quarta-feira, 12 de maio de 2010
A rebeldia de Bento XVI
"Em Dezembro de 2005, o seu primeiro Natal como morador no Palácio Apostólico, circularam fotografias de Bento XVI com um gorro que ninguém sabia explicar. Um jornal italiano trouxe em capa inteira essa imagem, acrescentando apenas um “o Papa faz bem”, aludindo às baixas temperaturas que se faziam sentir nessa quadra, mas a perplexidade, ainda assim, era grande. As explicações vieram mais tarde: aquele gorro encarnado chama-se camauro, é uma peça do guarda-roupa pontifício e o último Papa a utilizá-lo havia sido João XXIII. A mesma efervescência repetiu-se quando o Papa apareceu ainda com outro chapéu: uma versão estival do chamado saturno.
São apenas adereços? Sim, claro. E certamente mais do que isso. O que está em causa é o estilo, e não apenas no sentido individual que lhe dava Buffon no célebre aforismo “o estilo é o próprio homem”. Está em causa e estilo como conceito essencial para descrever colectivamente a identidade cristã.
Num estudo recente, o teólogo Christoph Theobald explica bem como o estilo evita a redução do cristianismo á intemporalidade de um sistema doutrinal, mostrando o conjunto da vida cristã como maneira de habitar o mundo, actualidade histórica, modo orgânico de existência. O que se sente com Bento XVI, quer se trate da escolha de um chapéu ou do tema a tratar em ocasiões tão extraordinárias como a ida ao campo de concentração de Auschwitz ou à cátedra da Universidade de Ratisbona, é que o cristianismo não é um parque jurássico, uma ideologia religiosa, um corpo de apparatchiks: o cristianismo está vivo, ancora-se numa experiência espiritual e histórica, é legível à razão, interroga-se à luz de uma tradição teológica, debate-se com o presente das múltiplas culturas, confronta-se, aprofunda-se.
Essa é a rebeldia de Bento XVI. Ele não se conforma com a progressiva marginalização da fé nas sociedades ocidentais, tornada uma espécie de amuleto privado e supletivo. O Papa teólogo sonda continuamente as condições de possibilidade da fé. Paradoxalmente, isso que é o mais expectável na determinação de um Papa, torna Bento XVI, aos olhos de alguma opinião pública, um personagem algo inesperado.
João Paulo II teve uma acção providencial no elã de reconciliação com que o convulsivo século XX terminou: a queda do muro e o fim da guerra fria; a purificação da memória eclesial com os pedidos de perdão pelos erros cometidos em nome do cristianismo e a aproximação entre os vários credos religiosos; o sentido de uma unidade que as suas 104 viagens apostólicas sublinharam profeticamente. Wojtyla era um Papa a contas com a história, apostado num virar de página. Ratzinger liga o seu ministério a outra direcção: à necessidade de alicerçar as razões da fé e relançar o seu papel e relevância no coração humano.
Por isso Bento XVI valoriza tanto o catolicismo como forma. As alterações subtis que tem introduzido no seu cerimoniário não se devem interpretar simplesmente como um de gustibus non est disputandum (gostos não se discutem). Trata-se, sim, da afirmação de um catolicismo também como forma, como imagem. Quando, por exemplo, substitui o báculo assumidamente contemporâneo que Paulo VI encomendara ao escultor Lello Scorzelli, e que João Paulo II tornou uma sua imagem de marca, por um de linhas mais clássicas que pertencera a Pio IX, podem-se, é claro, discutir os efeitos, mas não a intencionalidade do gesto."
Excerto de um texto de José Tolentino Mendonça, publicado no Expresso.
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