quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Ainda a propósito da amizade
e das boas companhias, aqui vos deixo um belíssimo texto (e food for thought) da autoria de José Tolentino Mendonça (que começa, aliás, por citar outro velho amigo, T. S. Eliot):
«Mas quem é que caminha a teu lado?». Quando me reencontro com esta pergunta, trazida por um verso de T.S. Eliot, penso quase sempre nos amigos. Um amigo, por definição, é alguém que caminha a nosso lado, mesmo se separado por milhares de quilómetros ou por dezenas de anos. O longe e a distância são completamente relativizados pela prática da amizade. De igual maneira o silêncio e a palavra. Um amigo reúne estas condições que parecem paradoxais: ele é ao mesmo tempo a pessoa a quem podemos contar tudo e é aquela junto de quem podemos estar longamente em silêncio, sem sentir por isso qualquer constrangimento. Tenho amigos dos dois tipos. Com alguns, sei que a nossa amizade se cimenta na capacidade de fazer circular o relato da vida, a partilha das pequenas histórias, a nomeação verbal do lume mais íntimo que nos alumia. Com outros, percebo que a amizade é fundamentalmente uma grande disponibilidade para a escuta, como se aquilo que dizemos fosse sempre apenas a ponta visível de um maravilhoso mundo interior e escondido, que não serão as palavras a expressar.
O modo como uma grande amizade começa é misterioso. Podemos descrevê-lo como um movimento de empatia que se efectiva, um laço de afeição ou de estima que se estreita, mas não sabemos explicar como é que ele se desencadeia. Irrompe em silêncio a amizade. Na maior parte das vezes quando reconhecemos alguém como amigo, isso quer dizer que já nos ligava um património de amizade, que nos dias anteriores, nos meses anteriores, como escreveu Maurice Blanchot, «éramos amigos e não sabíamos».
Aquilo de que uma amizade vive também dá que pensar. É impressionante constatar como ela acende em nós gratas marcas tão profundas com uma desconcertante simplicidade de meios: um encontro dos olhares (mas que sentimos como uma saudação trocada entre as nossas almas), uma qualidade de escuta, o compartilhar mais breve ou demorado de uma mesa ou de uma conversa, um compromisso comum num projecto, uma qualquer ingénua alegria…A linguagem da amizade é discreta e ténue. E ao mesmo tempo é inesquecível e impressiva.
Há aquele ditado que diz: «viver sem amigos é morrer sem testemunhas». A diferença entre os conhecidos e os amigos é a mesma que distingue um ocasional espectador daquele que está habilitado a testemunhar. Este último disponibiliza-se realmente a ser presença. Se tivesse de resumir a sua natureza, apetecia-me dizer: um amigo é alguém que foi capaz de olhar, mesmo que por um segundo apenas, o fundo da nossa alma e transporta depois consigo esse segredo, da forma mais gratuita e inocente. E nós retribuímos o mesmo. Em dois ou três poemas de Adília Lopes sublinhei, há tempos, isso. No idioma da poesia de Adília, a amizade era descrita assim: «busquei o amor sem ironia». A amizade, mesmo quando nos fartamos de rir e de alegrar com os outros, é esse transparente amor.
Tenho por uma grande verdade aquilo que escreveu o filósofo Paul Ricoeur: «para ser amigo de si próprio é necessário ter já vivido uma relação de amizade com alguém».
E que viva Clarence!
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Fabuloso, este texto!
ResponderEliminarÉ, não é? O Tolentino tem andado a escrever para o DN da Madeira, e depois esses textos urgem no site da Pastoral da Cultura.
ResponderEliminarBjs