sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Hoje, as palavras de José Tolentino Mendonça
"Bem-aventurados os que no coração se reconhecem pobres
pois é deles tudo o que há-de vir
Bem-aventurados os que existem mansamente
pois a terra os escolherá para herdeiros
Bem-aventurados os que rompem o muro das implacáveis certezas
pois são outros os caminhos da consolação
Bem aventurados os que sentem, pela justiça, fome e sede verdadeiras:
não ficarão por saciar
Bem-aventurados os que estendem largos os gestos de misericórdia
pois a misericórdia os iluminará
Bem-aventurados os que se afadigam pela paz:
isso torna os mortais filhos de Deus
Bem-aventurados os que não turvam seu olhar puro
pois no confuso do mundo verão passar o próprio Deus"
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Hoje, a Palavra nas palavras de Ruy Belo
"Maran atha
Eu sou senhor aquele que sente
frios ainda os pés nas estações
com que nos chega o tempo sucessivamente
Nada me fica na alma nem a tarde de praia
quando o vento tinha
uma linguagem nas barracas
Não há coração em mim para a folha que morre
e ando a matar uma por uma até
alegrias simples como a certas horas
reparar que temos um corpo
determinamos uma sombra
e ocupamos um espaço que nos leva
a estar aqui agora nesta rua
e não noutra parte
Homem levantado e caído
setenta vezes sete vezes por dia
que morte me quer para além
de deixar cair os braços?
Eu que te vi e revi descer solene
como um raio sobre o meu destino
que te dei um lugar mais definitivo
em minha boca do que a folha de outono
teve na calçada
quando de vez vieres que será de mim?
E tenho a ousadia de morder-te
à superfície do dia. Tu bem sabes
que catedral de esperança te reservo
Talvez já amanhã nos não saudemos sob as árvores
e venhas sobre as nuvens
sobre o coração sobre a morte sobre mim"
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Se não fosse a iluminista Razão por onde andaríamos nós!?...
Retiro esta notícia do site da Pastoral da Cultura. É um mimo:
'Segundo o Prof. Roger Wotton, um conceituado biólogo da University College London, em Londres, se os anjos corresponderem às representações, é impossível que possam voar.
“Basta um olhar rápido pelas provas nas artes representativas para concluir que os anjos e querubins não podem levantar voo nem voar. Mesmo que planassem, precisariam de estar expostos a ventos muito fortes para poder descolar, ventos de tal maneira fortes que seriam arrastados e não precisariam das asas para nada”.
...
A distorção do tórax necessária para que as fadas possam voar com asas de borboleta seria terrivelmente desconfortável. Certamente não voam”, conclui.'
Estamos esclarecidos, portanto!
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
A propósito da importância da fidelidade
esclarece D.Manuel Clemente numa entrevista. Eis a pergunta e a resposta do bispo do Porto:
"Qual foi o seu primeiro grande desafio depois de ter sido ordenado padre, a primeira “montanha” que lhe apareceu pela frente?
O desafio talvez tenha sido, foi certamente, o da fidelidade. Ou seja, tudo o que me aconteceu na adolescência, na juventude e no princípio da idade adulta, ainda era muito em tons de ideal e de idealismo, mas depois há a vida de todos os dias. E o maior desafio durante todos esses anos 80, que é a minha primeira década sacerdotal, foi o desafio da fidelidade: acreditar que a vida se joga muito mais na fidelidade às pequenas coisas de todos os dias do que propriamente em estar a idealizar que seria melhor doutra maneira. Em qualquer aplicação existencial é uma prova dura, mas absolutamente imprescindível."
De D. Manuel Clemente quero hoje destacar Portugal e os Portugueses, um livro que, na minha opinião, constitui uma das reflexões mais lúcidas sobre aquilo que podemos designar identidade portuguesa; um livro que deveria figurar a par com o clássico de António José Saraiva nas bibliografias das cadeiras de cultura portuguesa.
