terça-feira, 6 de julho de 2010

Arte e Teologia


Deus é feio ou é belo?

"A arte é, se quisermos, a narração visual da experiência de encontro com um rosto, uma palavra, uma imagem verdadeiramente visível porque incarnada. São Paulo irá mais longe, completando cristológica e cristãmente a doutrina da “imagem-ícone” de Deus desenvolvida em Génesis 1,27 («Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher»). De facto, ele afirma que os cristãos, como filhos adoptivos de Deus, são predestinados a serem “uma imagem (eikôn) idêntica à do seu Filho, de tal modo que Ele é o primogénito de muitos irmãos” (Romanos 8, 29). O cristão é, por isso, imagem da imagem de Deus e a arte é o ícone da imagem da imagem, pois através dos vários rostos humanos ela recompõe o rosto de Cristo que é revelação do rosto divino. Como afirmava Macário, o Grande, na sua Iª Homilia, «A alma que foi plenamente iluminada pela beleza inexprimível da luminosa glória do rosto de Cristo, fica cheia do Espírito Santo (...) e torna-se toda ela olhos, toda luz, toda rosto» (Patrologia Graeca XXXIV, 451).

Façamos aceno a uma pergunta talvez ingénua mas, sem dúvida, fascinante: é possível dizer algo mais sobre o rosto de Deus, através da Incarnação [de Jesus], para que a arte adquira uma espécie de cânone figurativo? Há um silêncio nos Evangelhos que não dedicaram nem uma linha ao perfil físico de Jesus de Nazaré, nem sequer o Evangelho de Lucas, dito o “pintor” (de acordo com a tradição). Ora, a cultura cristã enveredou não por uma, mas por duas vias e antitéticas. Ambas têm, todavia, uma sua verdade.

Primeiramente, a partir do século III, os Padres da Igreja quebraram o silêncio visual e imaginaram o rosto de Cristo moldado pelo seu sofrimento redentor, o rosto da paixão e morte que o célebre passo de Isaías, do canto quarto do Servo Sofredor, ilumina: “Sem figura nem beleza. Vimo-lo sem aspecto atraente ... diante do qual se tapa o rosto” (53,2-3). Orígenes resumiu isso de forma lapidar: Jesus era pequeno, feiote, semelhante a um zé-ninguém. Pode ser surpreendente, mas aqui chegados, devemos dizer que até a fealdade pode salvar o mundo, invertendo assim a célebre e citadíssima afirmação de Dostoievski. A lógica da Incarnação compreende também o sofrimento de Deus, o corpo martirizado, a posteriora Dei, como Lutero ousava definir o perfil de Cristo crucificado. O seu rosto reflecte a face banhada de lágrimas dos irmãos e irmãs do “primogénito entre muitos irmãos”. Neste sentido, é uma “fealdade” nobre que fala de Deus e que impede todo o kitsch devocional, todo a esteticismo triunfalista, todo o maneirismo.

Contudo, é preciso reconhecer que o ponto de chegada da vida de Cristo não é a Sexta-feira Santa, mas “o Domingo da vida”, para usar livremente uma locução hegeliana, ou seja, o alvor da Páscoa que é por excelência o definitivo “dia do Senhor” (Apocalipse 1,10). Não é por acaso que a Primeira Carta de João define Deus como Luz (1,5). A partir daqui inaugurou-se uma outra estrada figurativa que os Padres da Igreja exaltaram a partir do século IV, e fizeram prevalecer na tradição artística posterior. Usando os modelos da estética clássica greco-romana, absorvendo até frequentemente a tipologia figurativa das divindades pagãs ou dos filósofos da antiguidade, propôs-se um Deus belo e radioso, um Cristo apolíneo, irradiando luz como o sol, segundo o passo do Salmo 45,3, submetido a uma releitura alegórico-messiânica: “Tu és o mais belo dos filhos dos homens”. Apesar de Santo Agostinho repetir que “ignoramos totalmente qual seja o rosto” real de Cristo, foi esta a imagem divina que se impôs, reforçada em milhares de representações admiráveis em séculos da melhor arte cristã, mas também na superabundância monótona e repetitiva dos copistas.

Na verdade, os dois itinerários iconográficos oferecem um contributo para representar o Deus bíblico que é, sim, transcendência e luz, mas também é Emanuel, pronto a caminhar pelos percursos da história e a tocar os corações com o seu Filho feito homem. À luz desta perspectiva torna-se emblemática a síntese operada pelos vários Pantokrator colocados nas absides das grandes basílicas antigas: o Cristo triunfante e glorioso aparece em todo o esplendor da sua beleza, mas traz bem visíveis os estigmas ensanguentados da sua paixão. Deus invisível e visível, transcendente e próximo, glorioso e sofredor. Eis a arte, a quem cumpre não só apresentar o fenomenológico, mas o mistério subentendido (o Inconnu, como dizia o poeta francês Laforgue). Quando a arte se faz religiosa, deve procurar sempre unir de maneira harmoniosa o Infinito e a carne, o Eterno e a história, o Filho de Deus que é Jesus de Nazaré."



D. Gianfranco Ravasi

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