa dela iria parar, alguns meses mais tarde, a uma sala de operações numa clínica na Reboleira. Mas, graças a Deus e à intervenção paterna, fora depositado nas mãos competentes de um cirurgião, para cúmulo da sorte, pai de dois dos seus melhores amigos: a Teresa que sabiamente o retirara de um limbo intelectual, e o iniciara nas nuances do francês quando com elas esbarrara no primeiro ano do liceu; e o Toni, o tal que lhe proporcionara a sua primeira lição de ciência política e que teria uma actuação decisiva neste mesmo evento.
-«Pai, tem de lhe fazer uma cirurgia plástica. Então um rapaz tão novo vai ficar todo liso sem umbigo?» E graças ao Toni, o Carlos viria a ser esteticamente recuperado e normalizado, sem custos acrescidos da operação.
Para além do umbigo, o que, naquela estada na clínica, mais impressionou os seus dezassete anos acabadinhos de fazer foi... as enfermeiras. Estas mais pareciam saídas de um filme, tão belas e sensuais eram, ou assim ele as via. Havia particularmente uma, a que viera dispor alguns medicamentos junto à cama, inclinando-se e proporcionando-lhe uma sublime e inesquecível visão. Imagine-a, apenas, leitor, pois eu, pelas razões de decoro óbvias que têm vindo a dar o tom destas narrações, não a reproduzirei.
Que em breve o viria preparar, dissera. O que significaria “preparar”?
E o Carlos não pôde deixar de imaginar a jovem enfermeira a entrar no quarto para o preparar. E logo, no mais recôndito cantinho da sua mente, começou a insinuar-se o som da voz rouca do mano Fogerty, dos Creedence Clearwater Revival, num lento e ritualisticamente ritmado, Long as I can see the light.
Impõe-se uma breve cesura para esclarecer a leitora mais jovem e menos versada em arqueologia histórica. Quem era, afinal, esta banda (conjunto, como então se dizia), já evocada no episódio do filho do bufo? Recorra-se ao nosso Arquivo:
«Durou pouco mais de dois anos a era dos Creedence. Mas será difícil encontrar paralelo a esse brilhante apogeu. Entre ’69 e ’70, os Creedence Clearwater Revival publicaram quatro álbuns..., editaram sete singles destinados ao maior sucesso; e foram considerados o grupo mais popular dos Estados Unidos, sem que isso atraísse a antipatia da crítica. Para trás tinham ficado quase dez anos de trabalho em conjunto, desde que os irmãos Fogerty, Tom (nascido em ’41) e John (nascido em ’45), começaram a tocar no liceu, em ’59, com dois miúdos da idade de John, Stu Cook e Doug Clifford. Os irmãos repartiam as vozes e as guitarras. O grupo mudou várias vezes de nome até adoptar a designação definitiva. Gravou algumas vezes, tocou muitas e acabou por construir com segurança um som inconfundível, misto bem equilibrado de Rockabilly, Rhythm’n’Blues e tonalidades crioulas do Sul dos Estados Unidos. A saída de Tom Fogerty em Fevereiro de ’71 foi o princípio do fim. ‘Pendulum’, o álbum desse ano, não conseguiu desmentir e ‘Mardi Gras’, em ’72, acabou por confirmar. Foi breve a glória dos Creedence! E, no entanto, brilhou bem alto a sua estrela. Há pouco mais de vinte e cinco anos, os Creedence eram uma presença obrigatória nas festas de sábado. Os ‘slows’ podiam ter muitos intérpretes, podiam correr bem ou mal, podia faltar o par dos nossos sonhos... Só os Creedence, na hora dos ‘shakes’ nos não abandonaram.»
Perceber-se-á, assim, por que razão, naquele instante, os devaneios do Carlos tinham necessariamente de convocar os Creedence para a banda sonora da sua fantasia com aquela bela enfermeira. Imaginava-se ele rodeado dos amigos, amigas, não, pois isso seria motivo de conversa d’homens, explicando detalhadamente todos os instantes do ritual de sedução e encontro íntimo quando ele havia sido preparado. Os colegas, fechados num círculo religiosamente cerrado à sua volta, ouvi-lo-iam atentos, respeitosos, e, como é óbvio, salivantes.
Continuando.
O mano Fogerty cantava “Put a candle in the window,” o primeiro verso (linha, como diziam nas traduções televisivas ou estudantes menos iluminados face aos falsos amigos) de Long as I can see the light, e a jovem enfermeira assegurava o suspense e a privacidade, rodando o trinco num gesto rápido e eficiente, enquanto lhe destinava um malicioso olhar; o quarto ficara entretanto banhado numa ocre e sensual penumbra.
