sexta-feira, 26 de julho de 2013
O que nos olha de frente?
No fim de semana, duas conferências no Brasil, na quarta-feira de manhã, a presidir a um júri de doutoramento na Católica, à tarde, a dirigir com serenidade (lembrando que as férias são necessárias para recarregar baterias e viver aquilo que esquecemos na voragem dos dias) e eficiência a reunião da direcção do Centro de Estudos de Religiões e Cultura, e entretanto (quando...?) produzindo textos como este...
Tolentino é uma fonte de ennergia e inspiração para todos! Aqui fica o texto que publicou no Diário de Notícias da Madeira e que eu colhi no site da Pastoral da Cultura.
A questão que lhe dá o mote toca-nos a todos:
"O que é que nos olha de frente?
A escuta, a vigilância, a atenção são ferramentas para uma viagem humana fecunda. Os Padres do deserto diziam: «O maior dos pecados é a distração». Vivemos num mundo que nos atropela continuamente, pela quantidade e velocidade da informação. As imagens que vemos também nos obsidiam, aprisionam e devoram. Na sobreposição de discursos e factos, nem sempre somos capazes de contrariar a alienação. E depois: quantos dos nossos gestos não se tornaram, entretanto, meros automatismos! Quantas das nossas escolhas não se esvaziaram de conteúdo, cabendo-nos administrar apenas a forma! É assim que acontece que numa cultura marcada por um excesso de signos, vivamos mergulhados numa inesperada e dramática pobreza simbólica. De certa maneira, enfraqueceu-se a nossa capacidade de ver, e com isso perdemos o acesso a dimensões necessárias de profundidade. O verbo mais importante é o ver, diziam os gregos. E para ver não basta olhar, não basta deslocar a visão para o outro lado da janela. É preciso, como avisa Fernando Pessoa, «não ter filosofia nenhuma». Só uma atitude de desprendimento nos permite aceder à vigilância autêntica. E não esqueçamos: só um coração pobre vigia. Só um peregrino descobre. Só o olhar do que não tem defesas consegue colher, no instante, a verdadeira presença.
Escreve o místico Silesius:: «a rosa é sem porquê, floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos». Quando se diz ‘a rosa é sem porquê’, ou ‘a rosa é de ninguém’, propomo-nos investir num modo de construir o real que já não passa por sermos predadores e o real ser uma presa que vamos dominar ou domesticar. Entramos num espaço não já de predadores e presas, mas de vigilantes, de contemplativos, de operadores do assombro.
Vigiar é colocar-se na disponibilidade para a surpresa, para aquilo que vem, tendo consciência que o fundamental da vida não é o que adquirimos, o que fizemos, o que de alguma maneira dominámos, mas sim a incessante prática da hospitalidade. Toda a música que ouvimos, nos preparou, no fundo, para o ato da escuta. Todos os textos que estudamos, toda a poesia que lemos nos prepararam melhor para o ato da leitura. Toda a relação em que investimos, todo o afeto que partilhámos, todo o amor com que amámos, preparam-nos para o ato simples de amar. A vigilância é isso. Não está no apego ao mapa, mas no amor pela viagem. Temos mesmo de deixar a zona de conforto dos mapas para nos tornarmos viajantes, enamorados, vigilantes, sentinelas. Dir-se-ia que a vida nos pede uma escuta que atravesse o tempo, que perfure os séculos, que transcenda a paisagem, sintonizando com aquilo que verdadeiramente temos diante de nós. E, por isso, temo-nos de perguntar muitas vezes, pela vida fora: Qual é a nossa fronteira? O que é que nos olha de frente? O que trazemos diante de nós?"
Bom fim de semana.
sexta-feira, 19 de julho de 2013
"Tabu", de Miguel Gomes
Dos códigos (memórias) visuais aos códigos (memórias) de representação, um excerto do texto colectivo publicado no último número dos Cahiers du Cinéma, sob o título "L'amour des acteurs":
"Dans Tabou, la partie contemporaine et la partie 'muette avec voix off' jouent sur l'inversion. Le hiératisme des personnages de la première partie ramène l'aura de certaines figures du muet (le vieux Ventura transi de chagrin, à la sortie du cimetière, évoque Nosferatu), tandis que les comédiens jouent avec les codes d'aujourd'hui, même sans dialogues, dans la partie africaine. Ce qui n'empêche pas Miguel Gomes de s'amuser clairement avec les codes archétypaux du cinéma muet (gestuelle, saccadée, oeillades) dans la séquence où Aurora reçoit en cadeau un bébé crocodile et s'effraie de l'animal. Le film installe une infusion harmonieuse entre toutes ces dissonances de jeu.""
