sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
"O essencial sobre William Shakespeare" (Parte II)- O prometido é devido
Renovando os meus agradecimentos a Luísa Leal de Faria, aqui deixo o texto da sua apresentação ao meu "O essencial sobre William Shakespeare":
Quando o Mário me convidou para fazer a apresentação deste livro comecei por hesitar, não obstante ter-me sentido logo lisonjeadíssima por a ideia lhe ter ocorrido. Mas sabia-me muito pouco preparada para poder apreciar criticamente uma obra sobre este portento da literatura que é William Shakespeare, que outros têm estudado consistentemente, ao longo de décadas. Não é o meu caso, dado que me tenho dedicado à literatura e cultura inglesas em período mais tardio. Mas o Mário convenceu-me, com o charme e o poder de persuasão que lhe conhecemos, aceitando que a minha leitura não seria a do especialista mas antes a do leitor comum, informado e interessado; não a de um “shakespeariano” com créditos firmados. Afinal, tratando-se de uma obra não para especialistas mas sim para um público mais diversificado, a minha apreciação poderia reflectir, se não melhor pelo menos de forma mais aproximada, o modo como o leitor expectável irá relacionar-se com ela, e a ela reagir.
Com os Elementos de Retórica Literária, de Heinrich Lausberg, na magnífica tradução de Raúl Miguel Rosado Fernandes, aprendemos que, de entre os três géneros aristotélicos do discurso partidário, o terceiro, o género epidíctico ou demonstrativo, tem “as funções de louvor e de censura” e tem, “como caso paradigmático o discurso festivo, em honra de uma pessoa que deve ser celebrada (e, portanto, louvada), pronunciado por um orador, para isso mesmo contratado” (p.84). A presente situação não configura, em bom rigor, uma homenagem ao Mário, nem eu fui contratada para lhe tecer os louvores. Mas não poderia começar a falar do seu Shakespeare sem primeiro dar a conhecer um pouco do percurso do Mário como escritor mas sobretudo como leitor.
É provável que todos os que aqui estão já tenham lido textos do Mário. Como professor de literatura, conhecemos-lhe obras no âmbito da teoria literária e da análise específica de obras da literatura inglesa e norte-americana. Conhecemos-lhe, também a viragem para a cultura visual e os importantes desenvolvimentos que tem trazido ao estudo do cinema e das artes visuais. Com ele reaprendemos que o poeta deve visitar o atelier do artista e em que consiste a EKPHRASIS. Mas o Mário não se instalou no relativo sossego da academia e aventurou-se pelos caminhos ainda mais criativos da poesia e do romance, onde de crítico dos outros se expos a ser ele próprio objecto de crítica. A Inveja, por exemplo, é um romance académico que li de um só fôlego e que lhe trouxe, decerto, alguns incómodos. Espero, ainda, que os outros seis pecados mortais venham a merecer novos romances. E, se lhe chamarmos Ishmael, ficamos a conhecer o blog onde partilha reflexões sobre livros e filmes que o interpelam e sobre os quais fala a partir da emoção e da sensibilidade, sem preocupação pedagógica, mas sempre com o inevitável rigor que decorre do seu extenso leque de interesses e do sólido travejamento teórico que está lá, mesmo quando não é expressamente convocado.
Foi ali, no blog que é um piscar de olhos a Melville e a Moby Dick, que encontrei uma lista dos seus autores preferidos, das suas obras mais queridas. Encontrei poesia e prosa, do Atlântico aos Urais, ou seja, de Portugal à Rússia, dos Estados Unidos, da Bíblia à literatura contemporânea. E foi ali que reconheci, entre os predilectos, alguns textos de Shakespeare: Hamlet, King Lear, Richard II The Merchant of Venice, The Tempest. E não pude deixar de constatar a honestidade desta lista. Quando o Mário refere obras singulares de autores que escreveram muitas outras, é porque são estas que o interpelam e comovem e não as outras, que decerto também leu. Mas, entre a lista de obras, refere alguns autores e escreve a seguir “tudo” ou “todo”. É tudo de Emily Dickinson, de Keats, de Pessoa, de Wordsworth e de Yeats. Mas já não é toda a obra de Walt Whitman nem de Baudelaire nem de Sylvia Plath ou de T. S. Eliot. Com os romancistas é a mesma coisa: as preferências são selectivas, e nenhum aparece designado pelo nome – são as obras singulares que são por ele apropriadas. É isto que acontece com Shakespeare. Que fácil seria dizer o esperado: um professor de literatura inglesa, ao fazer uma lista de autores e obras preferidas, diria, quase fatalmente, Shakespeare, todo; não referiria apenas cinco peças. E foi exactamente por esta exigência de precisão, mais pelo que não disse do que pelo que enunciou, que percebi que o Mário, professor e crítico da literatura dos séculos XIX a XXI, conhece bem o seu Shakespeare, lê-o critica e selectivamente, e por se aventurou nesta tarefa de nos dar a conhecer o essencial sobre o chamado “Bardo de Avon”.