Prosseguia o Fogerty: “ ’cause I feel I’ve got to move.” E ela dirigia-se, lânguida, até junto da janela, passando por uma zona de sombra, ao mesmo tempo que, lenta e metodicamente, desabotoava a camisa, sem nunca, nunca, mesmo nunca, dele tirar os seus maliciosos, convidativos e sedutores olhos; “long as I can see the light,” concluía o Fogerty.
“Pack my bag and let’s get movin’,” e ela cerrava as persianas. Mais penumbra ainda! Com a camisa descaindo já pelo ombro esquerdo, e expondo um soutien lilás, curvava-se sobre dele. Um claro-escuro acentuava-lhe o sorriso à Marilyn Monroe, o Fogerty abanava a cabeça, ejaculando “I won’t be losing my way,” enquanto ela lhe sussurrava ao ouvido:
-«Adoro essa pera e bigode,» suspiro intenso, quase a arfar. «Trans …»
Corria o mês de Junho de 1973, e, com a aproximação da entrada para a universidade, o Carlos decidira deixar crescer esses artefactos. Segundo imaginara, eles ocultariam as suas feições de menino queque, permitindo-lhe uma mais fácil inserção naquele mundo de adultos que, após as férias-grandes, medonhamente se avizinhava.
-«Vem até mim,» retorquia o Carlos com uma voz forte e segura. Na música de fundo, o Fogerty não parava de gritar enfaticamente “Yeah! Yeah! Oh Yeah!”, assim dando a deixa ao Carlos, o qual, de imediato, declarou:
- «Esta é uma tarde que não vais esquec…»
Os seus devaneios foram subitamente interrompidos pela reentrada em cena da enfermeira. A enfermeira imaginada dissolveu-se. A voz do Fogerty silenciou-se. O quarto saiu repentinamente da penumbra e iluminou-se quando, sorrindo, e numa passada rápida e eficiente, uma outra enfermeira, menos bela e bem mais real, se aproximou da cama, ostentando uma bacia de alumínio, um pincel e uma gilette.
O Carlos pousou a biografia do Picasso que estava a ler, virou a cabeça para o lado esquerdo, e, através da janela, vislumbrou o estádio do Estrela da Amadora onde alguns colegas disputavam um torneio de rugby inter-liceus. Que saudades! Estes torneios já ficaram definitivamente para trás! Acabou! Nunca mais entro num, constatou.
A enfermeira interrompeu-lhe o excurso melancólico com uma ordem para desabotoar o casaco e as calças de pijama, e para as puxar um pouco mais para baixo.
Em breve começou a sentir um frio incomodativo no abdómen. O pincel já o ensaboava e a gilette seguia um assustador e perigoso percurso descendente, descrevendo movimentos regulares e fatídicos.
Em vez da esperada e inevitável erecção, o parceiro lá do fundo traía-o, encolhendo-se ainda mais, e remetendo-se para um tímido, discreto e cobarde anonimato. Se algumas ténues intenções houve de insinuar ou expor a sua presença, elas de imediato se desvaneceram quando a enfermeira pegou na melancólica e minúscula cabecinha, afastando-a, eficientemente, para rapar as zonas circundantes.
Por seu turno, o Carlos não conseguiu deixar de erguer a cabeça para observar o decurso dos eventos. A enfermeira sorriu e exclamou:
-«Não se preocupe que eu deixo-lhe uma perinha...»"
quinta-feira, 12 de março de 2015
Por certo, já algumas vezes vos apeteceu dar um piparote
no boné de um/a jovem ou no chapéu de um basbaque de meia-idade que se recusam a descobrir os cucurutos quando entram num restaurante, numa sala de aula, ou... enfim, whatever! Ficai, então, sabendo que tendes um legítimo antecessor no Ishmael de Moby-Dick! Ora vede o início do primeiro capítulo da obra-prima de Herman Melville: "Call me Ishmael. Some years ago- never mind how long precisely- having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen and regulating the circulation. Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people's hats off- then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball. With a philosophical flourish Cato throws himself upon his sword; I quietly take to the ship. There is nothing surprising in this. If they but knew it, almost all men in their degree, some time or other, cherish very nearly the same feelings towards the ocean with me." (itálico meu)
Relato histórico "fidedigno"...
