sexta-feira, 16 de julho de 2010

Silêncio


é o tópico mais evidente quando me ausento, durante uns dias, deste espaço.

Meditação de José Tolentino Mendonça:

"Durante anos o compositor John Cage sondou a possibilidade de uma obra sem sons, mas impedia-o duas coisas: a dúvida se essa tarefa assim não estaria, desde logo, votada ao fracasso, porque tudo é som; e a convicção de que uma composição tal seria incompreensível no espaço mental da cultura do Ocidente.

Foi contudo sendo encorajado pelas experiências que se realizavam nas artes visuais, em particular a série de pinturas de Rauschenberg, de quem era amigo, algumas todas em preto, outras em branco. Assim, em Agosto de 1952, estreia a sua peça 4’33’’; num concerto onde também se interpretaram obras de Christian Wolff, Morton Feldman, Pierre Boulez.

A proposta de John Cage era completamente insólita: o músico deviam subir ao palco, saudar o público, sentar-se ao instrumento e permanecer, em silêncio, por quatro minutos e trinta e três segundos, até que, de novo, se levantasse, agradecesse à plateia e saísse. Na assistência instalou-se a polémica e choveram as vaias. Mas ao longo de toda a sua vida, John Cage referiu-se a essa peça com sentida reverência: «a minha peça mais importante é essa silenciosa; não passa um só dia que não me sirva dela para tudo o que faço».

Susan Sontag num ensaio que intitulou “A estética do silêncio” pega, entre outros, neste exemplo de Cage para pensar no significado desta espécie de “fuga para o silêncio” que a arte e o pensamento contemporâneos têm sublinhado. Dá que pensar a frase com que abre o seu ensaio. Diz ela: «Cada época deve reinventar para si mesma o projecto de uma espiritualidade».

Quando medito no contributo que a cultura possa dar, num futuro próximo, à existência humana, pressinto que mais até do que a palavra será a partilha desse património imenso que é o silêncio. Mesmo que construamos a palavra como uma torre, temos de aceitar que ela não só não toca cabalmente o mistério dos céus, como muitas vezes nos incapacita para a comunicação e a compreensão terrenas. Precisamos do auxílio de outra ciência, a do silêncio. Já Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII, explicava: «A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar»."

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Fragmentos de "Mistérios de Lisboa"







Para aguçar o apetite enquanto o filme de Raul Ruiz não chega às salas.

Um convite à diferença


[Férias com um amigo, António Alfarrobinha, nos idos de 70, com os cabelos todos negros e uns quilitos a menos!]

O convite à diferença de que falo é feito por José Tolentino Mendonça.

Escutêmo-lo:

"Penso muitas vezes na sugestão que Jesus faz aos discípulos, mais do que uma vez: «Passemos para a outra margem» (Mc 4,35).

Há um sonho do qual não podemos desistir: o sonho de que a Igreja, em cada uma das suas comunidades, se pareça também com uma família alargada em gozo de férias e não apenas a um laborioso centro de prestação de serviços, sobretudo se anónimo ou impessoal.

Nessas férias seria diferente! Saberíamos o nome uns dos outros e mais: daríamos tempo para saborear a história e a presença que cada um é. Não seria o relógio a presidir aos nossos encontros, nem a utilidade imediata a emprestar justificação às nossas procuras. Pelo contrário: estar em comunidade seria como caminhar junto ao mar,sem nenhuma pressão de horários (exteriores e interiores), entregues ao prazer da contemplação e da companhia. Ou como passear pela montanha, entusiasmados por visões alargadas onde a paisagem refulge numa transparência que quase havíamos esquecido.

Nessas férias seria diferente! Aboliríamos o rotineiro fast food religioso, que apenas serve para enganar a fome, deixando que a alma se alimente e revitalize como precisa: no silêncio e na palavra, no encontro e no dom, na escuta e na prece. Buscaríamos juntos, como peregrinos experimentados, a abundância ainda intacta das fontes que nos irrigam, sentindo-nos depois reconciliados e gratos pela fantástica vizinhança delas. E faríamos o mesmo com a beleza dos lírios, da qual Jesus falou, com o dourado apaziguador que podem ter os campos à nossa passagem ou com o canto dos pássaros cada vez mais alto.

