segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
"Vemos, ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar"
rezava uma canção da minha adolescência. O disco, rapidamente apreendido pela censura, era de um padre, Francisco Fanhais de seu nome. Nas aulas de "Canto Coral", assim se chamava então a educação musical, o nosso professor, Francisco Fernandes, um dos raros nomes que retive do liceu, punha-nos a cantar, afinados, esta e outras canções. Boas memórias de velhos tempos! "Glory days", diria o Boss!
Relembrei-me do Professor Fernandes ao ler a crónica do teólogo Anselmo Borges (DN, Sábado, 9 de Janeiro) a propósito de um outro teólogo, Edward Schillebeck, recentemente desaparecido aos 95 anos de idade.
Com a devida vénia transcrevo este excerto dessa crónica, no qual Anselmo Borges se detém sobre o conceito de "experiências negativas de contraste":
'O conceito de "experiências negativas de contraste" é certamente uma das chaves para o seu (de Edward Schillebeck) pensamento, pois formam uma experiência fundamental. É de facto nessas experiências que o homem aprende a distinção entre bem e mal e a urgência ética. O que vemos e ouvimos do mundo põe-nos em contacto com uma realidade que não está de modo nenhum em ordem - há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência de sofrimento, de maldade, de injustiça e infelicidade é "fundamento e fonte" de uma indignação e de um "não" fundamental ao mundo tal como se apresenta. Ora, esta incapacidade de se resignar com o mundo tal como está revela uma "abertura" para uma outra situação, que constitui "apelo radical ao nosso sim", sim a um mundo outro, com sentido, justiça, felicidade. Este sim aberto, que é ainda mais forte do que o não, pois é ele que torna possível a resistência e indignação frente ao mal, é, num mundo ambíguo - mistura de bem e de mal, de sentido e sem sentido -, alimentado e solidificado por experiências fragmentárias, mas reais, de sentido e felicidade, convocando à solidariedade de todos para a construção de um mundo melhor, com rosto humano.
Aqueles que acreditam em Deus "preenchem religiosamente esta experiência fundamental", recebendo então o "sim aberto" mais orientação e horizonte, dados no vínculo entre ética e mística. Os cristãos, concretamente, a partir da revelação de Deus no homem Jesus, confessado como o Cristo e Filho de Deus, são transformados pela esperança fundada de que "no núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus", cuja causa é a causa dos homens, o seu bem-estar e felicidade.
A fé num "Deus dos homens" que quer chamar todos à plenitude da vida implica, por um lado, que é preciso acreditar no homem, pois não há salvação que não passe pela libertação, também sócio-política, mas, por outro, não se pode cair numa fé iluminista ingénua no progresso nem num messianismo político, pois "nenhum progresso sócio-político reconciliará alguma vez com a injustiça que coube aos mortos".'
Após reler este passo, dei por mim a pensar que, afinal, há por aí muito cristão e cristã que não acredita em Cristo!
Boa semana!
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