Aliás, o autor define, desde o início e com muita precisão, o que vai fazer e como o fará. Será uma biografia, e não um comentário à obra de Shakespeare. Terá o objectivo, como é dito na p. 9, de “resgatar do silêncio do tempo um percurso de vida.” E é bom que se diga, desde logo, que dessa vida muito pouco se sabe, e muito se especula. Por isso, o Mário apresenta, no Prólogo, as suas fontes, não como obras de referência listadas a seco, por assim dizer, mas como se de velhos amigos se tratasse. O que os especialistas seleccionados dizem de Shakespeare surgirá como um diálogo entre o Mário e eles, como uma troca de pontos de vista, não como simples referências bibliográficas, destinadas apenas a ratificar as afirmações que serão feitas, ou as perguntas deixadas em aberto. E há outro aspecto no tratamento das fontes que me parece importante assinalar. Não obstante a imensidão de materiais bibliográficos que têm sido publicados no Reino Unido e nos Estados Unidos, e que normalmente tendem a ofuscar, pela sua inquestionável qualidade, a produção nacional, o Mário optou por olhar também para o trabalho dos seus pares. O trabalho dos nossos colegas da Universidade do Porto, que têm vindo a traduzir para português a obra de Shakespeare no âmbito do projecto “Shakespeare para o século XXI”, merece-lhe o seguinte comentário: “os seus estudos introdutórios às peças até agora publicadas constituíram um apoio precioso” (p. 11) e, sempre que recorre a citações de Shakespeare utilizará as traduções e comentários críticos dos nossos colegas do Porto. E assim, deste modo generoso e atento, o Mário vem contribuir decisivamente, através deste livro, para a consolidação de um renovar da tradição dos estudos shakespearianos em Portugal, para a canonização dos títulos e dos textos em português, reforçando uma linha de interesse académico essencial nos estudos anglísticos, mas que tem tido, ao longo das últimas décadas, períodos de menor visibilidade.
O Essencial sobre William Shakespeare vai, pois, à procura do homem, da pessoa que escreveu as peças que nos comovem e divertem, do homem que, como diz Harold Bloom, está no centro do cânone ocidental, juntamente com Dante, porque ambos superam todos os outros escritores ocidentais “em acuidade cognitiva, energia linguística e poder de invenção”, fundindo estas três qualidades numa paixão ontológica que é a capacidade para a alegria (capacity for joy), ou para usar uma expressão de Blake: “Exuberance is beauty” (Harold Bloom, The Western Canon, 46). O Mário vai, pois, tomar o leitor pela mão, e convidá-lo a partilhar uma viagem de descoberta, no tempo e no espaço, dessa figura misteriosa que foi William Shakespeare. É este o tom que percorre o livro, desde as primeiras páginas. Não estamos diante de uma obra autoritária que presume ter todo o conhecimento e todas as respostas. É como se, ao virar de cada página, o Mário estabelecesse um pacto com o leitor: ele será o nosso guia, numa narrativa cheia de mistérios e de conjecturas, onde não raro será o facto oblíquo, que poderia passar despercebido, que é recuperado para dar densidade ao enquadramento ou transformar um silêncio da história numa conjectura plausível.
Deste modo, não é só a vida de William Shakespeare que é narrada neste livro. Essa vida é embebida no solo fertilíssimo do arco temporal que atravessa, e que nos leva à descoberta de toda uma época e das circunstâncias que moldaram a cultura e a sociedade inglesas entre 1564 e 1616. Desde o dia-a-dia da pequena comunidade de Stratford até à agitação da vida na grande metrópole que era Londres, passando pelas digressões pelo país no contexto da constituição e apresentações públicas das companhias teatrais, o livro evoca a época de Isabel I e os primeiros anos do reinado de Jaime I com a vivacidade do romance histórico e com a sustentação documental da história.
Após o Prólogo, a obra desdobra-se em cinco capítulos que correspondem a fases da vida e da actividade de dramaturgo e actor de William Shakespeare. “Os primeiros anos” dedicam a atenção à infância e juventude, em Stratford, até à partida para Londres. O segundo capítulo, “À descoberta da urbe”, conduz-nos a um período em que se situam os “anos perdidos”, entre 1585 e 1592, mas em que podemos encontrar uma imensidão de referências ao contexto social e cultural e muitas informações prováveis e plausíveis sobre a vida e actividade de Shakespeare. O capítulo seguinte, “Ao serviço do lorde camareiro-mor” acompanha Shakespeare desde 1594 até à morte da rainha, em 1603. “Ao serviço do Rei” foca os anos entre 1603 e 1609, depois da sucessão por Jaime I, e por último “Os derradeiros anos”, como o nome indica, informa-nos sobre os últimos anos da vida de William Shakespeare.