Nessas férias seria diferente! A Refeição constituiria o centro, mas como deliberado espaço de multiplicação para a vida: partilhando o pão que expande a graça, bebendo o vinho que amplia a festa."

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Oscar Wilde previu tudo isto!




Neste Mundial a qualidade do futebol praticado correspondeu à célebre frase do Franklin: "A general happy medicocrity prevails."
Consequentemente, os episódios colaterais foram elevados ao estatuto de estrelas.
Entre estes destacam-se o do famoso polvo sibilino e do beijo de Casillas à sua bela e (proissionalmente) mediática namorada.
Ora, quem preveniu tudo isto foi Oscar Wilde no ensaio "The Soul of Man Under Socialism".
Nele Wilde sintetizou em meia-dúzia de linhas de que forma a realidade é construída pelos media.
Afinal, a vida imita a arte!
A ler por quem se interessa por estes fenómenos!
Boa semana!

sábado, 10 de julho de 2010

Mistérios de Lisboa



E se contrariássemos os nossos hábitos de espectadores, formatados para filmes que duram entre uma hora e trinta e uma hora e quarenta minutos, e nos deixássemos tomar pela beleza das imagens e pela intensidade do texto durante quase cinco horas?
É verdade e bem possível, como o atesta este notável filme de Raul Ruiz sobre o romance homónimo de Camilo Castelo Branco. Acreditem que o tempo passa e nós não nos apercebemos, enleados que estamos por esta obra.
Lá para Outubro o filme chegará às salas de cinema, depois de ter passado pelos festivais de Nova Iorque e de Toronto, entre outros.
Fiquem atentos, portanto!
O Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras de Lisboa prestar-lhe-á a atenção que lhe é devida.
Cá por mim, enquanto não revejo o filme, vou relendo o romance de Camilo, depositado que estava nas memórias das leituras de adolescência.
Bom fim de semana!

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Simulações - Mistério e publicidade



"Nada se afigura mais hostil ao mistério do que a publicidade: as exibições vulgares, os refrães maçadores, os engodos grosseiros são o contrário do invisível e do íntimo. E, no entanto, porque ela visa suscitar um desejo irresistível, a publicidade tem, sem saber, de lidar com as nossas aspirações mais profundas. O que naturalmente queremos é a bem-aventurança: «Todos os homens procuram ser felizes. Não há excepção, por diferentes que sejam os meios que eles em pregam». Se o bem soberano estivesse diante dos nossos olhos, não poderíamos deixar de o escolher. Mas, à nossa frente, há apenas coisas limitadas, captando dele tão-só um reflexo fugaz; por isso, nenhuma delas pode atrair-nos ao ponto de nos privar do nosso livre-arbítrio. Todavia, para forçá-lo um pouco, importa que, de algum modo, o objecto no cartaz se enfeite, por um instante, de uma bondade suprema. O salsichão Saint Justin dá-vos, de novo, o Gosto do Verdadeiro; o creme Eternal varre as vossas rugas; o portátil X-tremity permite-vos estar em toda a parte ao mesmo tempo... É tão copiosa a oferta de absolutos diversos que não sabeis onde dar as cartas. Mas entrais na Simplicidade, graças ao crédito de consumo Pax-Plus e pela Providência dos seguros Immut, sois sondados nas vossas mínimas necessidades. Nunca o púlpito ressoou com tantas promessas religiosas. O marketing mais agnóstico tem, sem cessar, de recorrer à teologia. Os anunciantes esforçam-se por igualar a Anunciação. As nossas prateleiras são invadidas pelos deuses.

