segunda-feira, 14 de novembro de 2011
John Martin exposto em Londres
fez-me recordar uma referência de passagem num texto de João Miguel Fernandes Jorge que li há muitos anos. Mencionei Martin, um artista algo desconhecido entre nós, frequentemente ligado a Turner. Referi-o a propósito da tradução de Paradise Lost, num ensaio que escrevi para a Revista Babilónia há algum tempo.
Deixo-vos o início desse ensaio, com os votos de uma boa semana:
Em tempos de reiterada balcanização ou mesmo rasura de um discurso religioso cristão, perguntar-se-á que espaço persiste para um longo poema (10564 versos) dedicado à narração dos momentos iniciais do Génesis, a criação de Adão e Eva, a sua expulsão do Éden, en passant pela transformação do anjo caído, Lúcifer, em Satanás, e da sua acção bem sucedida junto do par primordial? Acresce o desconhecimento generalizado quer do discurso e da ética protestantes, e puritanos, em particular, quer dos debates teológicos que constituem o cenário histórico no qual o poema se inscreve e do qual participa: diferentemente de Dante, em Milton o solo teológico é instável e ecoa nos temas contemporâeos em debate.
Johnson dizia que se lia Paradise Lost como “dever”. Ora, apesar das diferenças históricas, talvez esse “dever pedagógico” possa hoje ser encontrado naquilo que essa leitura permite em termos de reactivação de um determinado tipo de reflexão (teológica, cultural, textual), de preenchimento de lacunas, relevantes para o entendimento do mundo actual (pense-se no exemplo americano), da descoberta de uma das figuras mais polémicas da poesia inglesa, do desvendar de um diálogo estético entre poema e artes visuais.
Comecemos por este último aspecto. Quem em 2006 visitou o Museo de Bellas Artes de Bilbao pôde contemplar uma impressionante exposição de gravuras do romântico inglês John Martin (1789-1854). Célebre pelas suas obras de cariz clássico e bíblico, seria, porém, através das gravuras (1824-5) para uma edição de Paradise Lost que Martin afirmaria a sua singularidade na cena artística inglesa das primeiras décadas do século XIX, sobrepondo-se até a Turner, e disputando com Blake a primazia na representação de Milton. Em detrimento de uma focalização explícita das personagens de Paraíso Perdido e dos eventuais conflitos interiores por elas vividos, Martin optou por realizar uma leitura dramática dos espaços miltonianos nos quais investiu um sublime romântico. A intensidade dramática dos planos panorâmicos, confinados ao reduzido espaço da gravura, foi por ele acentuada através da exploração monocromática; aí se indicia o dualismo nuclear de Paradise Lost (veja-se o contraste visual entre luz e obscuridade: “Pandemonium” vs “Rios da bem-aventurança”).
De tal modo a opção estética de Martin foi bem sucedida, que a percepção visual desse mesmo sublime ficaria, desde então, ligada a esta sua obra, determinando figurações ulteriores, como as de Thomas Lupton, Francis Danby e William West. O sublime é representado de uma forma mais intensa em “Satanás observa a ascensão aos Céus” através das linhas que diagonalmente afirmam dois espaços e um percurso de luz. Apesar desse excesso de espaço, também na contemplação, na postura, na expressão do rosto, na intensidade de luz com que o corpo de Satanás é revelado, se indicia uma solidão, uma absorção, uma intimidade, uma tensão interior, que de algum modo enviam para o confessionalismo do famoso solilóquio dos versos 32 a 113 do Livro IV.
Não se pense, porém que a dimensão visual de Paradise Lost foi uma descoberta de Martin; veja-se, por exemplo, a sua reiterada inserção no âmbito de uma estética barroca (posteriormente confirmada pela convocação de Milton por parte de Eisenstein). De acordo com a leitura disfórica de Camille Paglia (Sexual Personae), Milton não se liberta nem de Spenser nem dos constrangimentos da sensibilidade barroca; o que a conduz à sua asserção radical de que Paradise Lost é “um Laocoön barroco”.
Segundo Wylie Sypher (Four Stages of Renaissance Style), Paradise Lost constitui uma expressão literária superior desta estética que só encontraria análogo na arquitectura de Bernini. Com efeito, os cenários do épico miltoniano participam ostensivamente do discurso barroco. No seu seio inscrevem-se as figuras recorrentemente colocadas em acção e eventual oposição: o conflito entre Satanás e Cristo no Céu; o diálogo entre Rafael e Adão no Jardim do Paraíso; o passeio de Adão e Eva; o encontro de Satanás com o Arcanjo ; o exílio de Adão e Eva. No plano estritamente visual constata-se que estas figuras podem, ainda, ser reveladas numa escala aumentada no seio de uma multidão, como Satanás no Concílio onde pre-domina sobre os outros seres infernais (citei, acima, a figuração do “Pandemonium”), ou quando confronta o Pecado e a Morte: a massa surge em tensão e equilíbrio perante a massa. Recorde-se a concepção visionária suprema do Inferno em “A ponte sobre o Caos”, de Martin, que, na sua génese, ecoa os versos de Coleridge em Kubla Khan; neste caso acentua-se uma tensão entre a densidade material e o carácter etéreo do espaço. Destaca-se, porém, a exuberância sensorial na convocação dos corpos (Adão e Eva) e do espaço (IV. 689-743); à semelhança da personagem por si delineada - Adão, Milton cede perante a intensidade da imagem física de Eva.
Afinal, o barroco parece ensaiar o alcance do espírito através dos sentidos. Trata-se de um irónico paradoxo, já que a ética de moderação puritana, subscrita por Milton, era aversa à veneração de imagens (numa resposta ao concílio de Trento). Contudo, em Paradise Lost venera-se a mulher e o homem na sua condição humana; venera-se o corpo.
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