Aí escreve D. Manuel:
«É habitual insistir-se na nossa infinita capacidade de adaptação, seja aonde for. Pergunto-me se não se trata antes do contrário. Se não devíamos falar até da impossibilidade de deixarmos de ser quem somos, tal a densidade interior que acumulámos. Não temos de nos adaptar por aí além, porque já temos dentro e acumulados os infinitos aléns que nos formaram. Aqui, neste recanto ocidental do continente, sedimentaram-se, milénio após milénio, os variados povos que, do Norte de África ou do Leste da Europa, tiveram forçosamente de parar numa praia que só no século XV se transformou em cais de embarque. Aqui chegaram outros, que depois vieram e continuam a vir das mais diversas procedências. Tanta gente em tão pouco espaço só pode espraiar-se numa geografia universal. Assim foi e assim é.»
[excerto do primeiro capítulo]
Poderá haver quem diga ser este um livro pouco volumoso. Ora, deveria ser uma evidência que o volume, a extensão, não implica qualidade, e que um perfil intelectual (universitário, por exemplo) não se avalia pelo número de textos publicados, mas sim pelo impacto que um texto tem na sua área científica (será esta uma piada subliminar...?). Por isso, creio que Portugal e os Portugueses deve merecer um lugar nas bibliografias que acima referi; acima de tudo, este é um livro a ser lido por quem, para além da universidade, pretenda conhecer-se e conhecer-nos melhor.
Boas leituras!
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
A propósito de Cézanne
Discursos vários, no domínio da epistemologia e, em particular, do influente jornalismo cultural, evocam a modernidade que vivemos através de recorrências semânticas como mudança de paradigma, continuidade ou ruptura, ansiedade ou euforia, utopia ou distopia. Com maior ou menor intensidade, o seu eco repercute em diferentes esferas do social, nomeadamente na educação e no ensino. O ensino a distância revela-se um actante privilegiado desses ecos, pelo que será pertinente analisar a legitimidade desse léxico. Para uma breve reflexão em torno deste tópico, começo por vos convidar a um olhar sobre Cerejas e Pêssegos, um quadro pintado por Cézanne entre 1883 e 1887.
Todo aquele que se debruça minimamente sobre a cultura e o universo artístico do século que findou, é confrontado com a inevitável presença de Cézanne, e deste quadro em particular. De tal modo que, a par de Ceci n’ est pas une pipe, de Matisse, ele funciona como um ícone desses tempos. Justifica-se esta designação – ícone - através de um, entre aspas, “erro” mimético. Onde reside esse “erro”? Este quadro ignora, mais correcto seria dizer, sabota, a noção de perspectiva, a ilusão de profundidade, e de consequente tridimensionalidade, herdadas da Renascença. “N[est]a natureza-morta ... , o prato de cerejas está de tal modo inclinado para a frente que se tem a impressão de a estar a ver de cima. Passa-se a mesma coisa com a parte traseira da mesa, ao passo que a parte da frente está pintada de tal maneira que se julga estar à mesma altura. O prato de pêssegos e o pichel estão igualmente representados numa perspectiva mais chã.” (Becks-Malorny, 2001: 55) Porquê, perguntar-se-á. Porque Cézanne não reproduz a realidade, ele compõe uma realidade. Para Cézanne, “Não são os objectos próprios que devem atrair a atenção, mas a disposição das colorações e das formas segundo a concepção do pintor. Mediante esta maneira de ver subjectiva,..., Cézanne cria uma nova realidade.” (Ibidem, 56) Com efeito, é toda uma tradição de representação, radicada na Antiguidade clássica e prolongada na história da cultura ocidental, que Auerbach analisa no seu clássico Mimesis, aquela que, neste icone, é superada.
Registe-se outro aspecto, a banalidade, que designaria “democrática,” do referente. Para criar “um novo plano da realidade,” Cézanne “não tem necessidade nem de objectos artísticos nem de decorações sumptuosas: as coisas mais simples são aquelas que melhor o ajudam a concretizar as suas concepções sobre a profundidade, a consistência e o peso numa estrutura plana.” (Ibidem) Ora, sensivelmente na mesma altura, do outro lado do oceano, numa pequena cidade da Nova Inglaterra, um músico americano, Charles Ives, antecipava as rupturas que Schonberg iria formalizar no início do século XX. Não é, todavia, isso que interessa para esta reflexão. Interessa, sim, aquilo que ele realiza no segundo movimento da peça Três Lugares na Nova Inglaterra, intitulado “Putnam’s Camp, Redding, Connecticut.” Trata-se de uma fantasia composta a partir de uma reminiscência da infância de Ives. Durante uma celebração do 4 de Julho, este observou duas bandas que se encontravam em extremidades opostas do parque. Cada uma seguia o seu percurso em direcção ao local onde Ives se encontrava, criando, no momento em que ambas se cruzaram, uma impressionante dissonância. O compositor retoma este episódio na peça, representando o intimismo do jovem através de instrumentos de sopro, e daquilo que, convencionalmente, se considera o registo da música erudita. Gradualmente, o tecido musical erudito é invadido por um registo popular; num determinado instante, quando as bandas se cruzam na mente do sujeito, dá-se uma fusão entre registos distintos, o erudito e o popular; aspecto fundamental: cria-se, então, uma nova dimensão estética. Coloca-se, assim, a questão: como definir este novo registo artístico, já que ele não se enquadra nos cânones, na convenção?
