quinta-feira, 1 de março de 2018

Ruy Belo: Aventura espiritual intensa

Importa tomar Ruy Belo (27.2.1933-8.8.1978) como um dos escritores espirituais do séc. XX português. E sem pretender contornar as veementes e sucessivas afirmações do poeta, que nos orientariam num sentido diferente. Por exemplo, em 1970, no prefácio a “Homem de palavra(s)”: «O clima do livro já não é o da fé, aliás perdida» ou, em 1972, na reedição de “Aquele grande rio Eufrates”: «todo este livro foi escrito num clima a que não só já não tenho acesso hoje em dia como espero não o voltar a ter». Só que o novo “clima” em que o poeta se move, no começo da década de setenta, é de resistência àquilo que o catolicismo, na sua opinião, simbolizava enquanto servidor do ordenamento político e cultural vigente. Talvez fosse agora tempo de começar a olhar esta poética naquilo que ela também é: aventura espiritual intensa como poucas, colóquio interior, despojado mesmo quando a voz tinha a energia sagrada das falas ininterruptas, ponte estendida no território de chamas que é essa quase circularidade entre presença e silêncio, entre dúvida e crença, dialética que aproxima a aridez trágica da passagem do tempo desse «no sé qué», de que João da Cruz falava e que nos romances de Bernanos e Graham Green, que Ruy Belo leu, recebia o nome de Graça. Um dos seus poemas, “Nós os vencidos do catolicismo”, deu o nome a uma geração que, tendo-se distinguido por um grande empenhamento eclesial, se afastou em desilusão e rutura. Vale a pena, à distância de alguns anos, tornar a esse poema surpreendente: «Nós os vencidos do catolicismo que não sabemos já donde a luz mana haurimos o perdido misticismo nos acordes dos carmina burana Nós que perdemos na luta da fé não é que no mais fundo não creiamos mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos Já nenhum garizim nos chega agora depois de ouvir como a samaritana que em espírito e verdade é que se adora Deixem-me ouvir os carmina burana Nesta vida é que nós acreditamos e no homem que dizem que criaste se temos o que temos o jogamos ”Meu deus meu deus porque me abandonaste?”» O primeiro verso retoma a formulação, também ela geracional, «vencidos da vida», numa equivalência que sublinha a importância da experiência aqui em jogo. Experiência descrita como derrota e perda. De um saber («não sabemos já»); de uma condição («o perdido misticismo», «perdemos na luta da fé»); de uma estruturante certeza («não lutamos já firmes», «duvidamos»). Como se diz, a crença não deixou de existir, mas recuou para o território íntimo, «mais fundo», pois «nenhum garizim nos chega agora». Pelo poema irrompe, inesperado, o capítulo quarto do Evangelho segundo João. Aí Jesus, na ausência dos discípulos, dialoga com uma mulher samaritana, transgredindo o código judeu de conduta. À samaritana, Jesus anuncia que não é no Templo de Jerusalém ou no Santuário samaritano do Monte Garizim que se deve adorar a Deus: «os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade». Ora, esta irrupção evangélica, é tanto mais espantosa quanto ela conta a construção da fé, em Jesus, não a sua perda, por parte de um sujeito social e religiosamente incorreto (a mulher samaritana). Outra referência são os «carmina burana», a monumental coleção de líricas e cantos medievais, de origem vária, que deve o seu nome à Abadia Beneditina de Beuron (Alemanha). Este repositório responde ao gosto do “vagare”, próprio dos estudantes, laicos ou eclesiásticos, dos “studia” conventuais. É uma mistura fascinante de cristianismo e paganismo, de espírito e matéria, de finura e vulgaridade, de filosofia e puro passional. Lado a lado, convivem o canto gregoriano, a melodia trovadoresca e a sátira popular. Alvo do burlesco, porém, não é a experiência espiritual autêntica, mas os fingimentos, as falsas contrições, a mera representação da devoção ou da virtude. Os “carmina burana” não são, afinal, figuras de substituição do «perdido misticismo», mas de purificação pelo abalo que o seu riso traz a uma religiosidade institucional, socialmente instalada, donde a aventura interior está ausente. Estamos, de novo, à procura do espírito e da verdade. E a parte final do poema, guarda-nos a maior surpresa. O poema que até aqui parecia apenas uma declaração, revela ter um destinatário. O mesmo do Salmo 22, que Jesus grita na hora da cruz: o próprio Deus, aqui invocado repetidamente, «meu deus, meu deus». E aludindo ao «abandono» de Deus, o poeta faz a composição transfigurar-se, pois o que parecia ser uma perda do sujeito é agora atribuído a esse escândalo teológico, por excelência, que é o silêncio de Deus. José Tolentino Mendonça [à semelhança de textos anteriores, partilho do site da Pastoral da Cultura]

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