Bom fim de semana, e bons filmes!
quinta-feira, 18 de julho de 2013
Perto de concluir a leitura do monumental
Sources of the Self, de Charles Taylor (a sua Era Secular está traduzida para português), quero deixar-vos um excerto que talvez vos interesse:
"There are strong continuities from the Romantic period, through the Symbolists and many strands of what was loosely called 'modernism', right up to the present day. What remains central is the notion of the work of art as issuing from or realizing an 'epiphany'... there are tow different ways in which a work can bring about ... an epiphany ... In the first, dominated by the Romantics, the work does portray something ... in such a way as to show some greater spiritual reality or significance shining through it. The poetry of Wordsworth or the paintings of Constable and Friedrich exemplify this pattern. In the second, which is dominant in the twentieth century ... the locus of epiphany has shifted to within the work itself." (p. 419)
quarta-feira, 17 de julho de 2013
"Entre o céu e a terra"
é o título de um belíssimo livro de Rui Chafes, sobre o qual saiu uma recensão minha no último número da Colóquio Letras. Dela deixo-vos aqui um breve apontamento:
"A frase inicial de Entre o céu e a terra não pode deixar de causar perplexidade: “Nasci em 1266 numa pequena aldeia, que já não existe, na Francónia, na Baviera.” (p. 11) Sabendo nós que Rui Chafes é um artista contemporâneo, como se justifica esta declaração na primeira secção do livro intitulada “História da minha vida”? E, todavia, esta é, de facto, uma narrativa autobiográfica de aprendizagem e formação estética; um bildungsroman, afinal.
Enquanto Eliot convocou a solenidade decorosa do ensaio em “Tradição e talento individual”, para, subliminarmente, justificar o seu percurso criativo através da sua afinidade com vozes que, ao longo do tempo, teriam definido, não uma tradição, mas sim a tradição, Rui Chafes optou por um registo claramente subjectivo, o da autobiografia, para delinear, não apenas uma estética na qual se revê, mas também um percurso formativo, um percurso de aprendizagem “[d]esse difícil mister de formar o espaço, de o interrogar, de o inverter, de substituir um objecto pela sua sombra.” (p. 12) Daí que esta primeira secção de Entre o céu e a terra participe do subgénero bildungsroman; mais correcto seria dizer que o revê e amplia.
Com efeito, o percurso aqui exposto revela ser, desde logo, um solo de tensões estéticas próprias - mesmo quando não enunciadas - dos tempos em que emergem os momentos mais significativos da narrativa; por exemplo, as tensões entre luz e sombra.
Importa recordar que, em torno do conceito de luz, se edificou uma influente tradição do pensamento que percorre a Idade Média, dos neoplatónicos a Santo Agostinho, de João Escoto Erígena a São Tomás de Aquino. Esta tradição atribuiu à luz um estatuto privilegiado enquanto teofania entre os elementos materiais1. Por seu turno, a sombra2 participa de um estatuto ontológico medievo que persiste ainda em Giotto, o qual terá nascido em 1266, ou seja, no mesmo ano que o autor desta história. Ora, enquanto no período medievo a sombra persistia nas margens do registo pictórico, com Giotto ela afirma a sua presença. É com essa afirmação que se inicia o percurso de aprendizagem do artista. Assim emerge também uma filiação e uma estética."
quinta-feira, 11 de julho de 2013
"Continuamente vemos novidades..."
E esta colhi-a no site da Pastoral da Cultura. Tem ela a ver com um novo percurso no pensamento teológico contemporâneo que, segundo creio, ecoa, entre nós, na obra de José Frazão Correia. Se não for, o José que me perdoe.
