quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Os livros de Kurtz
Deixo-vos um excerto da minha intervenção, hoje, na mesa-redonda, na FLUL, sobre Coppola e Conrad, com os meus amigos Fernando Guerreiro e Mário Jorge Torres:
"A leitura que vos proponho é impulsionada por um brevíssimo fragmento, um brevíssimo plano, de Apocalypse Now. ...
Que fragmento é, então, este? Apenas à segunda ou à terceira vez que vi o filme, apercebi-me da existência de alguns livros sobre uma banqueta naquilo que, eufemisticamente, poderíamos chamar aposentos do coronel Kurtz/Marlon Brando; nos aposentos onde ele iria exclamar perto do fim: “The horror. The horror.” O plano era demasiado rápido, pelo que não consegui vislumbrar que livros eram esses. ...
São eles um estudo antropológico, The Golden Bough, de Sir James Frazer, um ensaio sobre a lenda da demanda do Santo do Graal, From Ritual to Romance, de Jessie Weston, e a Bíblia. Ora, como sabem todos os presentes que tenham estudado Literatura Inglesa, os dois primeiros livros são mencionados por Eliot como presença determinante no seu poema The Waste Land; quanto à Bíblia, a sua influência neste poema é por demais evidente.
A presença casual daqueles livros não pode, assim, ser entendida enquanto mero adorno estético ou mera coincidência, mas antes como constituindo um discurso subliminar, um diálogo subliminar, como referi, de profundidade de Coppola com Conrad, via Eliot. Com efeito, se, por um lado, Heart of Darkness fornece a tal estrutura narrativa e alguns contornos simbólicos a partir dos quais muito do filme de Coppola se estrutura, por outro, tanto a poesia de Eliot – e aqui The Waste Land, poema maior do século XX, é nuclear - como os textos que esta convoca, definem uma atmosfera determinante para o desenrolar da acção. Portanto, focalizamos um paradigma concreto da história; não o da sequência de eventos, mas sim o da atmosfera. ...
No entanto, para levar a cabo a sua empresa, Willard necessitará de conhecer a coerência daquele espaço arcaico, de utilizar as suas armas primitivas (a faca), de se adaptar ao ritual (as pinturas no rosto), de agir no momento certo: atente-se na consonância entre o assasssinato de Kurtz e o ritual da morte do animal. Comprova-se, então, quão relevante era o livro de Jessie Weston, From Ritual to Romance. Nesta continuidade antropológica, que é também um regresso, reside a chave para a solução, e não num qualquer discurso do poder político/militar/civilizacional que suscitou a viagem de Willard. Aquela que seria, à partida, uma viagem funcional, dá lugar a uma viagem iniciática ao encontro dos fantasmas que Freud abordou no seu livro antes mencionado e que Eliot diagnosticou como sintoma de um declínio. Enfim, o enviado da ordem, do discurso civilizacional, necessita de descer às origens do mito. Comprova-se assim ser relevante a presença do livro de Sir James Frazer, The Golden Bough, entre as escolhas de Kurtz. Só depois Willard se retira, transportando consigo os livros, os papéis escritos por Kurtz, a assinatura do seu saber. Neste momento evidencia-se a centralidade da escrita em Apocalypse Now: afinal Kurtz persistirá através da palavra, da sua palavra. Por isso, ao matá-lo, Willard eleva-se , torna-se um homem superior e conhecedor da alteridade. Assim se justifica que, no regresso, ouvimos o seu monólogo interior, a sua voz: “Eles não o sabiam , mas eu já não era um deles …” A atmosfera ritualística e a simbiose da natureza com o homem, experienciadas no templo que a selva é, transformaram Willard. Como ele dissera, no início, quando começara a contar a sua história, após aquela experiência deixara de ser o mesmo. E isso devia-se tanto ao facto de ter conhecido Kurtz, como à viagem que realizara. Idêntica razão é apresentada por Marlow, o narrador de Heart of Darkness, no qual Coppola se inspirou para desenvolver Willard.
Assim, a par da viagem pelo rio - metáfora também de uma viagem ao encontro do inconsciente, dos seus fantasmas (algo que tanto transforma quem a guerra viveu), emerge a viagem através da palavra: o relatório sobre Kurtz, a escrita de Kurtz, a sua própria grafia, o graffitti que saúda Willard ao alcançar o espaço de Kurtz, os livros sobre a mesa, e a leitura do poema.
Um derradeiro aspecto: a leitura, a voz. Ambas participam desse passado mítico que percorre a narrativa. Ainda no início da viagem, Willard ouve um registo, uma gravação da voz de Kurtz e fica impressionado com ela. Ao chegar ao fim da viagem, o fotógrafo relembra-lhe o poder sedutor da voz de Kurtz. Quando este lê “The Hollow Men”, Willard comprova esse poder e essa síntese entre o texto, a escrita e a sua dimensão performativa e física, a leitura e a voz. Algo de fisicamente essencial, actuando para além do texto, define esta identidade poderosa. É ainda a interacção profunda entre significante e significado que, com Kurtz, emerge num processo de síntese radical.
Expressões éticas e estéticas, também, coexistem afinal no subtexto de Apocalypse Now.
Em tempos de ritmos estéticos frenéticos, pretendi apenas chamar a vossa atenção para a importância que podem ter os pequenos detalhes, os mais banais planos ou fragmentos, e também para a subtileza hermenêutica que pode estar presente nesses diálogos subliminares entre diferentes formas de expressão artística."
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