terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Perguntava o Carlos Chaves





se depois de Salinger restariam ou não nomes maiores na prosa norte-americana contemporânea?

Admirador confesso que sou de Philip Roth, não tenho dúvidas que neste prosador continuamos a ter um olhar singularmente arguto e, não raro, demolidor da realidade americana.

No topo da pirâmide, portanto. Seguir-se-ão outros como Auster, por exemplo.

Desta hierarquia peço perdão aos admiradores de Auster, nomeadamente à austeriana autora de bicho carpinteiro (http://clarices-bichocarpinteiro.blogspot.com/)


Deixo-vos este excerto de um texto que publiquei no JL há uns tempos atrás (início de 2008, creio) a propósito de Património - Uma história verdadeira:

'Todos os anos, no início de Dezembro, o Times Literary Supplement convida algumas dezenas de escritores, na sua maioria de língua inglesa, a indicarem quais os livros que, na sua opinião, marcaram o ano que finda. Em Dezembro último, um dos intervenientes começou a sua resposta, com algum humor, dizendo: “Lamento mas não foi o Exit Ghost, de Philip Roth.” De facto, o romance mais recente do escritor de New Jersey foi uma das obras mais citadas neste inquérito, a par do brilhante ensaio do, entretanto falecido, Professor Nuttall, Shakespeare – The Thinker.

Com Exit Ghost (2007), Roth parece encerrar o ciclo conhecido como Zuckerman novels. The Ghost Writer (1979) inicia a trilogia constituída por Zuckerman Unbound (1981) e The Anatomy Lesson (1983), a qual culminaria num texto crepuscular (novela?) The Prague Orgy (1985). O protagonista, tal como ele um escritor judeu, é um alterego óbvio de Roth. Refira-se num elíptico parênteses que esta representação de um alterego, percorrendo momentos da História contemporânea, lembra, embora com as devidas diferenças, a personagem Rabbit Angstrom, da Rabbit Trilogy, de John Updike – Rabbit Run (1960), Rabbit Redux (1971) e Rabbit is Rich (1981).

Após uma breve ausência, Zuckerman regressou ao universo literário do autor, embora não como protagonista, naquela que ficaria conhecida como Trilogia Americana, e que seria constituída por American Pastoral (1997), I Married a Communist (1998) e The Human Stain (2000 [adaptado ao cinema sob realização de Robert Benton, à semelhança de outras obras suas como Portnoy's Complaint, de 1969, realizado por Ernest Lehman - a mais recente adaptação American Pastoral, deverá estrear no próximo ano, sob realização de Philip Noyce]).

Ao longo da sua obra, desde o já distante texto inicial Goodbye, Columbus and Five Short Stories (1959) que Roth tem evocado o microcosmo judaico norte-americano, num incessante diálogo com a cena histórica destas últimas décadas, penetrando bem fundo naquilo que de mais idiossincraticamente americano ela revela. O seu romance contrafactual The Plot Against America (2004), ao ficcionalizar o impacto de uma eventual vitória, nas eleições presidenciais de 1940, de um simpatizante nazi, o piloto Charles Lindbergh, é um dos momentos altos na desmontagem das fobias que percorrem tanto aquele subbconsciente colectivo como, uma vez mais, as do microcosmo judaico.


Foi, todavia, numa narrativa de cariz assumidamente autobiográfico, Património – Uma história verdadeira, que este microcosmo conheceu uma das mais intensas desmontagens por parte do autor. Curiosamente, o sítio na internet de The Philip Roth Society inclui esta obra no âmbito da ficção, o que levanta questões óbvias acerca dos limites entre realidade e ficção na obra de Roth. Tal começa, aliás, pela própria designação da personagem principal (embora em Património, devido à forte presença da figura parental, seja questionável a sua centralidade), Philip Roth. Com efeito, se podemos perspectivar um ciclo em torno da personagem Nathan Zuckerman - as tais, Zuckerman novels - também é legítimo conceber outro em torno da figura explícita do próprio autor. Este tipo de narrativas assumidamente autobiográficas surgem em finais dos anos oitenta, com The Facts (1988), seguindo-se-lhe Deception (1990), Património (1991) e Operation Shylock (1993). À excepção de Deception, a dimensão autobiográfica é explicitada nos respectivos subtítulos: autobiografia, memória, confissão.

