terça-feira, 22 de abril de 2014
Ontem, ao fim da tarde,
na Associação José Afonso, em Lisboa, na (minha) apresentação de Carta a Zeca Afonso e Outros Poemas para lembrar Abril, o mais recente livro de poemas de um bom amigo, José Jorge Letria.
segunda-feira, 7 de abril de 2014
Relevante ou não?
Esta é a questão a que os "camusianos encartados" não terão dúvidas em responder: claro que não! Refiro-me à primeira secção dos Journaux de Voyage, dedicada à viagem e estadia de Albert Camus na land of the free, and home of the brave. Contudo, quando olhamos com atenção para a forma como ele vai percepcionando a singularidade daquele espaço, de imediato constatamos que não é necessário escrever muito para dizer coisas interessantes... e argutas. Numa conferência sobre estes textos, com que encerrou o colóquio sobre Camus em Évora no final do ano passado, abordei a importância que assume a sua leitura do detalhe (sim, eu sei que é um galicismo) para o desvendar daquela singularidade. Deixo-vos um excerto significativo a este nível, e depois, porque peguei nesse livro deliciosamente fascinante que é L'Amérique au jour le jour, de Simone de Beauvoir, vou-me sentar tranquilamente a relê-lo e, perdoem-me a anacronia, a ouvir o Francesco De Gregori. Aqui fica o tal excerto: "Au premier regard, hideuse ville inhumaine. Mais je sais qu’on change d’avis. Ce sont des détails qui me frappent : que les ramasseurs d’ordures portent des gants, que la circulation est disciplinée, sans intervention d’agents aux carrefours, etc., que personne n’a jamais de monnaie dans ce pays et que tout le monde a l’air de sortir d’un film de série. Le soir, traversant Broadway en taxi, fatigué et fiévreux, je suis littéralement abasourdi par la foire lumineuse."
Lembrando uma colega muito querida...
Hoje, num comentário com os meus alunos a propósito de metodologias, lembrei-me de uma colega, das mais queridas, que tive na Faculdade de Letras. Chamava-se Albertina Matos e foram poucas, muito poucas, as pessoas (vulgo colegas) em quem, ao longo dos anos, nestas andanças académicas, confiei como nela. Poucas pessoas, também, me definiram tão certeiramente como ela. Foi uma tarde, há uns vinte anos, após uma reunião do chamado ramo educacional, por mim dirigida. À saída, na sala 4.2., ao fundo do corredor, à direita, desta foto, onde hoje decorrem provas de mestrado, ela voltou-se para mim e disse-me: "Gostas de remexer o fundo das águas, sem agitar a superfície." Aqui fica esta nota pessoal, a propósito de uma amiga que partiu demasiado cedo. Boa semana!
quinta-feira, 3 de abril de 2014
Entre-tanto II
Aqui vos deixo a segunda parte da minha apresentação do livro de José Frazão Correia:
"Uma vez mais isso parece ocorrer quando José Frazão recorda que “somos seres de palavras que se exprimem por palavras” (120), algo que traz à mente uma asserção do já mencionado Ralph Waldo Emerson, segundo o qual “somos símbolos e habitamos símbolos.” No entanto, contrariamente ao pensador americano, que situa a sua reflexão no âmbito da evidente ambiguidade da linguagem, José Frazão assume, como vimos, a importância de superarmos o aparente literalismo dessa mesma linguagem.
Importa acentuar um facto: este processo de leitura é também um processo de autodescoberta; nas suas palavras: “consciência de um eu que se afirma, mas enquanto se redimensiona pelo exercício autobiográfico e relacional de se narrar como intriga de tantos fios que confluem numa tensão difícil, mas fecunda”. (122)
Curiosa, ainda que não acidental, é esta convocação de um universo semântico da crítica e da teoria literárias: autobiográfico, narrar, intriga. Antes fora Deus que, na enunciação de Salmann, emergia como “índice da necessidade do dever procurar” (72); índice, signo caro à semiologia. E mais adiante serão as quatro parábolas. E mais adiante ainda será “a poética do corpo eclesial”, expressão colhida em Stella Morra, que surge na sequência da importância que assumem “espaços e ... formas plásticas, ... luzes, ... sombras e... movimentos... perfumes e... cores, ... silêncio e ... canto” (141) na celebração ritual. Não falamos, portanto, de compartimento estanques, como comprovaram Robert Alter no seu clássico The Art of Biblical Narrative, e, entre nós, José Tolentino Mendonça em A construção de Jesus.
