sexta-feira, 17 de outubro de 2014
Ai, a desgraça destes tempos que correm...
"... devido ao nosso facilitismo, ao permitirmos que quem quiser se possa casar, sendo demasiado indulgentes e tolerantes em todas as situações, nenhuma família está segura, quase nenhum homem livre de ser atingido por uma grave enfermidade, quando não se fazem escolhas, e até os mais velhos se casam, assim como muitos garanhões de raça ... Ficará para a posteridade que a nossa geração é corrompida, temos muitas pessoas fracas, quer de corpo quer de espírito, muitas doenças selvagens a desenvolverem-se entre nós, famílias loucas, parentes peremptores [os nossos progenitores são a nossa ruína], os nossos pais maus, e parece que ainda seremos piores." Não, não estava a falar destes tempos, mas dos de Robert Burton, diagnosticados em Anatomia da Melancolia, originalmente publicada em 1621. Vale a pena ler, nomeadamente para quem deseje penetrar mais fundo na paradoxal cultura do Renascimento e dele emergente.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
A mística do instante
é o mais recente livro de Tolentino Mendonça. Cada vez mais brilhante, diga-se! O livro... li-o na primeira metade do fim de semana. Para crentes e não crentes, como ficou provado ontem, ao fim da tarde, no lançamento feito pelo agnóstico (assim se autodefiniu) Carlos Vaz Marques. A mim, ajudou-me a compreender o sentido deste meu percurso; como outros o têm vindo a fazer, aliás. Um deles foi o livro de José Frazão, Entre-tanto, de que já dei notícia neste espaço. Dele me lembrei enquanto lia A mística do instante. Aqui vos deixo um passo da obra de Tolentino: "Gosto muito da definição que li em Georges Bataille, e que serve tanto o que ele chamava a sua «mística ateísta», como descreve amplamente uma mística cristã. A mística, diz ele, é uma experiência nua. Antes de tudo, a definição é justa porque ancora a mística no domínio da experiência. O problema de tantas resistências em relação à mística reside exatamente na evidência de que, em seu nome, têm sido promovidos todo o tipo de evanescências e escapismos.
O contrário do que vem dito no texto da carta aos Hebreus: «Não te agradaram oblações, nem holocaustos... mas deste-me um corpo.» (Heb 10,5). A mística tem peso. É corpo, experiência, letra, lugar, tessitura de vivido. A maior parte das vezes, o que falta ao itinerário crente não são, de facto, ideias, mas corporeidade, ressonância, espessura. Para explicá-lo não bastam conceitos, nem estruturas. A precariedade e a fragilidade do corpo; o grito, universal e concreto, que dele brota; a sua comum e quotidiana respiração aproximam-nos mais de Deus do que qualquer elaboração concetual. Mas não nos devemos esquecer de que a experiência mística é experiência nua. A experiência crente supõe uma confiança, não uma garantia. A fé não possui o objeto que a funda, porque ele é alter, é sempre outro. Como escreve Michel de Certeau: «Avizinhando-se daquele que amam, os crentes experimentam sempre, de uma forma ou de outra, o sentimento do vazio: abraçam uma sombra. Acreditam encontrá-lo se avançarem ao seu encontro, mas Ele não está lá. Procuram em toda a parte, perscrutam em cada detalhe onde Ele possa estar. Mas Ele não está em parte alguma.» Os místicos sabem que Deus se dá ausentando-se. Entre Deus e nós há um espaço vazio. Nós movemo-nos nesse espaço. O essencial está além, só na pobreza da nossa carne e do nosso tempo, que são também carne e tempo de Deus, podemos entrevê-lo. Ver, entrever e experimentá-lo na transparência do instante. Não é fugindo ao banal e ao ordinário, pois ele habita todo o comprimento delicioso e árduo do nosso caminho. Podemos, por isso, entender como uma oração o verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, que começa assim: «Creio na nudez da minha vida.» Por difícil e turva que ela se possa revelar, não há via de maior lucidez e transparência para começarmos a viagem espiritual."
sexta-feira, 10 de outubro de 2014
Pomar, a propósito do espelho
Após ter visitado a exposição de Pomar, sobre a qual aqui falei, tenho andado a ler A cegueira dos pintores, o seu segundo volume de ensaios. Entre as pérolas que li encontramos, eis algo que colhi numa nota de rodapé (Ah, S. Segismundo, explicai-me este fascínio por aquilo que é remetido para as margens...) a propósito do espelho: "O único espelho verdadeiro é, para Bachelard, o espelho das águas que Narciso atravessou: e o que o distingue do espelho natural o espelho produzido pela indústria, espécie de concavidade vítrea que mancha as nossas paredes, e aquilo em que assenta o parentesco deste com o quadro, é efectivamente a lesão que produz com a ofensiva presença dos seus limites, com a separação nítida entre o que pertence ao domínio da imagem e o real ambiente. Introduzir numa sala um espelho ou um quadro é praticamente fazer uma colagem em que se matam reciprocamente dois mundos sem escala comum: o meio que nos rodeia e em que nos deslocamos e esta aparência de janela, de buraco ou de poço onde espreitamos surpresas e confirmações e que, se nos atrevemos a tocá-lo, nos remete, despaisados, para uma superfície cega." Bom fim de semana.
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Shakespeare em Cascais
Entre, como diria o TinTin, "dois queridos e velhos amigos" - Salvato Telles de Menezes e António Feijó; ouvindo um deles - António Feijó; e falando em postura hamletiana
Após estes apontamentos visuais, eis um breve passo da minha intervenção onde analisei as versões do soneto XVIII, feitas por Carlos de Oliveira e por Vasco Graça Moura:
"Basta observarmos o primeiro verso do soneto XVIII - Shall I compare thee to a summer's day? - para detectarmos duas posturas distintas: Carlos de Oliveira tenta responder afirmativamente ao desafio prosódico colocado por Shakespeare, optando por uma fluidez sintáctica idêntica àquele que será uma certa oralidade, embora com algumas elipses. Já Vasco Graça Moura introduz um tom algo cortês que insinua a sua opção estética, isto é, a de recriar Shakespeare através da simulação de uma atmosfera renascentista, que será mais adiante reconhecível em palavras como formosura, tez dourada ou Natura, ou em violentas alterações, rupturas, sintácticas, como no verso “vento agreste botões frágeis fustiga”. Creio, aliás, ser impossível olhar para esta versão do soneto XVIII feita por Vasco Graça Moura, sem ter presente quanto ele, como tradutor, ensaísta e poeta (veja-se a imensa ironia com que ele convoca a poesia de Camões nesse livro singular que é Variações Metálicas, onde os seus versos revisitam as esculturas em ferro de José Aurélio através das fotografias de Ana Gaiaz), quanto ele, dizia, dedicou às estéticas renascentistas."
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