segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sobre a leitura do Apocalipse


[Este quadro é da autoria de Ilda David' e referente ao Eclesiastes]

Na altura mencionei aqui este evento - a leitura do Apocalipse feita por Luís Miguel Cintra na Capela do Rato. Agora deixo-vos um excerto do testemunho do actor que podereis ler na íntegra no site da Pastoral da Cultura (embora com a versão da nossa língua pós-Acordo):

«É um texto que coloca problemas a muita gente. A mim também. E assusta. Para nós, é quase impossível conceber o julgamento final e aquela visão terrível que nos é apresentada no Apocalipse.

Fazer a leitura de um texto em público, seja ou não religioso, é uma forma de me obrigar a confrontar com ele. Há uma parte de identificação do leitor com o texto que, para mim, é indispensável e me obriga a tomar uma posição, a fazer uma interpretação séria. Por ser um livro tão difícil de aceitar, mais me estimulou a confrontar-me com ele e a fazer esse confronto em conjunto com outras pessoas.

Ao mesmo tempo que me impressiona, é um texto que me fascina pela capacidade visionária que tem e... como hei-de dizer?... pela grandiosidade e generosidade da imaginação que está por trás dele. Conceber o bem, o mal, a própria figura de Deus e a representação dos que fizeram o bem é uma forma humana de exprimir uma enorme paixão por verdades muito mais profundas. É admirável a maneira como S. João [autor a quem é atribuído o livro] encontrou imagens que o ser humano pode entender para representar uma ideia abstrata. Aliás, a Bíblia está cheia disso, o que é maravilhoso.

A religião é feita com imagens humanas. A ideia de Deus é abstracta. Não podemos conceber Deus a não ser com aquilo que conhecemos, que é a vida. A ideia que existe no cristianismo de um Deus que se torna carne faz parte dessa percepção. Para que os homens entendam a ideia de Deus, foi preciso que Deus se tornasse num homem. É isso que torna o cristianismo extraordinário. A religião é uma coisa dos homens mas transcende-os.

Como é que o ser humano há-de pensar o que se passa com Deus? Não o pode fazer a não ser recorrendo a essas imagens. Para mim é comoventíssimo, do ponto de vista da análise da escrita, a forma como S. João concebeu toda aquela estrutura simbólica, aquele grande, enormíssimo, gigantesco painel com milhões de figuras para representar coisas que são ideias. Por isso gostei muito de o ler.

O texto tem uma leitura difícil porque é muito concreto naquilo que vai dizendo. Não há grandes artifícios de estilo. É imagem, outra imagem, ainda outra imagem, numa espécie de acumulação, não permitindo variações que tornem a leitura mais espectacular. Fiquei muito contente porque senti que na leitura que fiz na Capela do Rato as pessoas eram sensíveis a isso; não estavam a pedir que a leitura se tornasse mais espectacular do que o espectáculo imaginário que é escrito pelo próprio S. João.»

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