terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Afinidades e meditações
Numa conferência da Asia and Europe Foundation, no Convento da Arrábida, há uns anos atrás, João Bénard da Costa afirmou que não poderia ser amigo de alguém que não gostasse dos filmes de Oliveira.
Afinal, a estética não é um mero apêndice da nossa identidade, mas algo que radica bem fundo dentro de nós.
Hoje deixo-vos um comentário seu aos insondáveis caminhos que percorremos.
Encontrareis este texto, na íntegra, em Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, livro publicado há dias pela Assírio & Alvim:
'Na Primavera de 1938, o ano do "Anschluss", Odon von Horvath, que já em 1933 fora forçado a abandonar a Alemanha, trocou Viena por Paris. Gide, que, por influência de Béguin, lera algumas das peças e romances dele, prometeu-lhe um vantajoso contrato com a Gallimard. A 1 de Junho, jantou com uns amigos. Estava particularmente bem disposto. Depois, decidiu ver a "Branca de Neve e os Sete Anões", em estreia europeia numa sala dos Champs-Elysées. Durante a projecção, desencadeou-se uma típica borrasca estival. Coisa de trovoada. Apesar disso, quando o filme acabou, Von Horvath resolveu atravessar a avenida. Tudo estava deserto, o hotel ficava perto. Um grande relâmpago fendeu ao meio um castanheiro. Um dos ramos atingiu-lhe a parte posterior do crânio. Morreu logo. Tinha 36 anos.
No prefácio à primeira edição francesa de "Jugend ohne Gott" ("Juventude sem Deus"), último livro de Horvath, editado pela Plon em 1939, o tradutor e introdutor (Armand Pierhal) resume três atitudes típicas perante esta morte absurda (como se alguma houvesse que o não fosse). O fatalista invoca o destino: "Estava escrito." O materialista diria que, entre quatro milhões de parisienses, cada um deles tinha uma hipótese em quatro milhões de ser a vítima. Calhou a Von Horvath, podia ter calhado a qualquer M. Dupont ou a qualquer Mme Dupont. Teorias do acaso, cálculos das probabilidades. O crente pensaria nos insondáveis desígnios de Deus, que não cabe ao homem tentar perscrutar. Um dia, quando deixarmos de ver como num espelho, para ver "Face a Face", perceberemos.
Mas, no mesmo "Jugend ohne Gott", Odon von Horvath - ele próprio um crente -, num capítulo chamado "À procura dos ideais da humanidade", dá-nos ou dá-se outra resposta. O narrador, um professor perseguido por uma comunidade maléfica, identificável com um grupo nazi, vai falar com um padre num dos momentos mais tensos e trágicos da sua vida (um aluno assassinado). O padre cita-lhe Santo Inácio ("Entro, com qualquer homem, pela porta de casa dele, para, quando sairmos, o poder reconduzir para a minha"). Cita-lhe Anaximandro ("Todas as coisas regressarão de onde vieram, quando cumprirem o destino delas. Pois todos devem expiar a culpa da sua existência, segundo a ordem do tempo"). O professor acha-o "diabolicamente inteligente", mas não se convence com as razões dele para explicar os males do mundo. Até que se chega à passagem que, depois, domina o livro todo.
Diz o padre: "Deus vai por todos os caminhos." Objecta o professor: "Como é que Deus pode passar pelo caminho em que vivem estas crianças miseráveis, vê-las e não as ajudar?" "Ele calou-se. Bebeu do seu vinho a lentos golos meditativos. Depois, olhou-me de novo: 'Deus é o que há de mais terrível no mundo.'" O professor ficou tão estupefacto que nem acreditou no que tinha ouvido. Daí para diante, repetiu-o muitas vezes, como se se quisesse convencer a si próprio.
Os acontecimentos são-nos incompreensíveis porque queremos julgá-los imediatamente, antes de lhes conhecermos todos os prolongamentos e consequências. Mas, para Deus, não há o "imediatamente", não há a árvore que de súbito cai numa noite de trovoada. Há o tempo todo, todo o passado, todo o presente, todo o futuro. E é isso que é terrível. "O mais terrível no mundo."'
Bom dia!
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