Também sensivelmente nesta altura, Oscar Wilde escreve um ensaio, que devia, aliás, ser objecto de leitura compulsiva nos cursos de comunicação social, intitulado “A Alma do Homem sob o Socialismo.” Neste ensaio, Wilde detém-se sobre aquele que considera ser não já “o quarto poder”, mas, como ele próprio afirma, “o único poder:” o jornalismo. A acção e o predomínio do jornalismo na configuração de um ethos, são aqui identificados através da interacção específica que o jornalismo estabelece com um novo conceito: a “opinião pública.” De imediato se entende que este novo espaço e discurso de poder decorre de uma, também ela, nova realidade social, a massificação emergente e participando do paradigma que as revoluções setecentistas, em particular a americana, configuraram. Refiro-me, naturalmente, ao liberalismo, na sua acepção radical; ao liberalismo que delineou o quadro institucional que hoje norteia o ethos ocidental, e que outros horizontes, ainda arcaicos, a ele alheios, com dificuldade mimetizam.
Por outro lado, o discurso massivamente veiculado pelo jornalismo assenta a sua acção numa ênfase no presente. Recorde-se que o conceito operatório, a nível do tempo, resultante das mencionadas revoluções setecentistas, é o presente, o qual deve também ser entendido no âmbito de um declínio, o das metanarrativas, e de uma ausência, a do centro único irradiador da norma, como, por exemplo, o das denominações religiosas, das igrejas. Este aspecto é particularmente relevante pelo facto de estas veicularem, igualmente, uma memória e uma tradição, as quais, por seu turno, conferiam coesão social e justificavam uma identidade; eram, portanto, factores de equilíbrio. A tendencial ausência do passado significa, deste modo, uma diluição da memória e uma crise identitária; assim se gera a ansiedade, a angústia, o receio face ao futuro. Estudos sobre a imprensa, a biografia, a diarística e o registo epistolar britânicos oitocentistas, registam a sistemática reiteração de um estado de espírito marcado pela ansiedade face à mudança.
O paradigma, então, emergente (liberal, democrático e moderno) exigiu, portanto, aquilo que Piaget designou como reequilibração, necessariamente colectiva. Este paradigma, nascendo, como referi, no século XVIII, percorre todo o século XIX, e consolida-se já em finais do século XX, com a diluição dos discursos políticos, na acepção foucauldiana, que pretenderam regressar a um passado em que um centro único, configurava, irradiava e preservava, com notável e eficiente zelo, o poder. Ora, a reequilibração passará, entre outros aspectos, pela reformulação da noção de poder e pela diversificação dos centros irradiadores. Daí também que o século XIX, onde o paradigma emergente se expande, seja uma época marcada por um sentimento de crise, ao qual acrescem sentimentos antitéticos, de ansiedade e motivação, de angústia e esperança, de perplexidade e de confiança. Curiosamente, uma obra colectiva lançada há uns dias atrás na Reitoria da Universidade de Lisboa, intitula-se Crises em Portugal nos Séculos XIX e XX. No ensaio “A Noção de Crise e a sua Aplicação em História Moderna,” Maria do Rosário Themudo Barata recorda que a “noção de crise é aplicada ao século XVII por Paul Hazard ..., n[um ensaio] ... que ele intitulou ‘Crise da Consciência Europeia, ...’ e em que abordou as grandes transformações psicológicas; os racionais contra as crenças tradicionais; as tentativas de reconstrução para um modelo novo de humanidade; os valores imaginativos e sensíveis.” (Barata, 2002: 16) Trata-se, portanto, de um processo vasto e complexo de reequilibração face aos requisitos de uma nova realidade.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Pasolini, através do seu Evangelho de Mateus,
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
"Hamatreya", um poema de Emerson
"BULKELEY, Hunt, Willard, Hosmer, Meriam, Flint,
Possessed the land which rendered to their toil
Hay, corn, roots, hemp, flax, apples, wool and wood.