Como o protagonista de Pentâmetros Jâmbicos viveu o 11 de Março:
CAPÍTULO 16
Da banheira à Gulbenkian
os estudantes ao serviço do povo - aventuras na banheira - recuperando escolas - o apelo e o leite-creme - olhos negros
e les jardins de la Fondation
Aproveitando as férias entre o primeiro e o segundo semestres, o círculo de amigos do Carlos dispersou rumo ao Norte. O povo estava com o MFA, e alguns jovens universitários e pré-universitários, de, metonimicamente falando, Paulo Freire em punho, preparavam-se para assentar arraiais nas aldeias deste país, para assim fazer despertar para as alegrias da cultura um povo imerso na ignorância de séculos.
A ideia conhecera a designação de Serviço Cívico. Na sua essência era uma mistura de duas vertentes fundamentais. No plano ideológico, inspirava-se nas tácticas da revolução cultural chinesa e da cubana, segundo as quais constituiria momento – como hoje, à data da leitura destas páginas, se diz - incontornável na construção das virtudes dos jovens burgueses, o seu contacto com a realidade, ou seja, com a tristeza e as misérias do campo... e dos camponeses. No plano prático, correspondia ao habitual desenrascanço lusitano, graças ao qual se atrasaria a entrada de milhares de jovens numa universidade incapaz de dar resposta à nova realidade da massificação.
Assim se fundiam maoismo, guevarismo e “desenrascanço,” numa via original para o socialismo ibérico.
Escusado será dizer que esta ideia não agradara muito ao Carlos. E a razão fundamental era, de facto, veja se isto lhe passa pela cabeça, estimada leitora... , a razão fundamental que o afastava daquela edificante e formadora experiência revolucionária, era... a banheira.
Desde a mais tenra idade que um dos seus maiores prazeres era passar horas de molho. Mais do que higiene, este era, aliás, um autêntico ritual aperfeiçoado ao longo dos anos. (Um ritual de óbvias incidências burguesas, por isso mesmo por ele agora mantido no mais absoluto sigilo.) Em criança, emergia acompanhado por índios e cow-boys, veleiros e barcos piratas. Do Mississippi, às cataratas do Niagara (para simular estas últimas havia o chuveiro), dos mares das caraibas, a náufragos em ilhas perdidas (afinal para que é que serviam as esponjas, cara leitora?), ali ficava a dissolver, até as aventuras acabarem, ou até ser retirado à força pela mãe.
A partir de uma determinada altura, os banhos de imersão tinham deixado de ter tanta graça. As aventuras já se lhe afiguravam algo assim pró estranho, algo que, por um lado gostava de fazer, mas que, por outro, lhe parecia mais coisas de putos. Simultaneamente, começara a sentir certas alterações, em certas partes do corpo, quando se lembrava de certas colegas do liceu.
Mas, depois, os banhos de imersão começaram a voltar a ser interessantes, pois aprendera a libertar-se dessas “alterações” - com prazer, até, imagine-se.
Hoje em dia, os banhos envolviam uma encenação, da qual participava a aparelhagem estereofónica, cujas colunas eram colocadas à porta da casa de banho; uma prancha sobre a banheira, que lhe permitia escrever enquanto estava na sabonária; cigarros e cinzeiro, depositados numa pequena mesa ali mesmo ao lado; um livro e algumas revistas de BD, caso quisessse mudar de leitura; um sumo de laranja; bolachas; e, obviamente, espuma, muita, muita espuma, com água quente periodicamente renovada.
Este ritual realizava-se uma vez por semana, sempre no mesmo dia, e à mesma hora, estando os outros destinados a um frugal duche.
O tempo aí passado, jamais inferior a uma hora e meia, poderia, contudo, estender-se ao longo de várias horas. O seu record, que não chegara, infelizmente, a ser medido pelo relógio, consistira na leitura, integral, e de uma assentada, da Religiosa, de Diderot. Afinal, estava em boa companhia, pois não fora o genial Goethe, lui-même, que confessara ter lido entre as 6h e as 11 e meia, Jacques le fataliste, deste mesmo Diderot, e ter-se deleitado como o Baal da Babilónia perante um festim tão enorme, e ter agradecido a Deus o facto de ter sido capaz de engolir uma tal porção de uma só vez? Também o Carlos agradecera a Deus a imersão contínua nas páginas de Diderot. Prossigamos, porém...
