sexta-feira, 13 de março de 2015

Lembram-se dos Creedence Clearwater Revival?

Pois o (anti)herói dos Pentâmetros Jâmbicos também. Como mostraram interesse pelo modo como ele viveu, de uma forma intensamente revolucionária, o 11 de Março, vejam agora como o John Fogerty entrou na vida dele. Eis o CAPÍTULO 6, intitulado, "O umbigo, a pera e a perinha", onde se anunciam os seguintes tópicos: mais um jogo de rugby - o convite do notável - apertões, safanões e hérnias - a clínica - a bela enfermeira - o contributo do Fogerty - as desventuras de um jovem sedutor – a traição do parceiro - a pera e a perinha. Vamos, então, às memórias do Carlos: "Quando o Carlos estava no balneário a dar os derradeiros nós nas botas, o treinador voltou-se para ele, comunicando-lhe que iria substituir o pilar esquerdo que não aparecera. O Carlos não era aquilo que se poderia chamar um trambolho; no entanto, também era evidente que não se aplicava a cem por cento, nem nos treinos nem nos jogos. Certo dia aplicou-se e fez um bom jogo. No final, para espanto seu, o treinador do Cdul que estivera a assistir, aproximou-se dele à entrada dos balneários e perguntou-lhe: -«O jovem não quer vir jogar para o Cdul?» e o Carlos anotou orgulhoso esta pergunta no seu Diário. Ora aí estava um dia a não esquecer. No entanto, com o seu tradicional jeito para deixar passar ao lado as grandes oportunidades, agradeceu mas declinou, pois sentia-se muito bem naquela equipa. E assim registou para a sua biografia mais um momento em que deixara “o Carlos espontâneo” dar resposta, tendo assim tomado uma decisão da qual se lamentaria até ao fim dos seus dias. Talvez tivesse então pensado que “o Carlos pachorrento,” habituado a deixar correr as coisas para, com o mínimo esforço possível, obter o resultado, nos limites da decência, satisfatório, estaria destinado a prevalecer. Por isso, o Carlos aplicava-se quanto baste. E por isso mesmo era um daqueles jogadores que facilmente podiam ser prescindíveis nas suas posições habituais, para serem utilizados em situações de recurso para apagar eventuais fogos. A ideia não lhe agradou particularmente, pois nunca treinara naquela posição, e tinha apenas uma vaga ideia daquilo que lhe era solicitado em momentos cruciais. Mas, acima de tudo, sentia que o seu físico ficava bastante aquém do desejável. E não se enganou, tantas foram as cabeçadas no nariz por se atrasar a encaixar nas mêlées , pois não conseguia aguentar o ímpeto do pilar opositor, e tantas foram as vezes que ficou entalado pelos segundas-linhas que o erguiam todo curvado no ar. Além disso, os calções não eram suficientemente fortes para aguentar os puxões do segunda-linha, tendo este chegado a apertar um sector inesperado, deixando-o imóvel, a uivar, no meio do campo, enquanto o jogo prosseguia noutro local. No final do jogo, tal como ele, também os calções estavam feitos em farrapos. Para além de umas nódoas negras, umas dores no pescoço, nos rins, e, obviamente, no nariz, restara um derradeiro resquício, uma hérnia no umbigo. Por causa dela iria parar, alguns meses mais tarde, a uma sala de operações numa clínica na Reboleira. Mas, graças a Deus e à intervenção paterna, fora depositado nas mãos competentes de um cirurgião, para cúmulo da sorte, pai de dois dos seus melhores amigos: a Teresa que sabiamente o retirara de um limbo intelectual, e o iniciara nas nuances do francês quando com elas esbarrara no primeiro ano do liceu; e o Toni, o tal que lhe proporcionara a sua primeira lição de ciência política e que teria uma actuação decisiva neste mesmo evento. -«Pai, tem de lhe fazer uma cirurgia plástica. Então um rapaz tão novo vai ficar todo liso sem umbigo?» E graças ao Toni, o Carlos viria a ser esteticamente recuperado e normalizado, sem custos acrescidos da operação. Para além do umbigo, o que, naquela estada na clínica, mais impressionou os seus dezassete anos acabadinhos de fazer foi... as enfermeiras. Estas mais pareciam saídas de um filme, tão belas e sensuais eram, ou assim ele as via. Havia particularmente uma, a que viera dispor alguns medicamentos junto à cama, inclinando-se e proporcionando-lhe uma sublime e inesquecível visão. Imagine-a, apenas, leitor, pois eu, pelas razões de decoro óbvias que têm vindo a dar o tom destas narrações, não a reproduzirei. Que em breve o viria preparar, dissera. O que significaria “preparar”? E o Carlos não pôde deixar de imaginar a jovem enfermeira a entrar no quarto para o preparar. E logo, no mais recôndito cantinho da sua mente, começou a insinuar-se o som da voz rouca do mano Fogerty, dos Creedence Clearwater Revival, num lento e ritualisticamente ritmado, Long as I can see the light. Impõe-se uma breve cesura para esclarecer a leitora mais jovem e menos versada em arqueologia histórica. Quem era, afinal, esta banda (conjunto, como então se dizia), já evocada no episódio do filho do bufo? Recorra-se ao nosso Arquivo: «Durou pouco mais de dois anos a era dos Creedence. Mas será difícil encontrar paralelo a esse brilhante apogeu. Entre ’69 e ’70, os Creedence Clearwater Revival publicaram quatro álbuns..., editaram sete singles destinados ao maior sucesso; e foram considerados