Entre todos os artigos de fé reciclados para dourar os artigos do bazar, aquele que o reclamo mais facilmente retoma é a crença na ressurreição. Se fosse o catecismo que estivesse em causa, haveria a seu respeito muitos incrédulos. Mas se for uma página publicitária, aumentará o número dos fiéis. Lá está, quase sempre, uma mulher bonita para exaltar os méritos de um carro, de um patê para gato ou de uma manteiga sem colesterol. Poderia, à partida, pensar-se que o processo consiste apenas em referir o desejo sexual a uma embalagem qualquer. E estaria certo, por pouco que se admita que este desejo vai além da sexualidade. Tomás de Aquino observa que «os bens exteriores são feitos para o corpo; e que é natural, pois, que os bens do corpo (a saúde, a beleza, o vigor) sejam preferidos aos bens exteriores». O atractivo comercial joga com esta preferência. Utiliza os esplendores do corpo de modo que eles se comuniquem às mercadorias e lhes concedam um excesso de amabilidade. Ele, de facto, não se serve de quaisquer carcaças. As suas silhuetas lembram as propriedades clássicas dos corpos gloriosos: claridade, agilidade, incapacidade de sofrer, perfeição em todos os aspectos da sua natureza. O génio da pós-produção deslastra a actriz do seu peso mortal. Nenhum pus ou tumor parece ameaçar a sua pele. Mas é à custa de uma descarnação radical. Enquanto os corpos gloriosos são de carne e osso, iluminados pelo logos, estes corpos fantasmagóricos são de cátodo e octeto, recuperados por um programa electrónico."

In A profundidade dos sexos - Para uma mística da carne, de Fabrice Hadjadj, prefácio de José Tolentino Mendonça (Paulinas, 2010).

Como noutras ocasiões, este fragmento foi colhido no site da Pastoral da Cultura.

Bom fim de semana!

quinta-feira, 8 de julho de 2010

É só a 23 de Julho que abre


mas aqui fica a sugestão:
Prática de 14 figuras
Exposição de fotografia de Ana Gaiaz
Nesta exposição, Ana Gaiaz retrata um ambiente
cenográfico habitado por inúmeros adereços de
cena, habitualmente esquecidos quando a cortina
do palco se fecha: máscaras, bonecos tristes,
bonecas sofisticadas ou de expressão perturbada,
moldes de rostos adormecidos, mascarilhas
venezianas, monstros e animais fantásticos,
plumas, chapéus elegantes, narizes grotescos,
caras de espanto, entre outros objectos que
em palco constroem a vida das personagens.
[Inauguração: 22 de Julho às 18h30.
Informações pelo tel.: 214815382.
CASA DE SANTA MARIA
De 3ª feira a domingo das 10h às 13h00
e das 14h às 17h00]

terça-feira, 6 de julho de 2010

Arte e Teologia


Deus é feio ou é belo?

"A arte é, se quisermos, a narração visual da experiência de encontro com um rosto, uma palavra, uma imagem verdadeiramente visível porque incarnada. São Paulo irá mais longe, completando cristológica e cristãmente a doutrina da “imagem-ícone” de Deus desenvolvida em Génesis 1,27 («Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher»). De facto, ele afirma que os cristãos, como filhos adoptivos de Deus, são predestinados a serem “uma imagem (eikôn) idêntica à do seu Filho, de tal modo que Ele é o primogénito de muitos irmãos” (Romanos 8, 29). O cristão é, por isso, imagem da imagem de Deus e a arte é o ícone da imagem da imagem, pois através dos vários rostos humanos ela recompõe o rosto de Cristo que é revelação do rosto divino. Como afirmava Macário, o Grande, na sua Iª Homilia, «A alma que foi plenamente iluminada pela beleza inexprimível da luminosa glória do rosto de Cristo, fica cheia do Espírito Santo (...) e torna-se toda ela olhos, toda luz, toda rosto» (Patrologia Graeca XXXIV, 451).

Façamos aceno a uma pergunta talvez ingénua mas, sem dúvida, fascinante: é possível dizer algo mais sobre o rosto de Deus, através da Incarnação [de Jesus], para que a arte adquira uma espécie de cânone figurativo? Há um silêncio nos Evangelhos que não dedicaram nem uma linha ao perfil físico de Jesus de Nazaré, nem sequer o Evangelho de Lucas, dito o “pintor” (de acordo com a tradição). Ora, a cultura cristã enveredou não por uma, mas por duas vias e antitéticas. Ambas têm, todavia, uma sua verdade.

