sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma retórica do consenso?


Este foi o título de um texto meu que saiu na passada quarta-feira no Diário de Notícias.
Aqui fica:

"Alguns aspectos formais fazem com que as eleições americanas sejam motivo de alguma perplexidade para nós, portugueses, habituados que estamos a processos particularmente lineares a este nível. Essa singularidade passa, desde logo, por um sistema eleitoral que os fundadores setecentistas consideraram dever combinar vários equilíbrios processuais que vão de metodologias indirectas a outras de democracia directa, com muitas subtilezas de permeio.
No entanto, mais do que esse “estranho” sistema, estou certo de que aquilo que, para nós, constitui maior motivo de perplexidade, ainda que não facilmente identificada, será, exactamente, a importância que assumem determinados traços indentitários em todo esse processo.
Veja-se, por exemplo, esse ritual nuclear na vida dos americanos – não só dos indivíduos mas também do colectivo, da nação – que é o Dia de Acção de Graças.
Contrariamente ao que transcrevia uma tradução - errada - do discurso do Presidente Obama num canal televisivo português, os americanos não “valorizam” esse dia. Com efeito, o que o Presidente disse foi que eles “davam graças”. De facto, o dia de Acção de Graças remonta aos primórdios coloniais, quando, após a ajuda determinante dos nativos, os membros de uma comunidade da Nova Inglaterra, deram graças a Deus, assinalando um ano de sobrevivência naquele espaço hostil.
Esta é, portanto, desde a sua origem, há precisamente quatro séculos, uma cerimónia em que esse núcleo fundamental da sociedade que é a família, se reúne para dar graças por aquilo que lhe foi concedido ao longo do ano. Indivíduo, família e comunidade interagem num ritual que, sendo obviamente secular, possui uma dimensão religiosa.
Devido a esse traço transversal do Dia de Acção de Graças na sociedade americana, os discursos políticos então proferidos são relevantes para percepcionar sintomas, não tanto de agendas partidárias concretas, mas da forma como essas sensibilidades interpretam as expectativas de um povo no âmbito de uma identidade comum.
Um pensador desta realidade, Sacvan Bercovitch, falou um dia de uma “retórica do consenso” que constituiria um solo partilhado pelos americanos, independentemente das suas sensibilidades políticas: a América como terra prometida; um povo eleito, predestinado; o espírito de missão – na defesa da democracia liberal, por exemplo; a responsabilidade individual; enfim, o sonho americano; ou seja, muitos dos traços que Max Weber, hoje contestado, identificou como a ética protestante e o espírito do capitalismo. Mas, acima de tudo, aquilo que Martin Luther King, na celebração de uma comunidade alargada, sintetizou no famoso discurso “Eu tenho um sonho.”
Democratas ou republicanos, mais ou menos radicais, partilham esse solo comum, o qual interpretam de acordo com ênfases específicas. Mais do que em ideologias, como as temos concebido na Europa, é na forma como essas ênfases se propõem agir sobre esse solo comum que se deve percepcionar o discurso político americano.
Por isso, não será de estranhar, por exemplo, que tanto o Presidente Obama como o Governador do Texas, Rick Perry – candidato a candidato republicano, tenham optado por discursos que dão relevo à acção de “normalização democrática” da América no mundo: o Presidente agradecendo às tropas americanas em missão noutros países, Perry recorrendo ao testemunho de um veterano do Afeganistão.
Há, obviamente, outros traços, mas creio que estes serão reveladores daquilo que poderá constituir um discurso político futuro, independentemente de quem seja a sua fonte; isto é, as ênfases serão distintas, o diálogo com as outras nações mais ou menos evidente, ou privilegiando eixos diferentes, mas persistirá sempre a forte crença de que a América deve ser esse “farol” da democracia e da liberdade. Afinal, “in God we trust.” "

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