quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Ainda Roth


Considera Austeriana que o tratamento do espaço em Roth é muito austeriano. Ora, aí está um tópico interessante a ponderar!
Para já deixo-vos a conclusão do texto sobre Roth para o JL:

'No seu romance [à data da escrita deste texto] mais recente Exit Ghost, Roth prossegue o ciclo das Zuckerman novels e revela um Nathan Zuckerman envelhecido (está na casa dos setenta, tal como o autor, nascido em 1933) e debilitado fisicamente (uma operação à prostata deixara-o com limitações a vários níveis) no seu regresso a Nova Iorque após um exílio, aparentemente, voluntário numa remota propriedade na Nova Inglaterra.

Disse que Roth revela um Zuckerman; mais correcto seria dizer que é Zuckerman que se revela a si próprio, pois esta, à semelhança de Património, é uma narrativa na primeira pessoa, na qual o protagonista domina os factos e, acima de tudo, os pontos de vista que deles pretende transmitir, demonstrando uma grande capacidade de autorevelação acerca dos seus medos e fantasmas (e também dos fantasmas americanos). Há, aliás, um clássico (Rip Van Winkle, de Washington Irving [1783-1859]), cuja presença espectral nesta narrativa é explicitamente enunciada por Zuckerman. Ao percorrer as ruas de Nova Iorque, e ao voltar a olhar para lugares que outrora fizeram parte do seu dia-a-dia e que hoje estão transfiguradas, irreconhecíveis, o protagonista comenta: “Não me poderia sentir mais longe de mim se tivesse contornado a esquina da Sexta Avenida com a 45 Oeste com a arma enferrujada de Rip na mão e com as suas velhas roupas, sob o olhar de uma multidão de curiosos...”

Rip Van Winkle é a história de um homem que, antes da Independência, vai à caça, adormece e quando desperta, constata que as roupas envelheceram e a sua arma está enferrujada. Ao regressar à sua terra não a reconhece; tudo mudara. Esta é, na verdade, uma parábola sobre a transformação da sociedade americana, e de um Novo Mundo que emergiu das ruínas de um outro, o colonial. Ora, esta parábola simboliza a mudança que Zuckerman observa: com efeito, a Nova Iorque que ele abandonou anos atrás, mudou radicalmente com o 11 de Setembro. Este é, portanto, um novo mundo, embora não com a dimensão eufórica que caracterizou a Independência setecentista.

Este é um mundo de medos (o jovem casal, com quem irá trocar periodicamente de casa, enuncia esse medo de viver em Nova Iorque, devido à eventualidade de outros ataques terroristas) e de fantasmas (é como um espectro do passado que reconhece a autora sedutora e hoje decadente, transfigurada, moribunda e algo senil Amy Belette), e Zuckerman sente-se tão desajustado face a ele como Rip Van Winkle se sentira; a única diferença é que o desajustamento deste último era visível, enquanto que o do protagonista, não, é interior e decorre a sua incapacidade de se adaptar a uma nova realidade.

Significativamente uma das suas primeiras incursões neste regresso a Nova Iorque dá-se na Strand, famosa pelo livros usados; uma livraria que parece não ter sido afectada pela passagem do tempo, onde a memória do espaço em si se confunde com a dos livros aí acessíveis. Trata-se, portanto, de uma espécie de regresso ao passado. Aí encontrará os livros do seu mentor, E. I. Lonoff (nele projectar-se-á a figura parental do escritor Bernard Malamud), em casa de quem conhecera, em 1956, a jovem de vinte e sete anos que dava pelo nome de Amy Belette. Enquanto Património exibe a relação de um homem chamado Philip Roth com a figura parental, Exit Ghost revela essa relação parental entre o escritor e a figura forte (diria Bloom) que o antecedeu, e cuja memória ele pretende preservar de olhares pouco éticos.

Para além do medo, um dos aspectos desta nova realidade com que Zukerman se depara, é do voyeurismo. Partindo do sensacionalismo mediático, invadiu a esfera académica. Através do jovem casal de intelectuais Zukerman será abordado por um jovem cheio de iniciativa (“empreendedor” dir-se-ia, hoje em dia, da sua virtude) que pretende escrever uma biografia e (qual projecção da velha culpa calvinista que não raro percorre a sociedade americana), inquisitorialmente, desvendar um eventual esqueleto no armário do já falecido Lonoff (Roth abordara já este tópico em The Human Stain, num eco de Imitation of Life, de Douglas Sirk). É com estes fantasmas que Zukerman, qual fantasma num mundo onde não se reconhece, se vai debater até à sua saída de cena no final da narrativa. Será a última?'

O tempo demonstrou quão retórica era esta questão.

Boas leituras!

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