quinta-feira, 12 de março de 2015
Relato histórico "fidedigno"...
Como o protagonista de Pentâmetros Jâmbicos viveu o 11 de Março:
CAPÍTULO 16
Da banheira à Gulbenkian
os estudantes ao serviço do povo - aventuras na banheira - recuperando escolas - o apelo e o leite-creme - olhos negros
e les jardins de la Fondation
Aproveitando as férias entre o primeiro e o segundo semestres, o círculo de amigos do Carlos dispersou rumo ao Norte. O povo estava com o MFA, e alguns jovens universitários e pré-universitários, de, metonimicamente falando, Paulo Freire em punho, preparavam-se para assentar arraiais nas aldeias deste país, para assim fazer despertar para as alegrias da cultura um povo imerso na ignorância de séculos.
A ideia conhecera a designação de Serviço Cívico. Na sua essência era uma mistura de duas vertentes fundamentais. No plano ideológico, inspirava-se nas tácticas da revolução cultural chinesa e da cubana, segundo as quais constituiria momento – como hoje, à data da leitura destas páginas, se diz - incontornável na construção das virtudes dos jovens burgueses, o seu contacto com a realidade, ou seja, com a tristeza e as misérias do campo... e dos camponeses. No plano prático, correspondia ao habitual desenrascanço lusitano, graças ao qual se atrasaria a entrada de milhares de jovens numa universidade incapaz de dar resposta à nova realidade da massificação.
Assim se fundiam maoismo, guevarismo e “desenrascanço,” numa via original para o socialismo ibérico.
Escusado será dizer que esta ideia não agradara muito ao Carlos. E a razão fundamental era, de facto, veja se isto lhe passa pela cabeça, estimada leitora... , a razão fundamental que o afastava daquela edificante e formadora experiência revolucionária, era... a banheira.
Desde a mais tenra idade que um dos seus maiores prazeres era passar horas de molho. Mais do que higiene, este era, aliás, um autêntico ritual aperfeiçoado ao longo dos anos. (Um ritual de óbvias incidências burguesas, por isso mesmo por ele agora mantido no mais absoluto sigilo.) Em criança, emergia acompanhado por índios e cow-boys, veleiros e barcos piratas. Do Mississippi, às cataratas do Niagara (para simular estas últimas havia o chuveiro), dos mares das caraibas, a náufragos em ilhas perdidas (afinal para que é que serviam as esponjas, cara leitora?), ali ficava a dissolver, até as aventuras acabarem, ou até ser retirado à força pela mãe.
A partir de uma determinada altura, os banhos de imersão tinham deixado de ter tanta graça. As aventuras já se lhe afiguravam algo assim pró estranho, algo que, por um lado gostava de fazer, mas que, por outro, lhe parecia mais coisas de putos. Simultaneamente, começara a sentir certas alterações, em certas partes do corpo, quando se lembrava de certas colegas do liceu.
Mas, depois, os banhos de imersão começaram a voltar a ser interessantes, pois aprendera a libertar-se dessas “alterações” - com prazer, até, imagine-se.
Hoje em dia, os banhos envolviam uma encenação, da qual participava a aparelhagem estereofónica, cujas colunas eram colocadas à porta da casa de banho; uma prancha sobre a banheira, que lhe permitia escrever enquanto estava na sabonária; cigarros e cinzeiro, depositados numa pequena mesa ali mesmo ao lado; um livro e algumas revistas de BD, caso quisessse mudar de leitura; um sumo de laranja; bolachas; e, obviamente, espuma, muita, muita espuma, com água quente periodicamente renovada.
Este ritual realizava-se uma vez por semana, sempre no mesmo dia, e à mesma hora, estando os outros destinados a um frugal duche.
O tempo aí passado, jamais inferior a uma hora e meia, poderia, contudo, estender-se ao longo de várias horas. O seu record, que não chegara, infelizmente, a ser medido pelo relógio, consistira na leitura, integral, e de uma assentada, da Religiosa, de Diderot. Afinal, estava em boa companhia, pois não fora o genial Goethe, lui-même, que confessara ter lido entre as 6h e as 11 e meia, Jacques le fataliste, deste mesmo Diderot, e ter-se deleitado como o Baal da Babilónia perante um festim tão enorme, e ter agradecido a Deus o facto de ter sido capaz de engolir uma tal porção de uma só vez? Também o Carlos agradecera a Deus a imersão contínua nas páginas de Diderot. Prossigamos, porém...