Era fundamentalmente por causa do seu ritual que o Carlos não se conseguia imaginar numa aldeia perdida em Trás-os-Montes, envolto naqueles odores rurais, ensinando velhotes, rodeado de velhotes, a passar dias a fio com velhotes, com velhotes ao serão e ao pequeno-almoço, lavando-se à gato numa selha, e sem as burguesas e queques loirinhas que tanta falta lhe faziam.
Envolveu-se assim num projecto alternativo capaz de conciliar a sua consciência social e a comodidade do lar paterno.
Juntamente com alguns compagnons de route da universidade, com o apoio material dos compagnons de route de uma Câmara Municipal, e com a disponibilidade dos compagnons de route de uma escola primária, participou num projecto de recuperação dessa mesma escola.
O projecto envolvia o tratamento do pavimento do recreio, a pintura dos bancos e também das paredes exteriores. Assim, durante o dia, ficava em paz com a sua consciência social e revolucionária, enquanto que, ao entardecer, podia regressar ao aconchego da vivenda, onde, no seio da família, lhe seria permitido produzir discursos inflamados sobre quão exaltante era a construção do homem novo, da sociedade nova, da cultura nova, und so weiter.
Reconheça-se que podia, mas não fazia; limitava-se a imaginá-los, pois era demasiado reservado para o fazer.
Os compagnons de route, meninos-família tal como ele, calçavam luvas (eles) para não fazer bolhas com os carrinhos de mão, ou pediam emprestados (elas) às empregadas lenços ou outros artefactos que lhes proporcionassem um visual proletário, chique e funcional.
O desajustamento face aos seus modos de vida convencionais podia assumir contornos particularmente cómicos, como quando, um dia, um compagnon mais afoito e talvez menos convencional devido à sua origem pequeno-burguesa (que não de fachada socialista, refira-se), pediu a outro:
-«Traz-me aí um bocado dessa jana,» e apontou para a brita.
O compagnon, desconhecedor das nuances vernaculares da língua-mãe, e habituado apenas a utilizar as suas mãos delicadas no piano de cauda familiar, retorquiu:
-«Que engraçado, não sabia que estas pedrinhas pequeninas se chamavam jana,» e lá partiu, exaltante, com o carrinho de mão disposto a ir buscar a jana necessária à realização da nobre missão nesse amanhecer de um novo dia.
Estavam, certo dia, ao almoço a discutir as pertinentes diferenças quanto à edificação do socialismo nas suas vertentes cubanas, albanesas, soviéticas e chinesas, e sua eventual aplicabilidade nas presentes circunstâncias do processo revolucionário em curso na realidade portuguesa, quando a notícia chegou de rompante:
-«Há uma tentativa de golpe de estado! O Otelo falou ainda agora na rádio a dizer que metia os fascistas no Campo Peq…,» exclamou um compagnon que entrou de rompante no restaurante de bairro que os compagnons da Câmara haviam providenciado aos compagnons estudantes para o almoço gratuito.
O Carlos apressou-se a acabar o leite-creme, bebeu a bica o mais rapidamente possível, e lá dispersou, com os outros compagnons, cada um rumo ao local onde se lhes afigurava mais urgente a sua presença, sempre, sempre, rumo à vitória final.
Tal como era habitual, o Carlos preferiu ir sozinho. Apanhou um comboio para Lisboa e, ao chegar aos Restauradores, considerou dar um pulo até ao Ralis, mas isso estava defintivamente fora de questão, visto ser demasiado longe. Afinal, haveria certamente uma forma menos cansativa de combater a contra-revolução. Porque não o quartel da Região Militar de Lisboa? Há o metro de São Sebastião lá ao pé, bem pensado. Outras hipóteses igualmente quentes...
Estava entretido a considerar as alternativas, quando uma jovem lhe perguntou em francês:
-«Pardon, c’est un coup d’état?»
O Carlos despertou, e deparou com uma jovem dos seus dezoito anos, alta, com uns longos cabelos pretos e uns enormes olhos negros; uns olhos de neles mergulhar e esquecer tudo o mais. Uma boca pequena vermelha; lembrou-se do libreto de Bob Wilson para uma ópera do Phil Glass, que tinha acabado de sair em disco, “If you have never kissed a girl from Paris, you have never kissed a girl at all.” Belos braços, belas mãos... Ah, Senhor meu, que belas mãos!... O que aquelas mãos!.... e retorquiu no seu mais fluente francês:
-«Un coup d’état? Mais non. Pas du tout. C’est une petite agitation sans importance. Tu connais les jardins de la Fondation Gulbenkian?»
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