Each of these landlords walked amidst his farm,
Saying,''T is mine, my children's and my name's.
How sweet the west wind sounds in my own trees!
How graceful climb those shadows on my hill!
I fancy these pure waters and the flags
Know me, as does my dog: we sympathize;
And, I affirm, my actions smack of the soil.'
Where are these men? Asleep beneath their grounds:
And strangers, fond as they, their furrows plough.
Earth laughs in flowers, to see her boastful boys
Earth-proud, proud of the earth which is not theirs;
Who steer the plough, but cannot steer their feet
Clear of the grave. They added ridge to valley, brook to pond,
And sighed for all that bounded their domain;
'This suits me for a pasture; that's my park;
We must have clay, lime, gravel, granite-ledge,
And misty lowland, where to go for peat.
The land is well,--lies fairly to the south.
'T is good, when you have crossed the sea and back,
To find the sitfast acres where you left them.
' Ah! the hot owner sees not Death, who adds
Him to his land, a lump of mould the more.
Hear what the Earth says:--"
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Porque após muitas batalhas,
sinuosos sorrisos e não poucas palavras enganosas, este é um dia especial para mim e para os meus amigos, deixo-vos a mais bela das imagens (Cristo, segundo Rouault) e os versos de José Tolentino Mendonça em "A fala do rosto":
"És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra
Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos
Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas
Por Ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos
É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas a Tua palavra
é o frio de prata
que guia as folhas
por entre o vento"
Para quem sinta espanto perante a representação de Rouault, importa recordar aquilo que outrora escreveu São Gregório de Agrigento, tendo em mente o Eclesiástico, 10,2: "...não há nada verdadeiramente mais suave que fixar n'Ele os olhos do espírito..."
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Porque São João da Cruz
é hoje celebrado pela Igreja, aqui vos deixo um poema seu, intitulado "Noite Escura":
"Em uma Noite escura,
com ânsias em amores inflamada,
ó ditosa ventura!,
saí sem ser notada.
estando minha casa sossegada.
A ocultas, e segura,
pela secreta escada, disfarçada,
ó ditosa ventura!,
a ocultas, embuçada,
estando minha casa sossegada.
Em uma Noite ditosa,
tão em segredo que ninguém me via,
nem eu nenhuma cousa,
sem outra luz e guia
senão aquela que em meu seio ardia.
Só ela me guiava,
mais certa do que a luz do meio-dia,
adonde me esperava
quem eu mui bem sabia,
em parte onde ninguém aparecia.
Ó Noite que guiaste!,
ó Noite amável mais do que a alvorada!,
ó Noite que juntaste
Amado com amada,
amada nesse Amado transformada!
No meu peito florido,
que inteiro para ele se guardava,
quedou adormecido
do prazer que eu lhe dava,
e a brisa no alto cedro suspirava.
Da torre a brisa amena,
quando eu a seus cabelos revolvia,
com fina mão serena
a meu colo feria,
e todos meus sentidos suspendia.
Quedei-me e me olvidei,
e o rosto reclinei sobre o do Amado:
tudo cessou, me dei,
deixando meu cuidado
por entre as açucenas olvidado."
Boas leituras! Boas meditações!
Falemos da morte
pois ela integra a nossa vida.
Ocultá-la, denegá-la, nomeadamente aos jovens, com medo de os "traumatizar", só significará suscitar uma perplexidade futura que, essa sim, dificilmente será superável.
Eis como Sylvia Plath a abordou, através de um pormenor de um quadro de Brueghel, O triunfo da morte, no poema (díptico onde ecoa o romance The Bell Jar) “Two Views of a Cadaver Room”:
"I
The day she visited the dissecting room
They had four men laid out, black as burnt turkey,
Already half unstrung. A vinegary fume
Of the death vats clung to them;
The white-smocked boys started working.