A narrativa não isola, porém, a figura de Shakespeare do teatro do mundo onde a sua vida decorreu, nem tão pouco das preocupações do homem de família, dedicado à consolidação do seu património material, interessado em firmar as suas raízes nos dois lugares de pertença matricial: Statford e Londres. É esta amplitude de referências que rasga horizontes de conhecimento e reflexão sobre a educação das crianças e dos jovens, sobre a questão religiosa tão delicada e premente desde a Reforma henriquina, sobre a vida de família, os costumes e a vida social das vilas e da grande cidade, os conflitos de influências que este livro nos apresenta. Mas, para além desta riquíssima teia de referências, sempre convocada para melhor iluminar uma questão ou situar um problema de análise e interpretação, e nunca aparecendo como porventura maçadores alardes de erudição, o livro traz-nos o relato de um percurso menos conhecido do público em geral: a situação das companhias de teatro neste período, os acidentes e constrangimentos a que as suas actuações estavam sujeitas, as condições materiais das apresentações públicas, as características dos reportórios das companhias teatrais, a personalidade dos actores mais conhecidos, as condições do mecenato. Acompanhamos, assim, o percurso das companhias teatrais nas suas digressões pelas províncias e nas suas actuações em Londres, as questões dos guarda-roupas, dos cenários e dos apetrechos cénicos, da música, a criação e o desaparecimento de casas de espectáculo, os problemas do investimento no teatro, as condições concretas das apresentações públicas e os públicos, desde o povo de Londres e das províncias, até às apresentações na corte.
E, é claro, do contexto social e cultural emerge e vai tomando forma a figura individual de William Shakespeare. A partir do que se sabe com alguma segurança, bem como de “educated guesses”, o Mário vai tecendo a teia da criação de cada uma das peças, referindo sinteticamente de que tratam e relacionando cada uma com contextos que vão desde episódios da vida privada e afectiva de Shakespeare a episódios de natureza pública, passando pela teia de relações com outros autores seus contemporâneos ou referências literárias de tempos anteriores. Não presume dar ao leitor “chaves de leitura” ou interpretações originais das peças de Shakespeare, mas problematiza o suficiente para abrir pistas de leitura. Não será possível nem desejável, nesta breve apresentação, enumerar – muito menos reproduzir – estes passos da obra. Mas bastará exemplificar, com as suas peças predilectas, que atrás refer, o que quero dizer. Ao falar de Ricardo II o Mário não deixa de mencionar as implicações políticas da peça e a riqueza de alusões possíveis ao contexto da época, com inerentes riscos para o autor de cair em desfavor ou, pelo menos, se ver envolvido em polémicas. Também O Mercador de Veneza lhe merece algumas linhas adicionais de contextualização e com ela de descoberta de novos significados. Hamlet é contextualizado com relação à morte do pai de Shakespeare. O Rei Lear, na sequência de Macbeth, aborda o problema da soberania e do passado mítico da história de Inglaterra, já depois da coroação do soberano escocês Jaime I; e, por último, refere A Tempestade, que caracteriza deste modo: uma “peça crepuscular, na qual Shakespeare sintetiza as preocupações das suas peças anteriores: a história do irmão que trai o irmão; o poder corrosivo da inveja; o afastamento de um governante legítimo: a passagem perigosa da civilidade para a selvajaria; a estratégia de manipulação através da arte, em particular a peça dentro da peça; a utilização de poderes mágicos; a tensão entre natureza e educação; colapso da identidade. Acima de tudo … esta não é tanto uma peça sobre alguém que detém o poder absoluto mas sim sobre alguém que dele abdica; … alguém que se prepara para sair de cena e deixar o mundo das ilusões e da fantasia, e este globo, o seu Globo, para trás”(p. 143).
E, como diz o Mário sobre The Tempest, é também tempo de terminar esta apresentação. Não mencionei as várias referências aos sonetos e a quem poderão ter sido dedicados, ou às várias edições das peças, em vida de Shakespeare ou postumamente, ou aos retratos, temas também abordados neste livro. Muita coisa ficou por dizer, mas apenas a leitura do livro fará justiça ao seu autor. Quem quiser saber o essencial sobre William Shakespeare não se vai arrepender de dedicar algumas horas a uma leitura que, posso garantir, agarra o leitor da primeira à última página.
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