terça-feira, 19 de outubro de 2010

Evangelho e corrupção


Transcrevo o texto retirado do site de Frei Bento Domingues, texto este que foi previamente no Público.

Para ler e meditar, claro:

'1. Na Missa do Domingo passado, coube-me ler uma parábola de Jesus, contada por S. Lucas e que passo a reproduzir: Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: Um homem rico tinha um administrador que foi denunciado por andar a desperdiçar os seus bens. Mandou-o chamar e disse-lhe: Que é isto que ouço dizer de ti? Presta contas da tua administração, porque já não podes continuar a administrar. O administrador disse consigo: Que hei-de fazer, agora que o meu senhor me vai tirar a administração? Para cavar não tenho força, de mendigar tenho vergonha. Já sei o que hei-de fazer, para que, ao ser despedido da administração, alguém me receba em sua casa. Mandou chamar um por um os devedores do seu senhor e disse ao primeiro: Quanto deves ao meu senhor? Ele respondeu: Cem talhas de azeite. O administrador disse-lhe: Toma a tua conta: senta-te depressa e escreve cinquenta. A seguir disse a outro: E tu quanto deves? Ele respondeu: Cem medidas de trigo. Disse-lhe o administrador: Toma a tua conta e escreve oitenta. E o senhor elogiou o administrador desonesto, por ter procedido com esperteza.

Há parábolas do Novo Testamento que parecem guiadas por um propósito de enervar alguns grupos de ouvintes, em vez de procurar a sua benevolência como manda a boa retórica. A intriga, tecida de paradoxos e até de situações imorais, punha em causa a ortodoxia das rotinas.

Na leitura, fiz de conta que a parábola já tinha chegado ao fim e que ia começar a homilia. Senti um mal-estar na assembleia.

Através dos meios de comunicação, a nível internacional e nacional, muitos gestores de empresas e bancos são acusados de terem lançado muitos milhões de pessoas no desemprego. Vir, agora, o Evangelho elogiar o comportamento do administrador corrupto e corruptor, era de mais!

A parábola não tinha chegado ao fim, pelo contrário: De facto, os filhos deste mundo são mais espertos do que os filhos da luz, no trato com os seus semelhantes. Ora Eu digo-vos: Arranjai amigos com o vil dinheiro, para que, quando este vier a faltar, eles vos recebam nas moradas eternas. Quem é fiel nas coisas pequenas também é fiel nas grandes; e quem é injusto nas coisas pequenas, também é injusto nas grandes. Se não fostes fiéis no que se refere ao vil dinheiro, quem vos confiará o verdadeiro bem? E se não fostes fiéis no bem alheio, quem vos entregará o que é vosso?

Finalmente, atirava a matar: Nenhum servo pode servir a dois senhores, porque, ou não gosta de um deles e estima o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.

No missal, o texto acabava realmente aqui, mas omitia o fracasso de Jesus: Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e riam-se dele.

2. É verdade que Cristo não se notabilizou na gestão financeira de qualquer empresa ou banco. Foi, aliás, um grupo de mulheres que subsidiou o seu projecto (Lc 8, 3) e Judas, a quem estava confiada a bolsa comum, foi acusado de ladrão… Também não consta que, hoje, Jesus seja muito invocado nas Faculdades de Gestão e Economia, mesmo nas Universidades Católicas.

Se, na parábola citada, o administrador corrupto é louvado, não é por ser corrupto, mas por se mostrar esperto ao ver a sua posição ameaçada. O que Jesus lamenta é, precisamente, a falta de esperteza e de audácia dos chamados ao serviço das boas causas, isto é, os filhos da luz. As boas causas, mal servidas, ficam desautorizadas assim como os seus caminhos. De boas intenções está o inferno cheio. A Doutrina Social da Igreja, carregada de altíssimos e generosos princípios, não tem encontrado, nos milhares de economistas e gestores católicos – e empresários – do mundo inteiro e mesmo cá, em Portugal, vontade de investigar e encontrar alternativas à economia e à gestão que nos perdem. Porque será que a influência do Evangelho, mesmo nas Universidades Católicas, não leva os melhores alunos e professores a estudar e a criar formas de economia e de gestão que se inscrevam na “luta contra a pobreza e no amor preferencial da Igreja pelos pobres” de que falou João Paulo II, em Puebla?

3. Jesus chega ao fim desta parábola com a urgência de uma opção fundamental para os seus discípulos: Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro. Tinha começado a sua pregação pela resistência activa à tentação do poder absoluto do dinheiro que comanda a economia, a política e a religião, o nosso quotidiano.

Quando, porém, a parábola fala de servir a Deus como um absoluto, não é para fazer dele o rival da felicidade humana nem para dizer que os bens deste mundo, que se compram e vendem com o vil dinheiro, sejam um mal. O que a generosidade de Deus não pode tolerar é que se torne privilégio de alguns o que deve estar ao serviço de todos. Servir o dinheiro e o que ele consegue, como um absoluto, é deixar-se escravizar pelos êxitos que envenenam o mundo, sobretudo pelo comércio das armas e dos seres humanos.

Não admira que os fariseus, amigos do dinheiro, ao ouvirem tudo isto, continuem a pensar que Jesus é um ingénuo!'

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