New Jersey, estado do qual Roth é originário, e a cidade de Newark, em particular, são o espaço priviliegiado destas deambulações autobiográficas. Em Património a catografia de Newark assume uma função particularmente relevante, pois é ali que radica a memória familiar amiúde convocada pelo narrador: “... a tigela era ... a única coisa tangínvel que alguém se dera ao cuidado de guardar dos anos de imigração em Newark.” (24). Nos passeios a pé com o pai pela cidade, esta memória vai emergindo do passado. Se, por um lado, a velhice, a decadência física e a doença do pai, constituem o fio condutor a partir do qual a narrativa é estruturada, por outro lado, as histórias que ele recupera de um tempo irremediavelmente distante, permitem estabelecer uma ponte, não só entre dois tempos, mas, acima de tudo, entre duas pessoas: o pai e o filho.

Património é a história de uma aproximação entre dois homens; da aproximação que, nas circunstâncias particularmente severas da doença, permite o conhecimento e a compreensão mútuos, e, por fim, a resolução edipiana. Mestre da arte da escrita, Roth sabe explorar o pathos, inerente a esta relação, sem cair no patético. Vejam-se as suas confissões quando, no hospital, se prepara para dar autorização para que a máquina que mantém o pai artificialmente vivo, seja desligada: “... afaguei-lhe a testa, ..., e disse-lhe toda a espécie de coisas que ele já não podia tomar consciência. Felizmente, não lhe disse nada, naquela manhã, que ele já não soubesse.” (210)

Ora, esta aproximação passou, como referi, pela recuperação de uma cartografia perdida de Newark, e pela partilha das memórias que ela encerra. Nos passeios pelas ruas, e nomeadamente quando vai levar o pai ao médico, teve de “o conduzir através da pobre, da paupérrima velha Newark. Conhece todas as esquinas de todas as ruas. Sabe onde foram destruídos edifícios, lembra-se dos edifícios que lá existiram. ‘Não podes esquecer nada’: eis a inscrição da sua cota de armas. Estar vivo, para ele, é ser feito de memória. ... ‘Vês aqueles degraus? Em 1917 estive sentado naquela entrada com Al Borak...’” (113) Quando, no final, Roth prescinde de todos os bens materiais da herança paterna (afinal, ele é um escritor rico!), e guarda a velha tijela que o pai usava para se barbear, ele está a preservar o mais relevante dessa memória, e, consequentemente, o legado paterno.

De igual modo, a cartografia de Elizabeth, uma cidade a sul do estado de New Jersey, evoca o entrecruzar da memória pessoal e da colectiva: “Costumava haver apenas judeus, nesta área de Elizabeth, quando a mãe e eu nos mudámos de Newark. Não quando ela cresceu aqui, evidentemente. Então, eram irlandeses. Todos católicos. Deixou de ser assim. Espanhóis, coreanos, chineses, negros... O rosto da América muda todos os dias.” (77) A memória passa, assim, pelo registo desta dinâmica social e étnica em constante mutação; este é o melting pot, o mosaico de uma América que não cessa de se transformar, e dos quais a família Roth, também ela uma família de emigrantes, participa. Mas esse preservar da memória deve ser igualmente entendido no âmbito de uma tradição judaica: “Não devemos esquecer nada.” (214) Esta sentença com a qual o livro termina, encerra o imperativo ético da memória enquanto construção tanto pessoal como colectiva.

Por outro lado, ao acompanhar a decadência física do pai, e ao construir um momento significativo da sua autobiografia, o autor permite-nos desvendar tanto o que a proxima como o que a distingue do seu universo ficcional: “Nos meus romances sobre Zuckerman dera a Nathan Zuckerman um pai que não suportava a maneira como o filho descrevia as personagens judaicas, enquanto a mim o destino me dera um pai veementemente leal e dedicado que nunca encontrara nos meus livros nada que criticasse – o que o enfurecia eram os judeus que atacavam os meus livros e os que os consideravam anti-semitas e auto-abominadores.” (169)'

Amanhã continuo!

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