sexta-feira, 9 de julho de 2010

Simulações - Mistério e publicidade



"Nada se afigura mais hostil ao mistério do que a publicidade: as exibições vulgares, os refrães maçadores, os engodos grosseiros são o contrário do invisível e do íntimo. E, no entanto, porque ela visa suscitar um desejo irresistível, a publicidade tem, sem saber, de lidar com as nossas aspirações mais profundas. O que naturalmente queremos é a bem-aventurança: «Todos os homens procuram ser felizes. Não há excepção, por diferentes que sejam os meios que eles em pregam». Se o bem soberano estivesse diante dos nossos olhos, não poderíamos deixar de o escolher. Mas, à nossa frente, há apenas coisas limitadas, captando dele tão-só um reflexo fugaz; por isso, nenhuma delas pode atrair-nos ao ponto de nos privar do nosso livre-arbítrio. Todavia, para forçá-lo um pouco, importa que, de algum modo, o objecto no cartaz se enfeite, por um instante, de uma bondade suprema. O salsichão Saint Justin dá-vos, de novo, o Gosto do Verdadeiro; o creme Eternal varre as vossas rugas; o portátil X-tremity permite-vos estar em toda a parte ao mesmo tempo... É tão copiosa a oferta de absolutos diversos que não sabeis onde dar as cartas. Mas entrais na Simplicidade, graças ao crédito de consumo Pax-Plus e pela Providência dos seguros Immut, sois sondados nas vossas mínimas necessidades. Nunca o púlpito ressoou com tantas promessas religiosas. O marketing mais agnóstico tem, sem cessar, de recorrer à teologia. Os anunciantes esforçam-se por igualar a Anunciação. As nossas prateleiras são invadidas pelos deuses.

Entre todos os artigos de fé reciclados para dourar os artigos do bazar, aquele que o reclamo mais facilmente retoma é a crença na ressurreição. Se fosse o catecismo que estivesse em causa, haveria a seu respeito muitos incrédulos. Mas se for uma página publicitária, aumentará o número dos fiéis. Lá está, quase sempre, uma mulher bonita para exaltar os méritos de um carro, de um patê para gato ou de uma manteiga sem colesterol. Poderia, à partida, pensar-se que o processo consiste apenas em referir o desejo sexual a uma embalagem qualquer. E estaria certo, por pouco que se admita que este desejo vai além da sexualidade. Tomás de Aquino observa que «os bens exteriores são feitos para o corpo; e que é natural, pois, que os bens do corpo (a saúde, a beleza, o vigor) sejam preferidos aos bens exteriores». O atractivo comercial joga com esta preferência. Utiliza os esplendores do corpo de modo que eles se comuniquem às mercadorias e lhes concedam um excesso de amabilidade. Ele, de facto, não se serve de quaisquer carcaças. As suas silhuetas lembram as propriedades clássicas dos corpos gloriosos: claridade, agilidade, incapacidade de sofrer, perfeição em todos os aspectos da sua natureza. O génio da pós-produção deslastra a actriz do seu peso mortal. Nenhum pus ou tumor parece ameaçar a sua pele. Mas é à custa de uma descarnação radical. Enquanto os corpos gloriosos são de carne e osso, iluminados pelo logos, estes corpos fantasmagóricos são de cátodo e octeto, recuperados por um programa electrónico."

In A profundidade dos sexos - Para uma mística da carne, de Fabrice Hadjadj, prefácio de José Tolentino Mendonça (Paulinas, 2010).

Como noutras ocasiões, este fragmento foi colhido no site da Pastoral da Cultura.

Bom fim de semana!

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