o grupo mais popular dos Estados Unidos, sem que isso atraísse a antipatia da crítica. Para trás tinham ficado quase dez anos de trabalho em conjunto, desde que os irmãos Fogerty, Tom (nascido em ’41) e John (nascido em ’45), começaram a tocar no liceu, em ’59, com dois miúdos da idade de John, Stu Cook e Doug Clifford. Os irmãos repartiam as vozes e as guitarras. O grupo mudou várias vezes de nome até adoptar a designação definitiva. Gravou algumas vezes, tocou muitas e acabou por construir com segurança um som inconfundível, misto bem equilibrado de Rockabilly, Rhythm’n’Blues e tonalidades crioulas do Sul dos Estados Unidos. A saída de Tom Fogerty em Fevereiro de ’71 foi o princípio do fim. ‘Pendulum’, o álbum desse ano, não conseguiu desmentir e ‘Mardi Gras’, em ’72, acabou por confirmar. Foi breve a glória dos Creedence! E, no entanto, brilhou bem alto a sua estrela. Há pouco mais de vinte e cinco anos, os Creedence eram uma presença obrigatória nas festas de sábado. Os ‘slows’ podiam ter muitos intérpretes, podiam correr bem ou mal, podia faltar o par dos nossos sonhos... Só os Creedence, na hora dos ‘shakes’ nos não abandonaram.» Perceber-se-á, assim, por que razão, naquele instante, os devaneios do Carlos tinham necessariamente de convocar os Creedence para a banda sonora da sua fantasia com aquela bela enfermeira. Imaginava-se ele rodeado dos amigos, amigas, não, pois isso seria motivo de conversa d’homens, explicando detalhadamente todos os instantes do ritual de sedução e encontro íntimo quando ele havia sido preparado. Os colegas, fechados num círculo religiosamente cerrado à sua volta, ouvi-lo-iam atentos, respeitosos, e, como é óbvio, salivantes. Continuando. O mano Fogerty cantava “Put a candle in the window,” o primeiro verso (linha, como diziam nas traduções televisivas ou estudantes menos iluminados face aos falsos amigos) de Long as I can see the light, e a jovem enfermeira assegurava o suspense e a privacidade, rodando o trinco num gesto rápido e eficiente, enquanto lhe destinava um malicioso olhar; o quarto ficara entretanto banhado numa ocre e sensual penumbra. Prosseguia o Fogerty: “ ’cause I feel I’ve got to move.” E ela dirigia-se, lânguida, até junto da janela, passando por uma zona de sombra, ao mesmo tempo que, lenta e metodicamente, desabotoava a camisa, sem nunca, nunca, mesmo nunca, dele tirar os seus maliciosos, convidativos e sedutores olhos; “long as I can see the light,” concluía o Fogerty. “Pack my bag and let’s get movin’,” e ela cerrava as persianas. Mais penumbra ainda! Com a camisa descaindo já pelo ombro esquerdo, e expondo um soutien lilás, curvava-se sobre dele. Um claro-escuro acentuava-lhe o sorriso à Marilyn Monroe, o Fogerty abanava a cabeça, ejaculando “I won’t be losing my way,” enquanto ela lhe sussurrava ao ouvido: -«Adoro essa pera e bigode,» suspiro intenso, quase a arfar. «Trans …» Corria o mês de Junho de 1973, e, com a aproximação da entrada para a universidade, o Carlos decidira deixar crescer esses artefactos. Segundo imaginara, eles ocultariam as suas feições de menino queque, permitindo-lhe uma mais fácil inserção naquele mundo de adultos que, após as férias-grandes, medonhamente se avizinhava. -«Vem até mim,» retorquia o Carlos com uma voz forte e segura. Na música de fundo, o Fogerty não parava de gritar enfaticamente “Yeah! Yeah! Oh Yeah!”, assim dando a deixa ao Carlos, o qual, de imediato, declarou: - «Esta é uma tarde que não vais esquec…» Os seus devaneios foram subitamente interrompidos pela reentrada em cena da enfermeira. A enfermeira imaginada dissolveu-se. A voz do Fogerty silenciou-se. O quarto saiu repentinamente da penumbra e iluminou-se quando, sorrindo, e numa passada rápida e eficiente, uma outra enfermeira, menos bela e bem mais real, se aproximou da cama, ostentando uma bacia de alumínio, um pincel e uma gilette. O Carlos pousou a biografia do Picasso que estava a ler, virou a cabeça para o lado esquerdo, e, através da janela, vislumbrou o estádio do Estrela da Amadora onde alguns colegas disputavam um torneio de rugby inter-liceus. Que saudades! Estes torneios já ficaram definitivamente para trás! Acabou! Nunca mais entro num, constatou. A enfermeira interrompeu-lhe o excurso melancólico com uma ordem para desabotoar o casaco e as calças de pijama, e para as puxar um pouco mais para baixo. Em breve começou a sentir um frio incomodativo no abdómen. O pincel já o ensaboava e a gilette seguia um assustador e perigoso percurso descendente, descrevendo movimentos regulares e fatídicos. Em vez da esperada e inevitável erecção, o parceiro lá do fundo traía-o, encolhendo-se ainda mais, e remetendo-se para um tímido, discreto e cobarde anonimato. Se algumas ténues intenções houve de insinuar ou expor a sua presença, elas de imediato se desvaneceram quando a enfermeira pegou na melancólica e minúscula cabecinha, afastando-a, eficientemente, para rapar as zonas circundantes. Por seu turno, o Carlos não conseguiu deixar de erguer a cabeça para observar o decurso dos eventos. A enfermeira sorriu e exclamou: -«Não se preocupe que eu deixo-lhe uma perinha...»"

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