The head of his cadaver had caved in,
And she could scarcely make out anything
In that rubble of skull plates and old leather.
A sallow piece of string held it together.
In their jars the snail-nosed babies moon and glow.
He hands her the cut-out heart like a cracked heirloom.
II
In Breughel's panorama of smoke and slaughter
Two people only are blind to the carrion army:
He, afloat in the sea of her blue satin
Skirts, sings in the direction
Of her bare shoulder, while she bends,
Fingering a leaflet of music, over him,
Both of them deaf to the fiddle in the hands
Of the death's-head shadowing their song.
These Flemish lovers flourish; not for long."
O episódio evocado na secção I é narrado no romance de Plath, The Bell Jar. Daí a referência que fiz no início. Encontramo-lo, igualmente, nos diários da escritora.
O pormenor por ela referido na secção II pode ser desvendado no canto inferior direito do quadro.
Boa semana!
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
Manoel de Oliveira celebra hoje 101 anos
Excerto de um texto meu sobre Palavra e Utopia apresentado na Sociedade de Geografia de Lisboa, que será publicado no Boletim desta instituição:
"Primeira questão: como filmar uma identidade concebida e afirmada através da palavra, do discurso? Segunda questão, inerente à anterior: como reproduzi-la, sabendo que, nos tempos que correm, se afirma como absoluto a incapacidade de reter a atenção comum perante o discurso? Quando o espectador está rotinado a ver filmes com planos de duração média de 5.15 segundos, 4.75 se for digital, e quando estudos há apontando para um tempo médio de meio a 3 segundos para que uma audiência se ajuste a cada novo plano e o absorva? (Pramaggiore and Wallis, 166) Quando no horizonte de expectativas do espectador a acção parece prescindir da enunciação? Tentarei responder a estas questões nesta leitura do filme de Manoel de Oliveira, Palavra e Utopia.
Comecemos pelo título. Oliveira enuncia logo aí a centralidade da palavra no filme; o que significa a assunção de uma estratégia contra a corrente. Esta não deverá, todavia, ser reduzida a uma vinculação estética do Mestre, a uma assinatura sua; nem aos constrangimentos orçamentais, embora este possam ter sido determinantes. Disse-me um amigo que com ele trabalhou, a nível da produção, neste filme, que Oliveira afirmou terem sido esses constrangimentos importantes para as suas soluções estéticas e narrativas. Independentemente desses constrangimentos, a ênfase tanto na palavra, no signo, como na utopia denuncia uma percepção clara das dimensões fulcrais na obra de Padre António Vieira.
Veja-se, desde logo, o travelling inicial, durante o qual são exibidos os créditos. Oliveira utiliza aí um plano contra-picado expondo copas de árvores que, por seu turno, nos apontam o céu. Estamos, portanto, em plena densidade de significação: assim se indicia, pelo símbolo ou pela metáfora, uma dimensão espiritual, e, por sinédoque, uma presença central na vida de Vieira, a floresta, e, por extensão, o índio que nela habita ou o escravo que nela será forçado a trabalhar e que o pregador tomará como uma das causas da sua palavra.
Mas como se articula a palavra, seja esta a do sermão ou a da carta, e uma narrativa autobiográfica. Escreve uma especialista em Vieira, Maria Lucília Pires: “... a perspectiva de leitura que me parece mais sedutora consiste em encarar as cartas como construção de um auto-retrato....” (Pires 25) O próprio Verney, que não nutria uma simpatia particular pelos seus sermões, escreve: “Vejo nas suas cartas retratado um ânimo grande, um desinteresse nobre, uma viva paixão pelos aumentos do seu reino e ardente desejo de sesacrificar por ele... Se eu vivesse no seu tempo, seria o seu maior amigo.” (25) E será exactamente a partir das cartas e também, obviamente, dos sermões que Oliveira constrói esta biografia."
Acima de tudo, importante é ver os filmes do Mestre!
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
António Lobo Antunes
é considerado por muitos (eu, incluído) o maior escritor português contemporâneo. Neste texto que publicou na Revista Visão revela uma parcela da sua intimidade que, para alguns, será inesperada.