Assim se impõe uma categoria narrativa, como a designamos nos estudos literários; uma categoria narrativa que no âmbito desta reflexão assume um papel de profunda revisão identitária; refiro-me à descrição. Para José Frazão, ela surge no culminar deste processo de redescoberta do sujeito: “A generosidade da atenção, a sabedoria da leitura, a arte da descrição” (80). Exactamente isso, “arte da descrição”. Tudo modelado pelo “estilo de Jesus” (81). Num primeiro instante desta minha brevíssima abordagem centrei-me na linguagem; num segundo instante centrei-me na leitura; é chegado o terceiro e derradeiro momento, aquele em que me devo centrar no estilo.
Signo comummente associado à aparência, à exterioridade, à pose, à simulação, à frivolidade até, o estilo emerge nestas páginas como conceito nuclear. Poder-se-á também pensar no estilo da escrita. E aqui uma vez mais me veem à mente as palavras de Emerson, desta feita numa carta a Walt Whitman, pois também na prosa de José Frazão Correia encontramos “coisas incomparáveis, ditas incomparavelmente bem, como elas devem ser ditas.” Mas não é apenas uma prosa que se impõe pela clareza, inteligência e fluidez. Recordando de novo aquele verso que referi no início, diria que José Frazão “está em boa companhia”. Lembremos o início da Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma de 2014 quando, ao reflectir sobre as palavras de São Paulo em Coríntios 2, afirma: “Tais palavras dizem-nos, antes de mais nada, qual é o estilo de Deus.” O estilo de Deus. Não estamos, portanto, no plano da simulação, mas sim da identidade, naquela que para nós, cristãos, será a sua acepção mais radical. Daí a presença do Génesis na leitura que José Frazão nos oferece, lembrando a amplitude deste entre-tanto, na qual devemos discernir e inscrever a nossa experiência biográfica.
O nosso autor reitera a centralidade do estilo na sua elaboração - o “estilo eucarístico”, o “estilo de Jesus”, “ao estilo de Jesus no caminho de Emaús” (111), “o estilo cristão”-, numa estratégia pedagógica de liberdade, visto não impor, desde logo, ao leitor uma definição, antes o levando a construí-la através da reflexão que é obrigado a realizar. Apenas quando a elaboração por ele construída, vai avançada, estamos na página 88, a definição é proposta: “o estilo é um modo particular de habitar o mundo. Por isso, de olhar e de sentir, de pensar e de agir. É o toque distintivo de uma presença que se representa num corpo vivo e visível.” (88)
Afinal a resposta que eu procurava no início, estava na viagem que a leitura é, no processo de redescoberta da linguagem e, consequentemente, do estilo; a viagem de cada um de nós, ancorada nas nossas circunstâncias biográficas, assim desvendando um estilo moldado pela presença constante de Cristo. E uma vez mais me veio à mente o tal verso, agora numa nova dimensão: “uma forma de estar em boa companhia”. Que melhor companhia podemos nós desejar?
"
terça-feira, 1 de abril de 2014
Entre-tanto I
Aqui vos deixo a primeira parte da minha apresentação do livro de José Frazão Correia que teve lugar ontem, ao fim do dia, no Corte Inglês. Espero que gostem, mas, acima de tudo, espero que o meu texto vos motive a ler este belo livro.
Voilà:
"Quando o José me convidou para participar no lançamento do seu livro mais recente, foi sensibilizado e honrado que de imediato aceitei. Com efeito, os seus textos haviam-me tocado de uma forma particular, tendo eu chegado mesmo a fazer algo que o José ignora, ou seja, citá-lo numa palestra minha sobre -, imagine-se, a presença do jazz na poesia modernista de expressão portuguesa. No entanto, passada a surpresa inicial, não pude deixar de reflectir no facto de este ser um livro de Teologia, escrito por um teólogo, e apresentado por um teólogo. Qual seria, portanto, o meu lugar aqui, com o meu perfil de Letras, não pude deixar de me interrogar. Apesar de esta poder ser, tomando um verso que li algures a propósito de um quadro de Edward Hopper, “uma forma de estar em boa companhia”, comecei a sentir algum desconforto. Afinal, não tendo eu o hábito de me pronunciar sobre áreas do saber com as quais não estou intimamente familiarizado, qual poderia ser o meu contributo? O facto de o José ser um homem sensato, de alguma forma me tranquilizou. Haveria, por certo, algo que ele discernia em mim, e que eu não conseguia ainda vislumbrar. Decidi, por isso, esperar pelo dia seguinte, quando o livro chegaria às minhas mãos, para tentar desvendar qual seria o meu contributo. E foi assim que, desde esses instantes iniciais, à medida que o ia descobrindo, ia tentando antecipar o rumo das minhas palavras hoje.