Primeiramente, a partir do século III, os Padres da Igreja quebraram o silêncio visual e imaginaram o rosto de Cristo moldado pelo seu sofrimento redentor, o rosto da paixão e morte que o célebre passo de Isaías, do canto quarto do Servo Sofredor, ilumina: “Sem figura nem beleza. Vimo-lo sem aspecto atraente ... diante do qual se tapa o rosto” (53,2-3). Orígenes resumiu isso de forma lapidar: Jesus era pequeno, feiote, semelhante a um zé-ninguém. Pode ser surpreendente, mas aqui chegados, devemos dizer que até a fealdade pode salvar o mundo, invertendo assim a célebre e citadíssima afirmação de Dostoievski. A lógica da Incarnação compreende também o sofrimento de Deus, o corpo martirizado, a posteriora Dei, como Lutero ousava definir o perfil de Cristo crucificado. O seu rosto reflecte a face banhada de lágrimas dos irmãos e irmãs do “primogénito entre muitos irmãos”. Neste sentido, é uma “fealdade” nobre que fala de Deus e que impede todo o kitsch devocional, todo a esteticismo triunfalista, todo o maneirismo.

Contudo, é preciso reconhecer que o ponto de chegada da vida de Cristo não é a Sexta-feira Santa, mas “o Domingo da vida”, para usar livremente uma locução hegeliana, ou seja, o alvor da Páscoa que é por excelência o definitivo “dia do Senhor” (Apocalipse 1,10). Não é por acaso que a Primeira Carta de João define Deus como Luz (1,5). A partir daqui inaugurou-se uma outra estrada figurativa que os Padres da Igreja exaltaram a partir do século IV, e fizeram prevalecer na tradição artística posterior. Usando os modelos da estética clássica greco-romana, absorvendo até frequentemente a tipologia figurativa das divindades pagãs ou dos filósofos da antiguidade, propôs-se um Deus belo e radioso, um Cristo apolíneo, irradiando luz como o sol, segundo o passo do Salmo 45,3, submetido a uma releitura alegórico-messiânica: “Tu és o mais belo dos filhos dos homens”. Apesar de Santo Agostinho repetir que “ignoramos totalmente qual seja o rosto” real de Cristo, foi esta a imagem divina que se impôs, reforçada em milhares de representações admiráveis em séculos da melhor arte cristã, mas também na superabundância monótona e repetitiva dos copistas.

Na verdade, os dois itinerários iconográficos oferecem um contributo para representar o Deus bíblico que é, sim, transcendência e luz, mas também é Emanuel, pronto a caminhar pelos percursos da história e a tocar os corações com o seu Filho feito homem. À luz desta perspectiva torna-se emblemática a síntese operada pelos vários Pantokrator colocados nas absides das grandes basílicas antigas: o Cristo triunfante e glorioso aparece em todo o esplendor da sua beleza, mas traz bem visíveis os estigmas ensanguentados da sua paixão. Deus invisível e visível, transcendente e próximo, glorioso e sofredor. Eis a arte, a quem cumpre não só apresentar o fenomenológico, mas o mistério subentendido (o Inconnu, como dizia o poeta francês Laforgue). Quando a arte se faz religiosa, deve procurar sempre unir de maneira harmoniosa o Infinito e a carne, o Eterno e a história, o Filho de Deus que é Jesus de Nazaré."



D. Gianfranco Ravasi

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A propósito das margens (IV)



Num famoso ensaio sobre os poetas metafísicos ingleses, T. S. Eliot avança com um conceito que será central para o modernismo anglo-saxónico, o de objectivo-correlativo.
Ao exibir um signo capaz de desencadear uma reacção simultaneamente emocional e intelectual, este conceito enfatiza um método indirecto de abordagem estética do real e, consequentemente, um decoro estranho às tendências futuristas.
Lembrei-me do correlativo devido ao título do novo Cd dos Pop Dell'Arte, Contra Mundum.
Onde foi o grupo colher esta expressão?
O que poderá significar?
Rebeldia?
Não só, mas também.
Quem tenha alguma memória literária anglo-saxónica de imediato evoca um capítulo de Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh; aquele em que Sebastian e Charles vivem os derradeiros dias da idade do armário.
Idade do armário, contraporeis?
Confesso que esta expressão funciona como ponte para uma próxima entrada sobre estes "A propósito das margens".
Para já ficamos com esta ideia: João Peste e o (método indirecto de enunciar e indiciar:) objectivo-correlativo.
Boa semana!

