quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

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de José Tolentino Mendonça, publicado no Diário de Notícias da Madeira. É a propósito do Mal.
Evoca esse registo impressionante de lucidez, coragem e vitalidade que é o Diário de Etty Hillesun (um livro a ler obrigatoriamente!), medita sobre a importância do luto (o que obviamente nos traz à mente o Eclesiastes)e deixa-nos pistas para uma avaliação serena das dificuldades com que todos os dias nos confrontamos.

Ei-lo (depois de lhe ter limpo o acordo ortográfico), e espero que... ia a escrever "que gostem", mas acho mais correcto escrever "que vos seja útil":

"O mal: uma difícil questão"

A Cabala judaica ensina que o mal surgiu no mundo quando um escriba preguiçoso se equivocou na escuta e transcreveu erradamente uma letra da Escritura Sagrada. Um rabino comentador da Cabala, Soloviel, afirma: «As duas vozes, aquela de Deus que não devemos nomear e a voz do mal, do mal inominável, são terrivelmente semelhantes. A diferença entre uma e outra é apenas o som de uma gota de chuva a cair no mar». Ambas são formas poéticas de interpretar a questão. Mas reflectir sobre o mal, qualquer que seja a forma adoptada, é já uma vitória, pois não raro ele nos aparece como austeríssimo lugar onde o pensamento entra em colapso.

O mal toca universalmente as existências e constitui a todos os níveis um desafio. O importante, porém, como explica o filósofo Paul Ricoeur, não é tanto insistir em encontrar uma solução. Mais relevante que pensar donde vem o Mal é sim descobrir o que podemos fazer contra ele. A experiência do mal desafia à luta prática contra o próprio mal. Reorienta-se, assim, o olhar para um novo futuro.

Como é que o mal deixa de ser o irreparável? Quando aproveitamos o contexto de mal para um acontecimento doutra ordem. Quando deixamos apenas de perguntar: «Porque é que isto me aconteceu?». E investimos antes as nossas forças criadoras a decidir: «Como é que devo reagir vitalmente a isto que aconteceu?». Apetece citar aqui uma página do impressionante Diário de Etty Hillesum, um dos grandes testamentos espirituais do nosso tempo. Está lá tudo. «Foi lá [e a autora está a falar da sua experiência no campo de concentração], entre as barracas, repletas de gente agitada e perseguida, que achei a confirmação para o meu amor por esta vida. Não tive um único corte com a vida. Havia como que uma grande continuidade, plena de sentido. Como é que alguma vez vou conseguir descrever isto tudo? Descrever de modo que outros também consigam sentir como na realidade a vida é bela!».

É preciso contrapor à experiência do mal uma sabedoria, enriquecida pela meditação interior, que dialogue com as transformações pelas quais passamos. O modelo talvez seja realmente o dos trabalhos do luto. O luto é a aprendizagem gradual da perda até senti-la dentro de nós como possibilidade misteriosa de reencontro. Chegarmos a sentir, por exemplo, que a morte dos que amamos ainda pode gerar vida, no sentido de que não nos perdemos deles, mas continuamos a crescer e a maturar conjuntamente, só que de forma diferente. O luto, quando bem vivido, é um trabalho espiritual, uma mudança qualitativa que nos entreabre a um outro entendimento da vida. Em relação ao mal precisamos disso: aprender que a experiência do mal não é uma faca que nos decepa a vida.

Progressivamente, e sublinhe-se aqui a importância da progressividade, podemos ir percecionando que a experiência do mal não acarreta necessariamente a destruição de nós próprios. Tornamo-nos então capazes de semear de novo, apesar de tudo e contra tudo o que aconteceu. A ampliação da vida e o seu florescimento estão prontos para acontecer.

3 comentários:

  1. Na missa do funeral do João Bénard da Costa, o Tolentino Mendonça cita essa frase da Etty H. Foi maravilhoso. Um beijinho da Filipa Rosário

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  2. Estou verdadeiramente emocionada ... há Mal e males, eu conheço o Mal do cancro, e nestas palavras encontrei sintonia, humanismo e sabedoria!
    E, finalmente,...não só gostei como também me fui útil!!

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  3. Reformulando: "não só gostei como também me foi útil!!"

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