O texto, belíssimo, é intitulado De Profundis:
"O meu pai tinha quatro irmãs mais novas e um irmão que morreu pequenino, de meningite, por volta da idade em que tive essa doença. Parece que comecei com muita febre e horas depois estava em coma. Inexplicavelmente sobrevivi. Há de certeza pessoas que, pelo que vou dizer, me acharão tonto, mas ninguém me tira da cabeça que Santo António me salvou. E lá me levaram, aos sete anos, a Pádua, tocar no túmulo do Santo e fazer a primeira comunhão. A minha relação com Deus tem sido sempre tumultuosa, cheia de desacordos e discussões: longos períodos em que me afasto, alturas em que me aproximo, amuos, quase insultos, discussões. Creio firmemente que, nos livros que escrevo, é Ele que guia a minha mão e não passo de um instrumento da Sua vontade. Quantas vezes me vem à cabeça aquele pequenino poema de Sebastião da Gama: a corda tensa que eu sou o Senhor Deus é quem a faz vibrar; ai linda longa melodia imensa: por mim os dedos passa Deus e então já sou apenas som e ninguém se lembra mais da corda tensa. É que não escrevo assim tão bem, trabalho sem plano e quase me limito a assistir ao que vai ficando no papel. O meu único mérito é fuçar o dia todo, até ser apenas som. Componho-os numa espécie de febre, no fundo de um abismo em que me perco, cego e surdo, não resultam nunca de uma deliberação mental, um propósito, um plano definido. Não concordo com Jean Daniel, quando afirma que a única desculpa de Deus é não existir: há alturas em que o sinto tão fortemente em mim, alturas em que o sei tão longe. O cancro, por exemplo: o Henrique, que é um homem de Fé, diz que me salvei porque nasci com um sistema imunitário fenomenal. Palavras dele. No meu modesto entender esse sistema imunitário fenomenal tem um nome, e esse nome entendeu que eu ainda era necessário aqui. Para escrever, julgo, porque fora dos livros nada valho: os meus defeitos e as minhas imperfeições são enormes. Tão inteligente para umas coisas e tão estúpido para outras, espantava-se a minha mãe. Aborrece-me admitir que é uma excelente definição do António. Nunca fui uma criatura estruturalmente má: na verdade não passo de um aselha, um parvo, incapaz de lidar com as coisas mais simples do quotidiano, um imbecil desamparado. Se os meus amigos não tomassem conta de mim com tanto desvelo não estava aqui a escrever isto, pedia esmolas nos semáforos. Regressando ao princípio o meu pai teve um irmão que morreu pequenino, de meningite. Contou-me certa vez uma coisa que não esqueci nunca: era criança e tinha ido com o pai buscar os exames do irmão. Meningite tuberculosa, sentença de morte. Vieram para casa com o meu avô a guiar o automóvel, e o meu pai, sentado ao lado do meu avô, via as lágrimas descerem pela cara impassível. Todos os dias, na esperança do filho se salvar, a minha avó ia a pé das portas de Benfica à capelinha da Senhora da Saúde, o que nessa época, e com o estado das ruas de Lisboa, exigia um esforço enorme. Depois dos meus avós morrerem as minhas tias encontraram toda a roupa do irmão guardada num armário: não foram capazes de se desfazer dela, não quiseram desfazer-se dela. Já nenhuma das pessoas de que falei se encontra neste mundo: os meus avós, o meu pai, as minhas tias. Sobro eu e, em certo sentido, enquanto cá estiver eles continuam. Para quem pensam que escreve o imbecil desamparado? Para as lágrimas de um homem pela agonia do filho, para uma mulher a caminhar diariamente quilómetros na esperança de que Deus o curasse. No jazigo dos meus avós lê-se
Ao nosso Antoninho
e, de vez quando, vou lá às escondidas. Podem pensar na minha cretinice, não me rala, sinto-me bem junto deles. Os meus livros são isso: as lágrimas daquele homem, os passos daquela mulher. No caso de se aproximarem mais das páginas é o que realmente verão, em lugar de palavras impressas. E talvez vejam também o cretino a espreitar, comovido, pelas grades da porta."
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Medina Carreira dixit
Sobre o "Programa" (desculpem, mas quando escrevo esta palavra tenho imediatamente um ataque de riso!) Novas Oportunidades:
"O ... Novas Oportunidades é uma trafulhice de A a Z, é uma aldrabice. Eles [os alunos] não sabem nada, nada."