What about the stress?


No final da entrevista concedidada aos Cahiers du Cinéma (Mai 2010), a propósito do seu filme O estranho caso de Angélica, perante a derradeira questão, "N'êtes-vous jamais fatigué?", respondeu o Mestre Oliveira: "Je ne me fatigue pas parce que je ne me presse pas."
Meditai, ó stressados, pares meus!

Um novo breve ciclo aproxima-se


"Este vaivém que julho e agosto introduzem (com viagens mais próximas ou longas, tráfegos de vária ordem, alterações ao quadro de vida corrente…) constitui, para lá de tudo o mais, uma espécie de coreografia interior. Dir-se-ia que a própria vida solicita que a escutemos de outra forma. De facto é disso que se trata, mesmo que se não diga. É com esse imperativo que cada um de nós, mais explícita ou implicitamente, luta: a necessidade irresistível de reencontrar a vida na sua forma pura.

Se a linha azul do mar tanto nos seduz é também porque essa imensidão nos lembra o nosso verdadeiro horizonte. Se subimos aos altos montes é porque na visão clara que aí se alcança do real, nessa visão resplandecente e sem cesuras, reconhecemos parte importante de um apelo mais íntimo. Se buscamos outras cidades (e nessas cidades uma catedral, um museu, um testemunho de beleza, um não sei quê…) é também perseguindo uma geografia interior. Se simplesmente investimos numa dilatada experiência do tempo (refeições demoradas, conversas que se alongam, visitas e encontros) é porque a gratuidade, e só ela, nos dá o sabor adiado da própria existência.

Entendemos bem aquele verso de Rilke que diz: «Espero pelo verão como quem espera por uma outra vida». Na verdade, não é por uma vida estranha e fantasiosa que esperamos, mas por uma vida que realmente nos pertença. Por isso é tão decisivo que as férias, tempo aberto às múltiplas errâncias, não se torne um período errático e vago; tempo plástico e criativo e não se enrede nas derivas consumistas; tempo propício à humanização não se perca na fuga a si mesmo e no ruído do mundo. Em toda a tradição bíblica o repouso é uma oportunidade privilegiada para mergulhar mais fundo, mais dentro, mais alto. É aceitar o risco de sentir a vida integralmente e de maravilhar-se com ela: na escassez e na plenitude, na imprevisibilidade dolorosa e na sabedoria confiante."

José Tolentino Mendonça, O hipopótamo de Deus e outros textos (Assírio & Alvim

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Descobertas da alteridade


"Enquanto nos movemos entre as ruínas de Persépolis, tentando reconstruir com a imaginação as salas que acolheram os príncipes do reino, o palácio de Dario, o palácio de Xerxes; enquanto damos vida a este vazio com a multidão daqueles que o povoaram um dia e agora estão não sabemos onde, pó nos túmulos, pó disseminado nos cumes das montanhas, pó nas moradas sonoras do céu - continuamos a perguntar que cidade foi esta. Não foi criada para recolher nos seus caminhos ou ao longo das margens do rio, a corrente de todos os comércios: não foi criada para governar a administrar um estado; nem para que nos seus templos se erguessem orações aos deuses, e muito menos para ser habitada. Persépolis é uma cidade única no mundo, e para lá de todos os conceitos, prévios e posteriores, uma cidade exclusivamente simbólica. As suas colunas, os seus animais alados, os seus monstros, os seus cortejos, os seus guardiães, representam uma alegoria na qual o império persa deveria reconhecer-se. Assim nos prece justo que o pretexto da criação de Persépolis esteja envolto em algo que aconteceu há dois mil e quinhentos anos, nas regiões do céu."

Palavras de Pietro Citati, em A Primavera do Rei Cosroe - vinte séculos de civilização iraniana (Assírio & Alvim, 2010), relevantes para compreender as alteridades com as quais os nossos quotidianos se cruzam. Em particular quando estas significam discursos civilizacionais milenares!