quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Uma leitura do "Cântico dos Cânticos"

Elas são inúmeras, divergentes, contraditórias (saudavelmente contraditórias, diria), estendendo-se ao longo dos tempos. Talvez hoje nos confinemos a uma vertente apenas, tomando-a como a leitura; mas é na pluralidade dos olhares que se faz a riqueza desta tradição em que nos movemos, uma tradição que, afinal, deve a sua riqueza à coexistência da pluralidade. Para melhor conhecermos, então, este prisma de olhares, recuemos ao século XII e às palavras de São Bernardo, monge cisterciense. Proponho-lhe que o leia, tomando como cenário um outro olhar, o de Marc Chagall: «Beija-me com ósculos da tua boca» (Cant 1,2). Quem fala assim? A esposa [do Cântico dos cânticos]. E quem é esta esposa? É a alma associada a Deus. E a quem fala ela? Ao seu Deus. [...] Não seria possível encontrar palavras mais doces para exprimir a ternura recíproca de Deus e da alma que estas do Esposo e da esposa. Tudo lhes é comum, não possuem nada próprio nem à parte. Única é a sua herança, única a sua mesa, única a sua casa, única até a carne que em conjunto constituem (Gn 2, 24). [...] Se a palavra «amar» convém especialmente e em primeiro lugar aos esposos, é compreensível que se dê o nome de esposa à alma que ama a Deus. A prova de que ela ama é que pede a Deus um beijo. Não deseja a liberdade, nem uma recompensa, nem uma herança, nem mesmo um ensinamento, mas um beijo, ao jeito de uma esposa casta, elevada por um santo amor e incapaz de esconder a chama que lhe arde dentro. [...] Sim, o seu amor é casto, pois ela deseja apenas Aquele que ama, e não alguma coisa que Lhe pertença. O seu amor é santo, porque ela não ama com um desejo pesado da carne, mas com pureza do espírito. O seu amor é ardente, pois, inebriada por este mesmo amor, esquece a grandeza de quem ama. Não é Ele, com efeito, que com um olhar faz tremer a Terra? (Sl 103,32). E é a este que ela pede um beijo? Não estará embriagada? Sim, está embriagada de amor pelo seu Deus. [...] Que força, a do amor! Que confiança e que liberdade no Espírito! Não há maneira mais clara de manifestar que «o amor perfeito afasta o temor» (1Jo 4, 18).

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