quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Excerto de um texto meu sobre Naipaul publicado no JL

Será nesse espaço entre – nesse in betweeness – , lugar e instante de porosidade que, como sustenta Desmond, habitamos e que somos, que será possível reconhecer as inúmeras convocações existenciais, estéticas e prosódicas predominantes em obras de Naipaul que se impõem na nossa memória. Destaco duas, às quais amiúde regresso pelo profundo impacto que em mim tiveram: A House for Mr. Biwas e The Enigma of Arrival. Quem tenta confinar A House for Mr. Biwas a uma representação marcada pelo preconceito, e assim a balcanizar sob o argumento de uma qualquer superioridade moral, ignora quão devedor este romance é de uma tradição pícara que Naipaul conheceu através de Lazarillo de Tormes, obra que, ele próprio, traduziu; de uma escrita pícara com a qual, nas suas modalidades inglesas, terá contactado através da sua educação numa instituição que, longe do centro do império, havia sido inspirada no aparato formal da escola pública. É nesse espaço de tensão entre comédia e tragédia que a narrativa de transformação de Mr. Biwas ocorre; de transformação do escravo em homem livre, de um homem que tenta construir a sua identidade num lugar que lhe é estranho. Como se pode ignorar a reificação do espaço através da dimensão visual que subjaz a A House for Mr. Biswas, em que, como um crítico assinalou, a cada parágrafo corresponde um quadro, em que cada frase envia para ou designa um signo visual - retratos, imagens, estatuetas? A viagem adquire uma dimensão peculiar em The Enigma of Arrival, obra também ela situada num lugar entre, visto haver sido inscrito na categoria romance, embora nela não se enquadrando plenamente. Não seria mais rigoroso entendê-la como uma autobiografia poética? Não ecoará na estética de The Enigma of Arrival, Richard Jefferies, escritor oitocentista admirado por Naipaul, e que, segundo este, usava a ficção para escrever ensaios breves? Uma vez mais quem pretender reduzir esta obra a um olhar idílico do ethos rural figurado na casa de Wiltshire, numa eventual reminiscência de Thomas Hardy, ignora as virtualidades especulativas da emoção culta - como lhe chamou um dia Jorge de Sena - devedora da écfrase. Na verdade, à semelhança do quadro de De Chirico que empresta o título à obra e que tão difícil é de descrever, pois, segundo Naipaul, nele nada é estritamente real, também aqui tudo persiste num solo de porosidade. E se as figuras lembram o clássico, assim os meus pensamentos vão para o mundo clássico (Naipaul). Este é, portanto, o mundo da ficção, o mundo que ele conhecera através da escrita; talvez houvesse um elemento de sonho – mas quando se chega ao cais, barco algum se insinua, o que, reconheça-se, é assustador. E assim se esclarece que o espaço de acolhimento – o mundo rural eventualmente idílico -, afinal, não o é de uma forma eufórica. Mais um argumento da escola do ressentimento que se desvanece. Curiosamente, é também através deste herdeiro de Joseph Conrad e Henry James, dois outros escritores que, não sendo ingleses, assumiram Inglaterra como sua, que a Grande Tradição presiste.

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