Era fundamentalmente por causa do seu ritual que o Carlos não se conseguia imaginar numa aldeia perdida em Trás-os-Montes, envolto naqueles odores rurais, ensinando velhotes, rodeado de velhotes, a passar dias a fio com velhotes, com velhotes ao serão e ao pequeno-almoço, lavando-se à gato numa selha, e sem as burguesas e queques loirinhas que tanta falta lhe faziam.
Envolveu-se assim num projecto alternativo capaz de conciliar a sua consciência social e a comodidade do lar paterno.
Juntamente com alguns compagnons de route da universidade, com o apoio material dos compagnons de route de uma Câmara Municipal, e com a disponibilidade dos compagnons de route de uma escola primária, participou num projecto de recuperação dessa mesma escola.
O projecto envolvia o tratamento do pavimento do recreio, a pintura dos bancos e também das paredes exteriores. Assim, durante o dia, ficava em paz com a sua consciência social e revolucionária, enquanto que, ao entardecer, podia regressar ao aconchego da vivenda, onde, no seio da família, lhe seria permitido produzir discursos inflamados sobre quão exaltante era a construção do homem novo, da sociedade nova, da cultura nova, und so weiter.
Reconheça-se que podia, mas não fazia; limitava-se a imaginá-los, pois era demasiado reservado para o fazer.
Os compagnons de route, meninos-família tal como ele, calçavam luvas (eles) para não fazer bolhas com os carrinhos de mão, ou pediam emprestados (elas) às empregadas lenços ou outros artefactos que lhes proporcionassem um visual proletário, chique e funcional.
O desajustamento face aos seus modos de vida convencionais podia assumir contornos particularmente cómicos, como quando, um dia, um compagnon mais afoito e talvez menos convencional devido à sua origem pequeno-burguesa (que não de fachada socialista, refira-se), pediu a outro:
-«Traz-me aí um bocado dessa jana,» e apontou para a brita.
O compagnon, desconhecedor das nuances vernaculares da língua-mãe, e habituado apenas a utilizar as suas mãos delicadas no piano de cauda familiar, retorquiu:
-«Que engraçado, não sabia que estas pedrinhas pequeninas se chamavam jana,» e lá partiu, exaltante, com o carrinho de mão disposto a ir buscar a jana necessária à realização da nobre missão nesse amanhecer de um novo dia.
Estavam, certo dia, ao almoço a discutir as pertinentes diferenças quanto à edificação do socialismo nas suas vertentes cubanas, albanesas, soviéticas e chinesas, e sua eventual aplicabilidade nas presentes circunstâncias do processo revolucionário em curso na realidade portuguesa, quando a notícia chegou de rompante:
-«Há uma tentativa de golpe de estado! O Otelo falou ainda agora na rádio a dizer que metia os fascistas no Campo Peq…,» exclamou um compagnon que entrou de rompante no restaurante de bairro que os compagnons da Câmara haviam providenciado aos compagnons estudantes para o almoço gratuito.
O Carlos apressou-se a acabar o leite-creme, bebeu a bica o mais rapidamente possível, e lá dispersou, com os outros compagnons, cada um rumo ao local onde se lhes afigurava mais urgente a sua presença, sempre, sempre, rumo à vitória final.
Tal como era habitual, o Carlos preferiu ir sozinho. Apanhou um comboio para Lisboa e, ao chegar aos Restauradores, considerou dar um pulo até ao Ralis, mas isso estava defintivamente fora de questão, visto ser demasiado longe. Afinal, haveria certamente uma forma menos cansativa de combater a contra-revolução. Porque não o quartel da Região Militar de Lisboa? Há o metro de São Sebastião lá ao pé, bem pensado. Outras hipóteses igualmente quentes...
Estava entretido a considerar as alternativas, quando uma jovem lhe perguntou em francês:
-«Pardon, c’est un coup d’état?»
O Carlos despertou, e deparou com uma jovem dos seus dezoito anos, alta, com uns longos cabelos pretos e uns enormes olhos negros; uns olhos de neles mergulhar e esquecer tudo o mais. Uma boca pequena vermelha; lembrou-se do libreto de Bob Wilson para uma ópera do Phil Glass, que tinha acabado de sair em disco, “If you have never kissed a girl from Paris, you have never kissed a girl at all.” Belos braços, belas mãos... Ah, Senhor meu, que belas mãos!... O que aquelas mãos!.... e retorquiu no seu mais fluente francês:
-«Un coup d’état? Mais non. Pas du tout. C’est une petite agitation sans importance. Tu connais les jardins de la Fondation Gulbenkian?»
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Delicioso escrito!
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