"[Os alunos] fazem um papel, entregam ao professor e vão-se embora. E ao fim do ano, entregam-lhe um papel a dizer que têm o nono ano [de escolaridade]. Isto é tudo uma mentira, enquanto formos governados por mentirosos e incompetentes este país não tem solução."
Ainda há quem se indigne e tenha coragem para afirmar a sua indignação.
Cá por mim acho que Brueghel também se aplica a este caso:
o cego conduzindo o cego...
E Austeriana comentou:
"O mais «curioso» (entenda-se o adjectivo como um eufemismo...)é a verborreia utilizada nestes cursos. Os professores passaram a ser designados como «formadores»; os directores de turma são agora «mediadores»; os alunos são «formandos»; e os conteúdos a «leccionar» (o verbo é outro eufemismo...)são determinados pelo "tema de vida" sugerido pelos tais alunos que não são alunos mas formandos. Acresce que, por exemplo, se um professor quiser, verdadeiramente, conseguir que os alunos/formandos aprendam, por exemplo, inglês, não pode. O importante é que os tais alunos-formandos tragam a experiência de vida para as sessões (e não aulas!) porque os docentes de inglês têm de incutir nos "actores" a noção da «língua inglesa implícita».
Como se ensina «inglês implícito»? Não faço a mínima ideia mas também isso não é importante: passam todos!
MC é curto e grosso mas, ao estado a que isto chegou, lava-nos a alma ouvir alguém falar assim!"
Interpretações do Rosto
"És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra
Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos
Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas
Por Ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos
É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento"
O título deste poema de José Tolentino Mendonça é "A fala do rosto". Encontrá-lo-ão em A Noite Abre Meus Olhos (título que, diz-me um dos meus filhos, ecoa os Smiths), a poesia reunida de Tolentino.
O Rosto acima foi pintado por Rouault.
Boas leituras!
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
As "Metamorfoses" de Sena
"Jorge de Sena é um dos vultos maiores da literatura portuguesa do século XX. Com uma obra extensa e diversificada, abrangendo da poesia ao drama, da narrativa à crítica, da tradução à ensaística, Sena é autor de Metamorfoses, um livro de poemas singular da nossa poesia contemporânea.
Neste livro, o autor toma referentes explícitos das artes visuais como impulso para a criação dos seus poemas. Descrições, interpelações irónicas ao leitor, confissões de raiz biográfica mais ou menos explícitas, leituras de sentidos eventualmente difusos, são algumas das estratégias de enunciação por ele utilizadas, e que funcionarão aqui como ponto de partida para uma reflexão sobre algumas das vertentes do diálogo entre a poesia e as artes visuais.
Num ensaio dedicado a Jorge de Sena, incluído em Os dois crepúsculos, Joaquim Manuel Magalhães refere ser o autor de Sinais de Fogo “responsável, nos anos 60, por uma mudança qualitativa na nossa poesia ao publicar Metamorfoses.” (Magalhães, 1981:59)
De acordo com aquele poeta e ensaista, tal dever-se-ia ao facto de Sena aí ter erguido “a uma prática nossa a possibilidade de ultrapassagem do lirismo objectivo da heteronímia pessoana, propondo uma sequência de descrições subjectivas de objectos artísticos.” (Magalhães, 1981:59)
No passo acima citado, Magalhães destaca dois aspectos:
• em primeiro lugar, a assimilação de uma tradição poética exógena, anglo-saxónica, com a consequente abertura a novos diálogos e a novos encontros estéticos;
• em segundo lugar, a possibilidade de superação de, recorrendo à terminologia consagrada por Harold Bloom, um poeta “forte” precedente, ou seja, Fernando Pessoa.
O próprio Sena definira de uma forma muito clara a sua relação com Pessoa no Posfácio a Metamorfoses, datado de Janeiro de 1963. Escrevera então Sena que já se gastara “o desafinado disco de me acharem discípulo,” acrescentando algo de particularmente relevante: “quando ele é o que é meu, pelo muito que, criticamente, o expliquei por mim.” (Sena, 1978: 167)
Ora, será exactamente através desta relação com o poeta da Mensagem, que o primeiro aspecto acima citado, o da interacção com as tradições poéticas anglo-saxónicas, se insinua."
Este é um passo, algo modificado, do meu livro Ekphrasis - O poeta no atelier do artista (Cosmos).
