terça-feira, 15 de novembro de 2011
Porque este livro está há muito esgotado
deixo hoje aqui o poema que o abria. O livro tem por título Cidades de Refúgio, e foi publicado em 1991. Na capa está uma reprodução de Baptism in Kansas, um quadro de John Stewart Curry. A sua escolha foi do Fernando Guerreiro. Na abertura do livro havia duas epígrafes: uma era, apenas, Nostalgia, Andrei Tarkovski [os meus alunos da altura recordarão esta idiossincrasia], outro era este excerto de Os pescadores, de Raúl Brandão: "Tocam o sino para a novena. Ouço um momento os passos dos vivos e dos mortos... Em todas as aldeias que conheço..., o que idealiza o monte bruto e espesso, a vida rude e o sítio agreste, é sempre a igreja, a torre e a cruz."
Quanto ao poema, este tem por título "Miragens".
I fall, more and more,
Into my own silences.
Theodore Roethke
Os sessenta iam ainda
no início, sem memória
de guerras, revoluções
ou de fluxos migratórios.
A terra aguardava em
silêncio a chegada
das betoneiras, dos patos
bravos. Outras migrações...
Um dia de manhã,
em Maio, saímos a
explorar lugares ocultos,
pequenas grutas e antas,
mais tardes ameaçadas
pelas aves de arribação.
Os tais patos... bravos, claro.
Olhámos o vale. O
meu pai segurava-me a
mão. À nossa frente o
sítio onde se ergueria,
dez anos depois, a casa.
Casa feita, pêga morte.
Um ditado apenas e
para mim um medo a pairar,
dia após dia, como
se alguma oculta verdade
ali se insinuasse.
Como se o povo tivesse
razão. Enfim, zombarias
do destino. Ou do acaso?
Lá para o fim da manhã,
descobri junto à anta
um minúsculo esqueleto
de plástico. Curiosa
ironia vinda de outras
brincadeiras, porventura
mais inocentes, das crianças
dos bairros de lata. O
esqueleto ainda o vi,
há alguns meses, no sótão,
entre molduras partidas,
velhas cartas sem destino
ou memória, e as
sempre inevitáveis teias
de aranha. Um pequeno
sinal como outros, uma
pedra um nome um sinal só
desses dias; um vestígio
da rua das oliveiras,
no tempo em que somente
elas e o casal de
velhos loucos ali viviam.
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