Aqui fica o passo inicial do texto que podem ler na íntegra naquele site:
"Há uma nova teologia que floresce no interior da cultura contemporânea dita pós-moderna. Dá-la a conhecer é um acto cultural. O que é a cultura senão a interacção de saberes, de circularidade de correntes e perspectivas, que de algum modo produzem pequenos mundos de vida, de imaginação, de uma nova realidade pensada e vivida? Uma entre muitas, é a perspectiva fecunda e inteligente do teólogo milanês Pierangelo Sequeri. Personagem singular que se move em diversas áreas desde a teologia, a estética, a psicanálise à composição musical, sobretudo para crianças com paralisia cerebral. Até aqui se abre um possível trabalho fecundo entre a neurociência damasiana e a teologia/ontologia da afeição sequeriana.
Sequeri é o teólogo da “ordem dos afectos” que reflecte a inteligência da fé a partir da experiência pática/prática e não apenas académica. A palavra “ordem” indica já de si uma não-arbitrariedade dos afectos mas de uma disposição criteriosa da zona mais interior do humano (disposição proafectiva da consciência crente segundo uma justiça dos afectos). Este modo de revelação cuja «fenomenalidade específica é a carne de um pathos, uma matéria afectiva pura, da qual se encontram radicalmente excluídas toda a cissão e separação […]. É esta substância fenomenológica pática (pathétique) a definir e conter toda a “realidade concebível”» (M. Henry). A via da interioridade imanente na sua manifestação afectiva evoca a possibilidade crente, a fé originária, concentrada no universal concreto pessoal Jesus de Nazaré. Sequeri faz entrar a ordem dos afectos na consciência originária (crente-estética) tão presente na grande tradição patrística e escolástica eclesial (circularidade entre o intellectus e o affectus fidei)."
Boas descobertas!
Antecipando as férias que tardam,
deixo-vos esta meditação de José Tolentino Mendonça, retirada de O Hipopótamo de Deus, a propósito deste tópico adiado:
"Entendemos bem aquele verso de Ruy Belo que diz: «Espero pelo verão como quem espera por uma outra vida». Na verdade, não é por uma vida estranha e fantasiosa que esperamos, mas por uma vida que realmente nos pertença. Por isso é tão decisivo que as férias, tempo aberto às múltiplas errâncias, não se torne um período errático e vago; tempo plástico e criativo e não se enrede nas derivas consumistas; tempo propício à humanização não se perca na fuga a si mesmo e no ruído do mundo. Em toda a tradição bíblica o repouso é uma oportunidade privilegiada para mergulhar mais fundo, mais dentro, mais alto. É aceitar o risco de sentir a vida integralmente e de maravilhar-se com ela: na escassez e na plenitude, na imprevisibilidade dolorosa e na sabedoria confiante."
A reprodução é de um quadro de Renoir, significativamente intitulado Piquenique.
quinta-feira, 4 de julho de 2013
Para que servem a economia e a política?
A perspectiva do Papa Francisco: "A finalidade da economia e da política é servir a humanidade, a começar pelos mais pobres e mais vulneráveis, onde quer que se encontrem, mesmo que seja no ventre da própria mãe. Cada teoria ou decisão económica e política deve procurar oferecer a cada habitante da Terra aquele bem-estar mínimo que lhe permita viver dignamente, na liberdade, com a possibilidade de sustentar uma família, de educar os seus filhos, de louvar a Deus e de desenvolver as próprias capacidades humanas. Isto é fundamental! Sem esta visão, nenhuma actividade económica tem significado.
Neste sentido, os vários e graves desafios económicos e políticos que o mundo contemporâneo enfrenta exigem uma corajosa mudança de atitudes, que restitua ao fim (a pessoa humana) e aos meios (a economia e a política), o lugar que lhes é próprio. O dinheiro e os outros instrumentos políticos e económicos devem servir, e não governar, tendo presente que a solidariedade gratuita e abnegada é, de maneira aparentemente paradoxal, a chave do bom funcionamento económico global.
Pude compartilhar estes pensamentos com o Senhor Primeiro-Ministro [David Cameron], com o desejo de contribuir para ressaltar quanto está implícito em todas as instâncias políticas, mas que por vezes podemos esquecer: a importância primordial de colocar o homem, cada homem e cada mulher, no centro de todas as decisões políticas e económicas nacionais e internacionais, uma vez que o homem é o recurso mais autêntico e profundo da política e da economia e, ao mesmo tempo, a sua finalidade última."
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