segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Deixa-me contar-te uma história


é o título da última crónica publicada por José Tolentino Mendonça publicada no Diário de Notícias da Madeira.

Porque a produtividade de Tolentino não cessa de nos impressionar, a tristeza deste percurso ter chegado ao fim é compensada por uma certeza, a de que teremos apenas de procurar as suas palavras noutro(s) lugar(es).

Eis a crónica, com os votos de boa semana:

Algumas histórias tornam-nos herdeiros de um lugar, outras de uma casa, outras de uma razão pela qual viver. Certas histórias deixam-nos o mapa depois da viagem, ou o barco em qualquer enseada, oculto ainda na folhagem, ou o azul desamparado e irresistível que lhes serviu de motivo para a demanda. Há histórias que nos pintam o rosto com terra amassada, vermelha, amarela, negra e iniciam-nos na decifração do fogo, na escuta dos silêncios da terra, no entendimento dos sonhos. Há histórias que nos conduzem ao centro impenetrável de bosques, aos segredos da penumbra do templo, à geografia de cidades, ao alarido dos mercados e à hesitação que a sabedoria por vezes dissolve, por vezes amplia.

Pelas histórias descobrimos a vastidão de um mundo interior, intacto e errante como uma paisagem do fundo dos mares, e, desse modo também, primordial e delicado, arcaico e sublime. Das histórias recebemos o socorro quando nos faltam palavras (ou outra coisa que não sabemos bem, mas que talvez nem sejam palavras) para medir a altura da alegria, porque, de repente, o amor, a poesia ou a santidade se avizinharam e, percebemos, nada antes tinha sido, para nós, tão imensamente belo e tão perigoso.

A herança dessas histórias constitui um património cultural, é certo. Mas importa não esquecer que elas são sobretudo dádiva confiada à vida, alento, sopro, energia pura. E, por isso, têm um inesgotável poder reparador. A «árvore da vida» das primeiras páginas do Génesis, «a estrela de Alva» dos hinos astecas, a «gazela» do folclore tuaregue, a «flor vermelha» duma canção mexicana, a «estrada larga» da declaração xamânica, a «raiz da vida» do poema de Madagáscar, a «planta da imortalidade» que Guilgamesh perde e procura, são-nos entregues, não só como metáforas, mas como símbolos que passam a sustentar connosco, a nosso lado, o duro e ligeiríssimo mistério da existência. As metáforas empalidecem e estilhaçam-se. Os símbolos têm capacidade de religar, a partir do fundo, as pontas decepadas e dispersas, os opostos da alma: a noite e o dia, a dor e o riso, a ação e a contemplação, a vida e a morte.

***

Muitas vezes, a meio da viagem, os viajantes se perguntam pelo que persistirá, uma vez concluído o caminho. O que persistirá destas paisagens que atravessamos, em solidão e companhia; disto que já foi tão real diante de nós como nós próprios; disto pelo qual lutamos e vivemos; disto que o mundo encosta ao nosso ouvido como um segredo; disto que nos faz chorar e rir; disto que nos colocamos a amar desabaladamente? Uma vez concluído o caminho, que resta aos viajantes? Que podem eles trazer ou conservar ou repartir? Gosto de pensar nas palavras de Sophia de Mello Breyner: «Feliz aquela que efabulou o romance/depois de o ter vivido/[…] E sob o fulgor da noite constelada/ À beira da tenda partilhou o vinho e a vida».

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