Intimamente, enquanto o lia, ansiava por aquele momento em que ele se revelaria, em que ele me forneceria uma chave, uma resolução mágica. Não pude deixar de pensar no protagonista de The Figure in the Carpet, o conto de Henry James, nutrindo a secreta esperança de que a revelação chegaria ao virar da próxima página. No entanto, porque, para mim, a literatura tem uma dimensão pedagógica, tinha a noção de que semelhante demanda era uma quimera. Na verdade, era o próprio processo de leitura que me perturbava.
A perturbação começara, aliás, com o título, Entre-tanto. Não, Entretanto, mas Entre-tanto. Um hífen cortava a palavra em duas, decompunha-a, para logo a recompor. Evidenciava que o tempo, o instante entre um antes e um depois, coexistia com um lugar, entre-tanto ou no meio de tanto, ou no seio de tanto ou algures no tanto, não necessariamente no centro, talvez nas margens, na fronteira, mas sempre algures no tanto, dentro do tanto.
A velocidade e a voracidade dos tempos que vivemos, com suas abreviações e cifras, impondo-se na linguagem do nosso quotidiano, era pouco compatível com o tempo em que eu me detinha para meditar naquilo que aquela banal conjunção indiciava. No entanto, a pedagogia desta obra, a lição, começava no título. O título indiciava ou anunciava aquele que seria um método de escrita, um método que passava pela reflexão sobre a palavra escolhida, pela sua etimologia, pela sua composição, pelas marcas do tempo que ela encerra. Uma suspensão para a reflexão sobre o evidente, sobre o banal, para redescobrir o mais banal dos signos, as potencialidades de sentido que ele enuncia. Daí os itálicos, a coexistência de segmentos em itálico com tipo de letra normal, os hífens: o entre-ver, o pressentir, o entre-o-tanto. Ao desmembrar a palavra, era um véu que se erguia.
Duas vozes emergiram na minha memória perante este processo. Desde logo, a de Michel Foucault que lembrava ter existido um tempo em que o espaço era necessariamente transitivo, oferecendo-se e solicitando a interpretação do indivíduo; a prosa do mundo predominava, fazendo do sujeito um hermeneuta natural, ou aquilo que um crítico um dia referiu ser um hermeneuta compulsivo, ao evocar a experiência radical dos colonos puritanos no Novo Mundo. Depois, era a voz de Ralph Waldo Emerson que proclamara ser a linguagem poesia fóssil.
Com efeito, José Frazão Correia perturba a tranquilidade do leitor, exigindo que este se assuma, no presente, como hermeneuta que desvenda a prosa do mundo, e como arqueólogo em busca do sentido no tempo. Mas não é apenas isso. Se o fosse, estaríamos perante o domínio da semiologia; uma opção legítima, mas que não se inscreve no horizonte aqui perscrutado. Com efeito, ainda no início do livro, José Frazão cita Giovanni Cesare Pagazzi: “o mundo da carne do Filho não é só a humanidade, mas todas as coisas que viu, sentiu, gostou, tocou, cheirou.” (31) Para logo concluir: “o mundo real com o qual esteve em con-tacto sensível.” Daí a importância que o mais banal signo pode assumir na nossa compreensão do real. Assim se confirma que Walt Whitman, o poeta americano, tinha razão quando, em “Canto de mim mesmo”, proclamara: “Nem uma polegada, nem um fragmento de uma polegada, é impuro” (Whitman 41). José Frazão revê e amplia esta ideia ao escrever: “cada porção de espaço e de cada fragmento de tempo sabe fazer um acontecimento de graça” (87). A recusa da impureza é, com efeito, uma asserção que indicia as tensões teológicas dos Estados Unidos de meados do século XIX, quando o carácter operativo de um puritanismo tardio era questionado. Poeta e teólogo convergem, deste modo, nesta percepção da existência."
Subscrever:
Mensagens (Atom)