Boa semana!
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Reler Sena
Ainda a propósito da ignorância institucionalmente disseminada e metodicamente promovida.
Quando li pela primeira vez este poema era o fantasma da opressão política que pairava. Eram os vampiros a comerem tudo e a não deixarem nada!
Hoje, a opressão é outra, mais subtil, exercida por polícias mais ou menos ocultas (que todos escutam), por outro tipo de vampiros que podem ter o 12º ano ou mesmo cursos ditos superiores mas são idênticos aos burros de outrora.
Sena continua actual, e isso perturba-me pois não consigo desvendar qual será o futuro dos meus filhos!
Eis um excerto de "Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya", esperando que, perante este pântano, continue a haver quem fique "com o coração ofendido":
"Não sei, meus filhos, que futuro será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
…
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor.”
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Ilda David uma vez mais
Desta feita uma exposição sob o signo de «Vicente», no Salão Nobre do Teatro Nacional São João (Porto), a propósito de «Breve Sumário da História de Deus», de Mestre Gil.
Que pena Mestre Gil ser, hoje em dia, colocado ao mesmo nível da publicidade, dos artigos de jornais, de textos irrelevantes, nos programas de Português com que as crianças e os jovens deste país são ensinados.
Tanta a inteligência perdida!
Quantas gerações se têm perdido!
Basta ouvi-los falar!
Há dias, uma alta figura do Estado, dizia que qualquer coisa lhe chegava "às bochechas"!
É a vida!
Para já, fico à espera de ver o livro com as ilustrações da Ilda.
E Teresa Santos comentou:
"E a nossa política de Educação não terá muita responsabilidade nestas "gerações perdidas?"
Ontem, entrei no Wook para ver o que havia destinado aos mais pequenos.
Fiquei, pura e simplesmente estarrecida com algumas "pérolas" que por lá encontrei.
Apenas a título de exemplo deixo a referência de um livro que se intitula:
"Contos Tradicionais"
Oito Contos Maravilhosos
Edição/reimpressão: 2006
Páginas: 96
Editor: Lisboa Editora
ISBN: 978-972-680-644-8
Colecção: 1001 LIVROS
Faixa etária: a partir dos 13 anos"
A referência ao livro está acompanhada de duas páginas do mesmo.
Vale a pena entrar e ler!
Aqui fica o link, para o caso de querer ver um exemplo de bem escrever o português:
http://www.wook.pt/ficha/contos-tradicionais/a/id/176328/filter/
Chamo, ainda, a atenção para a faixa etária a que o livro se destina. Acho isto tão insólito que considero que só pode ter havido lapso. Mas, e o português?!
Sem mais comentários!"
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
If you don't know where you're going any road will take you there
"Não te peço mapas, peço-te caminhos.
O gosto dos caminhos recomeçados,
com suas surpresas, suas mudanças, sua beleza.
Não te peço coisas para segurar,
mas que as minhas mãos vazias
se entusiasmem na construção da vida.
Não te peço que pares o tempo na minha imagem predilecta,
mas que ensines meus olhos a encarar cada tempo
como uma nova oportunidade.
Afasta de mim as palavras
que servem apenas para evocar cansaços, desânimos, distâncias. "
Boas viagens!
E agora a minha versão
de "Mary's Song". Foi publicada no meu livro Sylvia Plath, o rosto oculto do poeta (Cosmos, 1997). Faz parte do Apêndice, uma tradução de mais de duas dezenas de poemas de Plath, acompanhada dos textos originais.
Ei-la:
"A Canção de Maria
O carneiro dominical estala na sua gordura.
A gordura
sacrifica a sua opacidade...
Uma janela de oiro sagrado.
O fogo torna-o precioso,
o mesmo fogo
fundindo os hereges ensebados,
despojando os judeus.
Os seus panos mortuários espessos flutuam
sobre a cicatriz da Polónia, Alemanha
destruída pelo fogo.
Eles não morrem.
Pássaros cinzentos atormentam o meu coração,
cinzas na goela, olhar de cinzas.
Pousam. No alto
precipício
que soltou um homem no espaço
os fornos cintilam como céus, incandescentes.
É um coração,
este holocausto que percorro,
Ó menino de oiro, o mundo há-de matar e comer."
Boas leituras!
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