quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Estreia hoje Linhas de Wellington

Um ano lectivo inicia-se...? Ou será que, agora, que a semestralização se canonizou, bastaria dizer apenas que “mais um semestre se inicia”? Enfim, semestre ou ano lectivo, tanto faz! O importante é que temos algo de particularmente sedutor em termos estéticos sobre a nossa História colectiva (perdoai-me esta ênfase numa auto-estima nacional) para celebrar a ocasião. Refiro-me a Linhas de Wellington, o filme que, sob proposta de Paulo Branco, Raúl Ruiz idealizou e que, após a sua morte, a sua viúva, a realizadora Valeria Sarmiento, concretizou. Há, quanto a mim, vários aspectos a destacar neste filme. Talvez me confine aos seguintes: a escolha do tempo histórico; a dinâmica da(s) narrativa(s) [aqui acresce o trabalho de montagem]; a fotografia [a cargo de André Szankowski (lembram-se, por certo, do seu excelente trabalho em Mistérios de Lisboa)]; o casting; o tópico do herói. A minha geração que ainda aprendeu algo sobre a História de Portugal [vi pelos meus filhos que também eles aprenderam, mas a forma como era ensinada – talvez devido às estratégias didácticas das ciências da educação, mais parecia o mito do eterno retorno – não terá deixado nas suas mentes memória alguma significativa], lembra os episódios ligados às chamadas invasões francesas, e os nomes dos intervenientes que as lideraram e que, com o rabo entre as pernas, regressaram ao berço do racionalismo iluminista. Ora, a escolha de um episódio relevante desses tempos é importante pela sua evocação de um, ainda que forçado, envolvimento colectivo, e pela fase de transição que o seu fim significa. Lembro-me dessa frase de Mary Renault em Jogos Funerários: “Um tempo partira. Um tempo chegara. E eles não gostavam dos auspícios do seu nascimento.” O derradeiro plano do filme, ligado a uma das micro-narrativas, onde a terra devastada (ainda não era a do Eliot; a burguesia que a devastaria ainda não emergira entre nós com a pujança que lhe permitiria atingir esse apocalipse cultural), a casa reduzida ao esqueleto, as plantações, a cinzas... o derradeiro plano, dizia, com um burguês (a classe média?) na miséria, acompanhado de um criado que obviamente não receberá salário, e de um jovem louco, não pode deixar de nos lembrar os tempos que correm. Sabemos hoje, dois séculos depois, que das cinzas ele renascerá, todavia. Talvez seja esse um sinal de esperança... Depois a dinâmica da narrativa. Quem quiser ensinar Genette pode recorrer a este filme pela notável inter-relação entre narrativa central e micro-narrativas. Quem quiser ensinar estudos inter-artes ou fílmicos pode meditar sobre a importância da montagem neste processo. E aqui, a realizadora, Valeria Sarmiento (com Luca Alverdi), senhora de uma larga experiência a este nível, fez um trabalho notável. São duas horas e meia (um pouco mais, aliás) e, contudo, o tempo flui sem que disso nos apercebamos. E depois há a fotografia. Como referi, a cargo de André Szankowski. Sendo a atmosfera uma vertente fundamental na narrativa fílmica, importa acentuar a forma como ela celebra o intimismo e confere dramatismo a cenas colectivas (recordo a fuga das populações ao longo de caminhos sinuosos). E depois há o casting. Não é todos os dias que, um filme português, exibe actores estrangeiros consagrados como Michel Piccoli, Isabelle Huppert, Catherine Deneuve, Chiara Mastroianni, Mathieu Amalric (ainda que por breves instantes, todos eles), John Malkovich (“ripe as an October apple”, segundo o crítico do Guardian), e um conjunto de actores portugueses que se impõe pela sua solidez de representação. Eu não esqueço, porém, Nuno Lopes, o sargento Francisco Xavier (ironia da designação pensará quem tenha memória religiosa-cultural?), e Adriano Luz, que aqui é o Bordalo (outra ironia? Rafael Bordalo Pinheiro) e que em Mistérios de Lisboa foi o padre Diniz. E, por fim, o tópico do herói. Há, entre nós, uma certa sensibilidade política que tem feito tudo (política de terra queimada) para destruir, e apenas isso, a noção de herói (pobre Carlyle ou pobre Emerson, se ressuscitassem hoje no nosso jardim, pois veriam Heroes and Heroworship e Representative Men serem arrasados e denunciados como machistas reaccionários!). Ora, Linhas de Wellington recupera a figura do herói de duas formas. Por um lado, celebrando-o quer através da entidade colectiva quer através de figuras singulares e anónimas, aquelas que as grandes narrativas esqueceram, ainda que na sua loucura fanática, por exemplo (veja-se Albano Jerónimo na figura do Abade que, em nome de Deus, esquarteja franceses). Por outro lado, revelando a humanidade das “grandes figuras”. A humanidade, esclareço, significa o ser humano enquanto tal, com suas virtudes e defeitos, e não uma abstracção. Nesse sentido, Malkovitch/Wellington é brilhante! Como que antecipando os tempos mediáticos que vivemos e o domínio da imagem, ele “edita” com todo o cuidado a representação da guerra: "more panache, less corpses", impõe ele ao seu cronista/visual (repórter de guerra). Afinal, ele sabia que seria a sua imagem aquilo que persistiria no tempo! Não deixa de funcionar também como uma espécie de comic relief o episódio em que ele se interroga sobre se deverá ou não sentir-se ofendido pelo facto de terem dado o seu nome a um bife... Estas são apenas algumas notas. Espero que vejam Linhas de Wellington. E que, caso sejam professores, incentivem os vossos alunos a ir vê-lo. Afinal, como referi, o derradeiro plano lembrar-lhes-á que, mesmo quando a nossa independência nacional se esfumou e o país ficou “nas lonas”, ele, o país, acabou por persistir. Como sabiamente lembra o Eclesiastes: há um “tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir”. Bom início de semestre e bons filmes!

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