quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Que herói americano para o século XXI?



Uma reflexão minha sobre este tópico foi publicada no Diário de Notícias há dois dias, tendo em mente o caucus republicano no Iowa.
deixo-a hoje aqui com algumas alterações, e com a versão elegante do Daniel Day Lewis:

'“Não fomos chefes, mas fomos honestos e úteis à nossa maneira.” São estas as palavras que Hawkeye profere no romance A Pradaria (1827), de James Fenimore Cooper, quando, prestes a morrer, olha para Oeste, no seu derradeiro confronto com a Natureza.
Se os mais jovens associam Hawkeye à personagem da Marvell, já para a minha geração o seu nome traz à memória O Último dos Moicanos, onde personifica o aristocrata natural. É este herói da fronteira que, sensivelmente um século mais tarde (em 1923), Herbert Quick recupera como protagonista do seu romance homónimo.
Quick inscreve-o, porém, num espaço de fronteira muito concreto, o Iowa. Hawkeye começa assim a participar explicitamente da mitologia popular deste estado.
Após um processo algo demorado de transição de território para estado que culmina em 1844, com a criação de uma constituição – apenas por curiosidade, refira-se que nela se impõe um limite de cem mil dólares para a dívida estadual, o Iowa é finalmente admitido como vigésimo nono estado da União.
Situado algures no chamado “Meio Oeste”, o Iowa entra no imaginário nacional pelo facto de, durante décadas, ter sido um espaço de fronteira (estatuto que perde apenas no limiar da Guerra Civil) e, consequentemente, um laboratório das tensões e paradoxos que, ao longo do século XIX, fazem parte da construção da democracia americana: das pequenas comunidades utópicas (quatro em meados do século), aos grupos de vigilantes (“reguladores”, como eram então conhecidos); da profunda diversidade religiosa, evidenciada no grande número de instituições de ensino ligadas às diferentes denominações, ou da legislação precoce sobre os direitos das mulheres, às resistências ao acolhimento de cidadãos negros.
A ética algo severa que marca esses espaços e um certo ideal jacksoniano – o elogio do agricultor e o chamado destino manifesto, projecta-se em pioneiros heróis solitários como Hawkeye. No entanto, esses traços não se confinam a uma zona geográfica, a uma mitologia popular localizada. O aristocrata natural por ele personificado acabará por ser comum aos mais variados heróis da mitologia popular americana, desse outro herói do Oeste que é o cowboy, ao detective do romance policial negro ou aos novos pioneiros da conquista da nova fronteira, o espaço.
É óbvio que o processo que agora se inicia com o caucus republicano no Iowa, não será decisivo para a escolha dos candidatos. No entanto, o Iowa exige um discurso político particularmente subtil na forma como os candidatos abordam a tensão entre tradição e modernidade. Por isso mesmo, eventuais ênfases futuras poderão em breve ser detectadas.
E assim poderemos saber que perfil de Hawkeye persistirá ainda no século XXI.'

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